A produção de alimentos sem agrotóxicos no assentamento Milton Santos, entre os municípios de Americana e Cosmópolis, no interior de São Paulo, está prejudicada e pode ser interrompida. As 68 famílias de pequenos agricultores que vivem no local pararam de investir na terra após a Justiça Federal determinar, por meio de liminar expedida no final de dezembro do ano passado, a reintegração de posse da área. O assentamento abastece cidades no entorno com frutas e hortaliças e é considerado referência em agroecologia, com técnicas de produção de alimentos sem veneno.
Da Repórter Brasil
Segundo a ordem judicial, os moradores da área, que também é conhecida como “Sítio Boa Vista”, têm até dia 30*, para sair.
O assentamento integra a Rede de Agroecologia do Leste Paulista, conjunto de agrônomos, agricultores e pesquisadores que têm por objetivo comum o desenvolvimento de práticas ecológicas em São Paulo, e se tornou um dos mais produtivos do interior do Estado de São Paulo. De acordo com a coordenação do assentamento, a previsão inicial para 2013 é de produção de 250 toneladas de alimentos livres de agrotóxicos a serem distribuídos a 13 entidades diferentes, em pelo menos cinco municípios da região. Para os técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Comuna da Terra Milton Santos, nome oficial do assentamento, é um modelo em agroecologia.
“Historicamente, o projeto da comuna já vem com essa proposta de se produzir e viver dentro do assentamento, além de abastecer escolas ou outras entidades da região”, diz Vivian Ferreira Franco, agrônoma que trabalha no assentamento por meio de um convênio do Incra. Ela também destaca que a produção dos agricultores possui alto valor agregado e tem, como carro-chefe, a chamada “lavoura branca”, que compreende culturas como arroz, feijão, milho e mandioca.
Na lavoura de José Mazzo, 78, a maioria são frutas, mas ele diz que consegue tirar uma renda mensal suficiente para viver bem em seu lote de terra. Sem contar a aposentadoria que recebe, ele ganha em média R$800,00 mensais com aquilo que planta. Ele conta 19 laranjeiras, 25 pés de graviola, 12 de jaca e 20 de carambola, além de outros de berinjela e banana.
E, apesar da idade avançada, afirma com orgulho que sozinho dá conta de sua própria produção. “Procuro trabalhar a vontade do corpo. O serviço nunca acaba. É melhor trabalhar duas horas e fazer um pouquinho todo dia”.
“Estou contente com a minha plantação. Mas esse impasse [judicial] estressa a gente. Eu vim para cá para ter um pedaço de terra e ficar tranqüilo”, continua José, lembrando do imbróglio que envolve o assentamento.
Fartura
“Parece que Deus ajuda a gente aqui. A gente não consegue esvaziar o freezer, é uma fartura só”, conta Anália Gusmão Chaves, 53, agricultora, que no assentamento também é conhecida como "tia" Naia. Na sua porção de terras, com extensão de 1 ha (aproximadamente 10mil m², que é o lote médio de cada família no assentamento), ela soma mais de 25 culturas diferentes, entre frutas, legumes, raízes e verduras. Além disso, possui sete cabeças de gado, em sua maioria para a produção de leite, e mais de 90 frangos. Ela também produz polpas de frutas, geléias e biscoitos. “Faço uma série de coisas com parte das frutas que eu produzo. O povo que vem me visitar diz que gosta muito”, completa.
Embora reconheça a fartura, "tia" Naia, porém, anota que não foi fácil o período até se estabilizar e conseguir uma plantação com colheita regular no assentamento. “Foram uns três ou quatro anos até começar a produzir”, lembra. Por isso também, ela insiste que quer ficar. “Eu não me imagino saindo daqui. É morte na certa, como o povo vem dizendo. Como vou largar tudo?”, questiona.
Irene Soares da Silva Assis, 47, concorda. “Aqui a gente conquistou uma vida. Tudo o que a gente tinha passou para a frente para investir na terra”. Assim como outros que vivem no Milton Santos, ela está apreensiva. “Eu tenho uma plantação de mandioca que dá até tristeza ver”, conta. Em torno de sua casa, há pés de alface, laranjeiras, e muitas culturas de frutas, raízes e legumes que crescem ao sabor da incerteza.
Além de prejudicar a produção, o impasse jurídico afeta planos das famílias camponesas. Irene, por exemplo, teme não conseguir bancar os financiamentos que contratou junto ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) ou outros programas de crédito para pequenos produtores rurais. “Fizemos investimentos, ano passado [2012]. Agora, esse ano [de 2013] é o ano de a gente ganhar com a produção. Mas a gente está inseguro, não tem mais como investir”, explica.
Outras famílias também captaram recursos junto ao Incra para a construção de suas casas ou então para ajudar no desenvolvimento das lavouras. Boa parte deles são recursos públicos de fomento à reforma agrária. No caso de uma reintegração de posse, parte do dinheiro investido no assentamento seria desperdiçado.
“A gente é que leva o arroz, que leva o feijão. Se não fossemos nós, rurais, quem é que levaria a comida? Isso que chega na mesa teve alguém que plantou, que criou”, completa a camponesa.
Mesmo quem vive no local e não trabalha com o campo, está sendo afetado pelo possível despejo. Selene Ribeiro, 17, recém-formada em um curso de webdesign na cidade de Americana (SP), aguarda apreensiva para saber se continuará ou não vivendo no local, antes de começar a trabalhar. “Esse impasse está atrasando a minha vida. A maioria da minha adolescência passei aqui. A gente não quer sair”, diz.
Latifúndio e cana de açúcar
O pedido de despejo na Justiça partiu da família Abdalla e da Usina Açucareira Ester S/A, que reivindicam a posse do terreno e planejam retomar a produção de cana de açúcar na área hoje ocupada pelas famílias (veja quadro). Por ordem judicial, a partir da notificação às famílias o Incra tem 15 dias para retirar as famílias do assentamento, prazo que se esgota dia 30. A partir daí, a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM) pode ser acionada pelo judiciário para realizar a remoção à força.
As famílias temem abusos e violações de direitos humanos, semelhantes às que ocorreram na reintegração de Pinheirinho, bairro na cidade de São José dos Campos (SP), onde viveram 2.800 pessoas por mais de 8 anos. A remoção aconteceu em janeiro de 2012 e foi marcada por denúncias feitas por entidades da sociedade civil de abusos de poder e excesso de violência por parte da PM.
Temendo problemas semelhantes ao de Pinheirinho, Pepe Vargas, ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA), órgão ao qual o Incra é subordinado, entrou em contato em dezembro com Geraldo Alckmin (PSDB), governador do Estado de São Paulo. Segundo a chefia do gabinete do MDA, o ministro manifestou na ocasião preocupação em relação a uma possível ação da PM e informou que o Incra tenta na Justiça reverter a decisão de reintegração de posse. Procurada pela Repórter Brasil, a assessoria do governador não se prounciou sobre o caso.
Em meio ao complicado imbróglio judicial na disputa pela área, lideranças do Milton Santos defendem que a única saída para evitar o despejo é que a presidenta da República, Dilma Rousseff (PT), assine decreto determinando a desapropriação da área por interesse social. Desde que assumiu a presidência, Dilma assinou apenas 12 decretos de desapropriação por interesse social, todas beneficiando comunidades quilombolas. Nenhuma área foi desapropriada para reforma agrária por decreto presidencial. Ao todo, foram 105 decretos de desapropriação - além dos 12 para interesse social, 93 deles foram para fins de utilidade pública, categoria nas quais se enquadram concessões para rodovias e obras de infraestrutura.
Maria de Fátima da Silva, 39, que participa da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e vive no assentamento, cobra providências urgentes e defende que a retirada das famílias representaria um “retrocesso” da política de reforma agrária no Brasil. “É uma falta de compromisso com os assentados e com a reforma agrária”, diz a dirigente, que é crítica à política agrária do governo federal. “Não houve nenhum avanço. Além de não assentar novas famílias, retirar quem está assentado abre a possibilidade de que isso aconteça em outros assentamentos”, ressalta.
Luciana Henrique da Silva, 36, coordenadora do assentamento, argumenta que as famílias têm títulos homologados pelo Incra reconhecendo o direito aos lotes e destaca o fato de a área ser referência em agroecologia. “Aqui não é só um espaço de moradia. É um espaço de produção e de sustento, é uma comunidade”, afirma. “Enquanto famílias, não sabemos o que fazer para resistir, mas não estamos dispostos a sair. Queremos lutar pela desapropriação por interesse social”, explica.
Compromisso da prefeitura
Além de pressionar o governo federal e estadual, os moradores procuraram também o prefeito da cidade de Americana (SP), Diego De Nadai (PSDB). Na segunda-feira, dia 14, o político se comprometeu a tomar todas as medidas possíveis para evitar o despejo dos agricultores.
O prefeito defendeu que a presidenta da República interceda e assine o decreto de desapropriação da área. Na última quarta-feira, dia 16, formalizou solicitação para que o governo federal se empenhe “a fim de determinar a imediata desapropriação da área”. Ele também se comprometeu a marcar uma audiência com a Casa Civil do governo do estado para tratar do tema e da reintegração de posse da área por parte da PM, determinada pela Justiça.
Caso estas duas investidas fracassem, Diego De Nadai prometeu declarar a região do assentamento área de interesse público do município, medida que pode levar a reviravolda no processo na Justiça. “Eu estou do lado de vocês aqui. Vamos tentar formalizar essa documentação”, assumiu.
Em nota sobre a situação do assentamento, o Incra diz que se “mantém ao lado das famílias assentadas” e que tem “a convicção de que a terra em questão é pública e deve permanecer como área destinada à Reforma Agrária”. Declara também que “respeita a decisão judicial, mas reitera que está tomando todas as medidas judiciais e administrativas para solucionar o caso e assegurar que as famílias assentadas permaneçam produzindo no local”.
*Colaborou Antônio Kanova