Carta de Inaldo Serejo a Flaviano Pinto Neto, liderança da comunidade quilombola do Charco (MA) assassinado por pistoleiros com sete tiros na cabeça há dois anos. Ele fala sobre sua visita ao Charco e sobre a luta deste povo pela retomada do território.
Caro companheiro Flaviano Pinto,
Estou chegando do Charco, tua terra, quase liberta. Cheguei já era noite banhada pela lua, minha companheira de estrada quase intrafegável. Durante a viagem fiquei imaginando como seria a minha chegada a essa tua terra. Finalmente ouvi o som dos tambores. Vinha do Acampamento – dois barracos cobertos com palha de babaçu, sem paredes, alguma dezenas de redes de dormir estendidas esperando corpos cansados da faina diária, mas afagados pela certeza do dever cumprido.
No centro, tambores e fogo. Homens, mulheres – adolescentes e jovens e adultos. Aos poucos entre abraços e sorrisos fui levado à roda e logo comecei acompanhar a música. Mais tarde quis saber sobre a vida no acampamento – já são 21 dias. No meio da noite acordamos com o barulho da chuva. Foi preciso reorganizar as redes armadas num barraco com a cobertura melhor. Finalmente todos voltamos a dormir até os primeiros raios de sol.
Caro Bic – como me ensinaram os que mais tempo conviveram contigo - todos sabemos o quanto tu gostaria de estar vivendo este momento tão importante para os negros e as negras do Charco e Juçaral.
A retomada do território banhado por teu sangue está se dando num momento lindo. Os paus d’arcos amarelos aqui e acolá ponteiam o céu azul de setembro, suas pétalas douradas cobrem o chão e num bailado sutil as sementes se lançam para a continuidade da vida. O mulunduzeiro que se levanta bem no coração do território está lindo. Seus galhos desfolhados e acinzentados não permitem que ele se encha de soberba apesar de suas flores num róseo suave e intenso. As folhas se deixam cair. Tu também, Bic, entregaste a tua vida e nós plantamos o teu corpo na terra – a tua terra.
No dia 30 de novembro 2010 – há exatos 30 dias do teu Martírio-Páscoa – o velho Gorel profetizou: “as nossas lágrimas de dor misturadas ao sangue do nosso Bic serão a tinta nova com a qual escreveremos uma nova História”.
Durante o tempo que estive com o teu povo ouvi sobre o tempo do cativeiro – cativeiro recente. As lembranças do sofrimento continuam vivas. Entendo. Elas continuam ‘vivas’ para que nunca haja escravos em nosso meio. Tal como no Memorial da Páscoa Judaica o relato do tempo da escravidão é parte constituinte da celebração. Mas “Javé ouviu o nosso clamor e viu nosso sofrimento por causa dos nossos opressores e desceu para nos libertar”.
Todos os que lutamos pela libertação da Terra e dos seus filhos e suas filhas podemos cantar: “Virá o dia em que todos ao levantar a vista veremos nesta terra reinar a liberdade”.
Durante todo o dia vi meninos e meninas tocarem os tambores. Às vezes os toques eram misturados, mas carregam as energias da Mãe-África. Em algum canto sempre havia pequenos grupos conversando e/ou realizando alguma atividade – o acampamento é mesmo uma escola. Ao final do segundo dia, numa roda de conversa, “novas” lembranças do tempo do cativeiro. Bete partilhou um constrangimento vivido por ela quando foi dispensada durante o corte do arroz por não servir pra nada – detalhe: era quase meio dia e ela saiu sem pagamento e sem comida.
Flaviano, o povo está feliz. Nos rostos há expressão da realização da justiça. Todos os dias chegam notícias e solidariedade de quilombos e pessoas de lugares diversos deste Brasil. As bandeiras do MOQUIBOM estão ponteando o caminho ao território. A foto de Doroty, mártir de toda a Amazônia, está ao lado da tua como seta a apontar o rumo da Terra Sem Males, o Quilombo-Páscoa.
Sei que tu não precisas desta carta. Tu estás presente na vida do quilombo Charco. Eu, sim, às vezes fico distante. Tu és PRESENÇA! Aliás, é por causa do teu sangue derramado brutalmente por mãos assassinas do latifúndio que o teu povo retomou o território do Charco, assim se manifestou nosso amigo Aquiles. Na reunião que marcou a data da retomada do território todos reafirmaram o compromisso de lutarem até o cumprimento da Palavra:
“Ele vive viverá em Paz e sua descendência possuirá a terra”.
É isso, meu camarada, por aqui continuaremos a luta dos nossos ancestrais para libertar a terra. E em cada palmo afagado e abraçado sentiremos tua presença e a de todos os que tiveram suas vestes lavadas no sangue do Cordeiro.
Maranhão - Tempo das Flores dos Ipês
Setembro/2012
Inaldo Serejo