Com o tema “Ameaças aos direitos indígenas e das comunidades tradicionais e experiências indígenas de enfrentamento”, a tarde do primeiro dia da XXI Assembleia do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no dia 15 de setembro, explicitou, através dos depoimentos de indígenas de diversas partes do país, a conjuntura extremamente desafiadora que os povos originários do Brasil enfrentam atualmente. A intensidade das falas de quem vivencia o cotidiano das aldeias causou comoção tanto nos missionários como nos próprios indígenas.
(Por Patrícia Bonilha, Cimi)
Trazendo a difícil realidade do estado mais violento do Brasil com os povos indígenas, a liderança Lindomar Terena afirmou que no Mato Grosso do Sul parece que não existem direitos humanos. “Sempre foi assim. E nunca abaixamos a cabeça porque sabemos que não podemos esperar do Estado brasileiro que devolvam para nós nem mesmo um palmo de terra. O triste é que a cada retomada, a cada passo que avançamos em direção ao que é nosso por direito, corremos o risco de perder algumas de nossas vidas”, lamentou ele.
Em relação a recente ida ao estado do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, Lindomar lamenta que ele, mais uma vez, mostrou sua convicção firme de que neste momento, nesta conjuntura, é impossível demarcar terra, baixar portaria declaratória ou assinar qualquer decreto de homologação devido à justificativa de possibilidade de judicialização dos casos. “Mais triste ainda é que ele disse que não vai mais tolerar retomadas de terras, nem que para isso precise enviar todas as forças armadas ao estado, e sob pena de sermos presos e respondermos por isso”, informa a liderança.
Na percepção dos indígenas, a presença do Exército, enviada ao sul do estado no início deste mês, após o assassinato de Semião Vilhalva Guarani-Kaiowá, evidenciou para quem estas forças estão a serviço, já que ficaram no portão da fazenda, defendendo os interesses e a “segurança” do fazendeiro, de modo a evitar que a comunidade pudesse avançar na retomada do seu território tradicional. “Nós, enquanto indígenas, não entendemos como a própria Justiça não tem coragem de fazer Justiça. Para nós, está posto que se esperarmos o governo defender nossos direitos, vamos morrer. E se cruzarmos os braços, corremos o risco também de morrer. Mas é melhor assim, morrer lutando... para que as gerações vindouras não passem por esta situação. Enquanto lideranças, recebemos uma responsabilidade, uma missão para lutar pelo nosso povo. Não será neste momento difícil que vamos nos acovardar e deixar de fazer a luta. Diante de tantos desafios, nossa vitória será maior. Vamos romper as cercas que separam os povos indígenas do nosso Bem Viver”, concluiu ele, bastante emocionado.
Enfrentamento ao Estado
A subprocuradora da República, Deborah Duprat, começou sua fala com uma afirmação contundente: “Precisamos partir da percepção de que o enfrentamento agora não é só contra madeireiros, mineradoras, ruralistas. Há um enfrentamento a ser travado contra o governo, contra o Estado brasileiro, que foi capturado pelas forças hegemônicas”.
Segundo ela, a luta do Legislativo contra os direitos indígenas é antiga e o Executivo também vem há tempos explicitando sua opção pelos interesses dos setores privilegiados. “Por último, o Judiciário e, principalmente, o STF [Supremo Tribunal Federal] foi capturado”. Citando o caso da Terra Indígena Limão Verde, do povo Terena, no Mato Grosso do Sul, cuja situação já estava estabilizada desde 2003, que havia sido homologada e registrada em nome da União para uso exclusivo indígena, foi em 2014 considerada pelo STF como inconstitucional e levou a uma situação de instabilidade. “As vitórias conquistadas pelo Movimento Indígena, seja na Constituinte ou depois, foram enormes. Garantiram direitos e reconfiguraram a própria sociedade, o Estado, que passou a ter que ser plural e levar em consideração as várias visões de mundo e não mais apenas a do poder hegemônico. Tudo isso parecia que correria bem, mesmo com as resistências. Mas, agora, o direito volta a trabalhar com as categorias pré-constitucionais. Voltamos à visão hegemônica de um pequeno grupo de pessoas deste país”, avalia Deborah.
Após desconstruir os argumentos utilizados pela 2a Turma do STF, baseados no marco temporal (ou seja, que os Terena deveriam estar na posse do território em 5 de outubro de 1988, apesar de terem sido expulsos) e do conceito de esbulho renitente (que os povos deveriam estar em disputa, de fato, judicial ou física), a subprocuradora explicitou que no plano dos direitos está tudo muito claro em relação aos direitos do povo Terena. “Nenhum direito humano pode depender de uma data, uma arbitrariedade formada, como é o conceito do marco temporal, como se o direito existisse até uma determinada data e depois não existisse mais”, finalizou ela.
Impactos incalculáveis
Também focando nas recentes decisões do STF que anularam atos administrativos de demarcação de terras indígenas, Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi, afirmou que no plano da disputa macropolítica, as decisões do STF suplantam os embates sobre proposições no âmbito do Congresso Nacional e do Executivo. “As consequências advindas decorrentes destas decisões do STF são de tal profundidade que não temos como dimensioná-las. Já há casos em que desembargadores de tribunais regionais e juízes de 1a instância têm usado estas decisões para derrubar outros atos administrativos de demarcação de outras terras indígenas país afora, especificamente na região Sul”, alertou Buzatto.
O fato dessas decisões terem componentes políticos extremamente fortes e não serem decisões técnicas ou jurídicas foi ressaltado pelo missionário, que evidenciou a importância de que essas decisões sejam superadas: “Precisamos buscar forças suficientes para suplantar essas decisões da 2a Turma, do contrário podemos ter um período de violências e violações ainda mais profundas do ponto de vista humano e humanitário que estamos vivendo porque essas decisões podem ser replicadas para todas as terras. Nada fica a salvo, seguro. Tudo fica passível de ações que venham a ter algum resultado no sentido da reversão da posse”.
Buzatto ressaltou que, diante da atual crise do sistema capitalista, os setores que controlam o capital intensificam a exploração dos territórios e dos seus bens naturais, vistos como fontes fáceis de lucro e capital. Nesse sentido, as terras indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais são o grande foco da ação dos atores político-econômico hegemônicos, que querem se apossar, explorar e mercantilizar essas terras em todo o país.
Segundo Jeane Bellini, da coordenação executiva da Comissão Pastoral da Terra (CPT), são justamente estes grupos mais ameaçados e impactados pelos setores econômicos hegemônicos que estão na linha de frente da resistência no Brasil nos últimos anos. ”São justamente os povos que se sentem parte dos seus territórios e que não têm identidade fora do seu lugar que resistem a esta ofensiva a serviço do capital, ao desmonte do Estado e à prática do 'dividir para dominar'. Temos muito o que aprender com eles”, concluiu ela.