O governo Michel Temer mandou suspender as titulações de territórios quilombolas até que o STF (Supremo Tribunal Federal) conclua o julgamento de uma ação sobre a legalidade do processo de demarcação - o que não tem prazo para ocorrer.
(Fonte/Foto: BBC).
A BBC Brasil teve acesso a um ofício enviado pela Casa Civil da Presidência ao Ministério Público Federal dizendo ter determinado a interrupção do processo após uma reunião entre diferentes agências do governo em setembro.
A titulação é a última fase da demarcação, garantindo à comunidade a posse permanente da terra.
"Após a reunião (...), aceitou-se a devolução à Sead (Secretaria Especial de Desenvolvimento Agrário) de todos os processos relacionados com a matéria território de quilombolas", diz o ofício, redigido em resposta a um questionamento do procurador Júlio José Araújo Júnior, de Volta Redonda (RJ).
Araújo havia pedido à Casa Civil informações sobre a demarcação do quilombo Alta da Serra do Mar, em Rio Claro (RJ).
É a primeira vez que o governo federal suspende titulações de áreas quilombolas por tempo indeterminado desde que essas terras começaram a ser regularizadas, em 1995.
Segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), 220 territórios já foram titulados, e outros 1.536 estão em processo de regularização.
A suspensão ocorre num momento em que o governo, sob forte pressão da bancada ruralista no Congresso, revisa suas políticas para comunidades tradicionais e indígenas.
Em entrevista recente, o ministro da Justiça, Osmar Serraglio, defendeu que, em vez de demarcar novos territórios, o governo enfoque o bem-estar dos indígenas.
Segurança jurídica
No ofício da Casa Civil ao Ministério Público Federal, assinado pelos assessores Alexandre Freire e Erick Bill Vidigal, o órgão diz que a legalidade da demarcação de áreas quilombolas foi posta em dúvida por uma ação que tramita no STF e que "tudo recomenda aguardar o desfecho do julgamento, a fim de se observar o princípio constitucional da segurança jurídica".
Levada ao STF em 2004 pelo PFL, atual DEM, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239 questiona a validade de um decreto presidencial que definiu os ritos e critérios para a demarcação.
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Nela, entre outros pontos, o DEM diz que a demarcação dessas áreas não deveria ter sido regulamentada por um decreto presidencial, e sim pelo Congresso, e questiona a possibilidade de que as comunidades quilombolas se autoidentifiquem.
O decreto 4.887, que regula o tema, foi assinado em 2003 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e alterou os trâmites da regularização de áreas quilombolas, tornando-a uma competência do Incra (até então, a tarefa cabia à Fundação Palmares).
No ofício enviado à Procuradoria, a Casa Civil diz ainda que a devolução dos processos busca confirmar a regularidade de seus trâmites, averiguar quantas famílias seriam beneficiadas por cada titulação e quanto seria gasto com indenizações.
Questionada pela BBC Brasil, a Casa Civil afirmou que a "decisão de devolução dos processos de titulação de territórios quilombolas deu-se para evitar insegurança jurídica maior e foi expedida em respeito à atividade do Supremo Tribunal Federal".
O órgão não respondeu questionamento sobre quantos processos foram devolvidos para a Secretaria Especial de Desenvolvimento Agrário.
A Casa Civil não participa diretamente da demarcação, mas tem o poder de paralisá-la, já que é responsável por mediar conflitos que surjam durante os complexos trâmites de regularização.
Vários processos se arrastam há mais de uma década e estão judicializados (quando quilombolas ou proprietários rurais recorrem à Justiça para tentar acelerar ou anular as ações).
'Nenhuma política vai andar'
Para o procurador Júlio José Araújo Júnior, o fato de haver um julgamento pendente sobre o tema não é um argumento válido para suspender as titulações.
"O governo está tentando dar um respaldo jurídico à decisão política de suspender e travar os processos de titulação", diz.
Segundo Araújo, se o governo levar em conta todos os julgamentos em curso que questionam práticas do governo, "nenhuma política pública vai andar".
O procurador afirma que a Constituição obriga o governo a demarcar as áreas quilombolas e que o Ministério Público Federal poderá recorrer à Justiça para forçá-lo a cumprir esse papel.
A responsabilidade de demarcar os territórios quilombolas foi inscrita na Constituição como uma forma de reparar os danos causados pela escravidão.
Em seu artigo 68, a Carta afirma que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".
Para Ronaldo dos Santos, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), ao devolver os processos, a Casa Civil está "antecipando uma decisão do Supremo de acordo com seu interesse sobre o resultado".
Santos diz que a titulação das terras faz toda a diferença para as comunidades. "Ela é a garantia de que elas poderão permanecer no território para manter suas tradições e seu modo de vida."
"Tivemos a abolição da escravatura sem inclusão em nenhuma política pública", afirma.
A decisão da Casa Civil ocorre em meio à diminuição das verbas para a demarcação de áreas quilombolas.
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Em 2017, o Orçamento da União destinou R$ 4,1 milhões para a atividade - o menor volume desde pelo menos 2009.
Os valores vêm caindo desde 2012, quando foram reservados R$ 51,7 milhões para a regularização desses territórios.
Julgamento empatado
O julgamento no STF sobre a validade do decreto que rege a demarcação das terras quilombolas está empatado em um a um.
Em 2012, o então ministro Cezar Peluso, que relatou o caso, acolheu o pedido do DEM e votou pela inconstitucionalidade do decreto.
Já a ministra Rosa Weber considerou que o decreto é legal. O julgamento foi retomado em 2015, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo para estudá-lo melhor. O processo foi devolvido naquele mesmo ano, mas segue parado desde então.
A inclusão do julgamento na pauta do Supremo depende da presidente da corte, Cármen Lúcia.
Questionado pela BBC Brasil, o gabinete da ministra não respondeu quando o caso poderia voltar à pauta.