Entre os dias 24 e 26 de julho de 2014, ocorreu o XIX Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI) em São Paulo. No último dia, foram apresentados os Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) selecionados pelo Congresso. Um deles foi o livro-reportagem “Marãiwatsédé: A Trajetória Xavante na Luta pela Terra”, das jornalistas formadas pela UFMT de Barra do Garças, Sckarleth Alves Martins e Dandara Morais. Dandara faz parte do Grupo de Comunicação da Articulação Xingu Araguaia (AXA). Confira entrevista com Sckarleth, uma das autoras.
(AXA - Articulação Xingu Araguaia)
O livro relata e esmiúça o histórico do povo Xavante de Marãiwatséde, que foi expulso de suas terras em 1966, poucos anos após o início do contato com não-indígenas. Seu território deu então lugar a um dos maiores latifúndios da época, a Fazenda Suiá-Missu, no nordeste mato-grossense. Nas décadas seguintes, o povo de Marãiwatsédé lutava pela própria sobrevivência e pelo retorno ao seu território tradicional. Somente no ano de 2012, após grilagem e desmatamento de suas terras, conflitos diretos e arrasto de processos judiciais, finalmente houve a desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé e o povo Xavante está começando a usufruir integralmente do seu território (leia mais na nossa reportagem especial Marãiwatsédé: do sonho à luta, da conquista ao sonho).
Tivemos a oportunidade de conversar com Sckarleth Martins, que apresentou o trabalho no Congresso da ABRAJI. Ela nos contou um pouco sobre o projeto de pesquisa e seus desdobramentos e a importância de um jornalismo comprometido que divulga as lutas populares, em particular dos povos indígenas, que são pouco noticiadas e repercutidas.
AXA – Do que se trata o livro-reportagem "Marãiwatsédé: A Trajetória Xavante na Luta pela Terra", resultado do TCC seu e de Dandara Morais?
SCKARLETH MARTINS – O livro-reportagem é um resgate da história desse povo, ao mesmo tempo em que assume um caráter denunciativo. Trata-se de um resgate histórico por conta da riqueza de detalhes sobre a vivência deste grupo Xavante, característico por sua memória oral viva e pulsante. É um resgate principalmente para nós, que, por vezes, somos alheios aos modos de vida dos povos tradicionais e à violência a que foram (e são) submetidos desde o contato com os não-índios.
À primeira vista, a história pode ter um tom meio fabuloso, porque é difícil aceitar que o Estado brasileiro tenha sido conivente com uma situação de violência por tanto tempo. Um povo que é transferido de sua terra ancestral para atender a interesses inventivos do negócio agropecuário. Em detrimento da lisura com os gastos públicos, os invasores foram agraciados com verbas federais para usufruir de um território tradicional, enquanto os Xavante ficaram à míngua perambulando por entre terras de parentes. Quando, finalmente, conseguem reaver seu território, depois de mais de quarenta anos de exílio, são postos em uma situação de conflito com pequenos produtores que, também, foram enganados. É uma trama que, mesmo repleta de reviravoltas, possui um apego ao real muito pungente.
AXA – O que as motivou a escolher este tema?
SCKARLETH – Quando estávamos no processo de pesquisa sobre o Trabalho de Conclusão de Curso, a escolha foi quase que intuitiva. Tínhamos o interesse de produzir um produto jornalístico, e a época da submissão do projeto na Universidade coincidiu com o momento da Desintrusão no Território Indígena. De fato que, quando acompanhávamos a cobertura local dos veículos de mídia, havia muita informação desencontrada e de modo muito superficial. Logo, decidimos nos aprofundar nas investigações sobre este acontecimento inédito, que é a retirada de não-índios de Terras Indígenas.
AXA – Como foi o contato e a receptividade do povo de Marãiwatsédé com a pesquisa?
SCKARLETH – Por sorte de jornalista em início de carreira (risos), tínhamos realizado um trabalho na disciplina de radiojornalismo no qual entrevistamos o filho do cacique, o Cosme Rité, que é diretor da Escola Estadual Indígena Marãiwatsédé. Nessa época, a escola fazia parte da comarca de ensino de Barra do Garças (MT), e o Cosme sempre ia à cidade para resolver pendências burocráticas no Centro de Formação e Atualização dos Profissionais de Educação Básica, o Cefapro. Por conta do interesse do Cosme pela educação, apresentamos a nossa ideia de realizar um livro-reportagem sobre a história dos Xavante Marãiwatsédé, e antes mesmo de pedirmos autorização para visitar a aldeia ele nos convidou para uma festa junto ao seu povo. Esta foi a primeira mostra de confiança que ele depositou em nós. O nosso trabalho seria impossível se não tivéssemos a confiança e o apoio dos Xavante.
AXA – Como foi a ida para a aldeia?
SCKARLETH – Quando, enfim, nos sentimos preparadas para visitarmos a aldeia nos demos conta do desafio que seria superar a barreira da língua. Grande parte dos anciãos Xavante não fala português, e eles eram de suma importância para o trabalho, pois viveram em Marãiwatsédé antes do contato com os não índios e sabiam como era a vida longe de sua terra ancestral. Nesta etapa contamos com o auxílio do diretor Cosme, que traduziu as entrevistas e nos apresentou à comunidade.
Quando chegamos à aldeia, todo um mundo de estereótipos caiu por terra. Sabe aquele olhar meio mítico sobre os povos tradicionais em documentários e obras de literatura? Pois bem, a realidade é bem menos lúdica, ainda que colorida. Em Marãiwatséde nos deparamos com uma sociedade que realmente sabe o significado de viver em comunidade. À época, os Xavante estavam a poucos meses vivendo em seu território sem a presença de invasores. Estavam, também, passando por uma crise de desnutrição muito grave, suspeita de envenenamento de sua água, e ainda assim, havia um certo ar de esperança e alegria por terem, enfim, retornado para sua terra ancestral. Era perceptível este mix de emoções em cada conversa, em cada ritual que presenciamos.
AXA – De modo geral, como foi o processo de pesquisa e a construção do livro?
SCKARLETH – Como tínhamos que escrever sobre uma comunidade tradicional, fomos pesquisar o que já havia sido feito sobre os Xavante e demais povos. Nesta etapa, o trabalho voltou-se para leituras mais antropológicas e de estudos culturais. Com relação à pesquisa documental enfrentamos muitas dificuldades para ter acesso às informações junto aos órgãos governamentais. Eles se portaram de forma muito reticente e resistente, mesmo com a Lei de Acesso à Informação em vigor. Bem, depois das entrevistas e da garimpagem de documentos, criamos um banco de dados com todas as informações sobre os Xavante Marãiwatsédé, com datas, nomes dos envolvidos na transferência deste povo e valores cedidos pela Sudam aos invasores. Depois dessa organização prévia, escrever o livro foi fluido porque sempre recorríamos aos documentos para conferir alguns dados e às entrevistas.
Pelo fato da história ter muitos reveses, preferimos por uma ordem não cronológica dos fatos. O primeiro capítulo relata os desafios da vivência atual dos Xavante, com o reflorestamento da área, a saúde da comunidade, a educação etc. No segundo capítulo, nos remetemos à vida em Marãiwatsédé antes do contato com os não índios. Nesta etapa resgatamos um pouco da história dos primeiros invasores da área, até a chegada das grandes companhias internacionais e da exploração desenfreada do solo com incentivos do governo federal. No último capítulo contamos sobre como os Xavante se organizaram para recuperar seu território e se reencontrarem com os egressos de Marãiwatsédé.
AXA – Quais foram os desdobramentos e resultados do livro?
SCKARLETH – O resultado que esperamos deste trabalho, de fato, é que a história de luta do povo Xavante alcance um sem número de pessoas. Muitos povos foram e ainda são exterminados física e culturalmente. Não temos de ser tolerantes com os privilégios de pessoas privilegiadas em detrimento dos direitos das minorias.
Este livro foi selecionado pela ABRAJI para ser apresentado no seu 9º Congresso. A Abraji priorizou os Trabalhos de Conclusão de Curso que, na sua produção, fizessem uso de métodos investigativos e contato direto com as fontes de informação. O livro ainda não foi publicado, então participar deste evento foi uma grata surpresa e uma grande conquista, não só para nós que produzimos o trabalho, mas para a história que, mais uma vez, pôde ultrapassar os limites da universidade. Estamos estudando algumas plataformas de financiamento coletivo e editoras. Além do Congresso da Abraji, apresentamos, também, um artigo científico no Encontro Nacional de Jornalismo Ambiental, em Porto Alegre-RS. Este trabalho realiza uma análise de cobertura de três veículos de mídia online, com linhas editorias diferentes, sobre a ocupação da Câmara dos Deputados durante o Abril indígena de 2013. A ideia é questionar os modos de relatar um mesmo acontecimento em cada veículo e os possíveis desdobramentos.
AXA – O que lhe chamou a atenção na apresentação do trabalho no Congresso da ABRAJI?
SCKARLETH – É curioso notar como os povos tradicionais despertam a curiosidade das pessoas. Às vezes com um tom meio pitoresco e romântico, mas sempre muito afoitas por informação. Durante o Congresso da Abraji, diversos jornalistas discutiram a respeito do processo de apuração não se basear só no trabalho maçante de ficar em frente ao computador revisando planilhas, mas se dar no contato com as fontes, com os envolvidos nos acontecimentos que se pretende investigar. No painel que apresentei o livro-reportagem, por exemplo, os demais trabalhos relataram as mesmas dificuldades com relação a obter informações junto aos órgãos oficiais e trocamos experiências sobre como superar as dificuldades.
AXA – Havia outros trabalhos semelhantes à temática tratada por vocês no Congresso?
SCKARLETH – Todos os trabalhos deste painel foram voltados para investigações de situação de conflito e de fragilidade das minorias. Havia um trabalho sobre a dignidade humana dos homoafetivos e as descobertas científicas sobre as sexualidades. Um sobre a vida no presídio feminino no interior do estado da Bahia. E outro sobre a contaminação de uma comunidade do interior da Bahia por metais pesados.
AXA – De que forma vocês acreditam que este trabalho pode ajudar a comunidade de Marãiwatsédé?
SCKARLETH – Nós não cremos que, com este trabalho, nós mudaremos o mundo. Ainda assim o fizemos acreditando ser possível! Se o livro-reportagem possibilitar um movimento de reflexão por parte dos leitores, já nos será de grande valia. Mas, se conseguirmos motivar outros profissionais e entidades a se dedicarem às causas das minorias, será uma grata surpresa.
AXA – No Brasil, como você enxerga o alcance do jornalismo que dá voz às lutas populares e às comunidades?
SCKARLETH – O jornalismo por si é um instrumento de resistência e denúncia social. No Brasil, desde a redemocratização em 1988, tem crescido o número organizações do terceiro setor voltadas às causas de minorias e às causas ambientais. De fato, é um movimento ainda pequeno, em vista do alcance e da receita das grandes corporações, mas as novas mídias surgem neste contexto como plataforma de resistência e pluralidade. Ainda que, com a democratização dos meios de comunicação já existam novos horizontes, cremos que há de se desenvolver um trabalho de educação midiática da sociedade brasileira. Se possível, seremos 'mais' democráticos, quando, de fato, a informação não for um privilégio, mas um direito.