COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Enquanto cai o investimento em assentamentos, instituto promove ranking para premiar funcionários que mais concedem títulos individuais de propriedade.

 

(Por Renata Guerra e Ana Magalhães - Repórter Brasil / Gráficos: Repórter Brasil)

Desde abril, servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) recebem incentivos para dar títulos individuais de propriedade da terra ao maior número possível de assentados da reforma agrária. Quando ligam seus computadores, encontram na tela o titulômetro, nome oficial de um ranking que fixa metas e premia as superintendências regionais que mais emitem esses títulos. Como prêmio mensal, a equipe ‘medalha de ouro’ ganha 8 notebooks; a de ‘prata’, 6, e a de bronze, 4.

Anunciado internamente como mecanismo de eficiência, o titulômetro é criticado por promover uma inversão de prioridades. Enquanto a missão do instituto era criar e fortalecer o desenvolvimento de assentamentos, o foco dos servidores agora é conceder títulos individuais.

Com a mudança, o governo se isenta de um eixo estrutural da política de reforma agrária: a infraestrutura e o apoio para que o pequeno agricultor consiga ficar e produzir na terra. Assentamentos exigem que o Incra promova o investimento em estradas, escolas e postos de saúde, além de financiamento para o plantio. “O Incra dá esses títulos justamente para que as famílias saiam da alçada do governo”, critica Reginaldo Marcos Félix de Aguiar, da diretoria da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra.

Ao virar proprietário, o assentado perde uma série de benefícios. “Quando o agricultor é assentado, ele busca financiamento do Pronaf, com juros baixos. Quando ganha o título, ele tem que buscar esse crédito por conta própria, em bancos privados, o que é mais difícil”, afirma a coordenadora da Comissão Pastoral da Terra no Mato Grosso, Elizabete Flores.

Com essas dificuldades, e com o título de propriedade em mãos, a tendência é que os pequenos agricultores vendam o imóvel, avalia Igor Rolemberg, antropólogo e pesquisador dos conflitos fundiários na Amazônia. “E é o fazendeiro próximo que vai comprar, o que aumenta a concentração fundiária e aquece o mercado de terras”, explica. Ele aponta que isso significaria o desmonte da política de redistribuição de terras.

O titulômetro consagra uma mudança que já estava em curso no Incra. Entre 2015 e 2016, enquanto a emissão de títulos aumentou de 1.222 para 7.356, a quantidade de famílias assentadas caiu de 26.335 para 1.686 no mesmo período.

Procurado pela reportagem, o instituto informou, por meio de nota, que “apenas são titulados aqueles projetos de assentamento nos quais o Incra já cumpriu com as suas obrigações referentes a crédito, infraestrutura e assistência técnica”.

O instituto afirma que o titulômetro é uma ferramenta de endomarketingpara valorizar o trabalho e o comprometimento dos servidores. “Não há ‘excesso de emissão’. O Incra apenas trabalha para cumprir a sua obrigação e respeitar o direito assegurado ao beneficiário da reforma agrária”. Leia a íntegra da resposta do Incra.

Corte de verbas

O esvaziamento da política criação e fortalecimento de assentamentos é confirmada pela previsão orçamentária para o ano que vem.

Embora o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) preveja redução de apenas 3% no orçamento total do Incra, há cortes significativos para as ações de criação, apoio e infraestrutura aos assentamentos.

Se a previsão for confirmada, em 2018 haverá redução de 64% na verba de desenvolvimento de assentamentos rurais, 86% a menos para assistência técnica e extensão rural e uma redução de 83% para a obtenção de imóveis rurais para a reforma agrária.

Para Rolemberg, mesmo com as economias promovidas pela concessão de títulos, “a conta não vai fechar”. “Com os cortes orçamentários, não será possível emancipar os assentamentos em boas condições e com infraestrutura consolidada”, afirma.

Elaborado pelo executivo, o PLDO ainda precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional até o final do ano, podendo ser alterado pelos parlamentares.

Em resposta às quedas na previsão de verba para a sua área, o diretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamentos do instituto, Ewerton Giovanni dos Santos, afirma que “o orçamento impacta diretamente nos investimentos de infraestrutura, mas estamos simplificando e desburocratizando os processos internos do Incra para sermos mais eficientes”.

Esvaziamento começou sob Lula

Pesquisadores da questão agrária e servidores do Incra ouvidos pela reportagem consideram que o titulômetro e os cortes vão consolidar o esvaziamento da reforma agrária, processo que teve início 2009, ainda sob o governo Lula.

Tudo começou quando foi criado o Terra Legal, programa de regularização fundiária independente do Incra, mas também subordinado ao então Ministério do Desenvolvimento Agrário (hoje Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, vinculada à Casa Civil).

O programa inaugurou a política que prioriza a concessão de títulos de propriedade. “O objetivo do Terra Legal sempre foi titular as terras, enquanto que o Incra só emitia os títulos depois de comprovar a autossuficiência dos assentamentos”, afirma Cândido Cunha, engenheiro agrônomo da Superintendência do Incra de Santarém.

Com o titulômetro, a política implementada pelo Terra Legal parece ter sido absorvida também pelo Incra. “Agora, provavelmente o Incra vai abandonar a política de criação dos assentamentos”, lamenta Rolemberg.

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NOTA PÚBLICA - Fim da Reforma Agrária e grilagem de terras legalizada na Amazônia

40 ameaças legislativas aos Direitos Humanos

MP da Grilagem

Se o esvaziamento da reforma agrária começou na gestão Lula, o movimento se intensificou sob o governo de Michel Temer. Quatro meses após tomar posse, no ano passado, Temer publicou medida provisória (MP) ampliando o alcance do Terra Legal.

O programa, até então restrito à Amazônia Legal, passou a alcançar todo o Brasil. A MP, que ficou conhecida como a “MP da grilagem”, virou lei neste ano e foi duramente criticada por ambientalistas e defensores dos direitos humanos.

A medida ganha esse nome pois legaliza a situação de áreas públicas ocupadas, o que pode facilitar a regulamentação de terras cujos títulos foram fraudados (grilagem). A lei retira ainda exigências ambientais para a regularização fundiária, o que poderá estimular o desmatamento.

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