COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

A tensão seguia nesta quarta-feira, 2, depois de quatro meses de sucessivas retomadas e confrontos com pistoleiros – chamados de seguranças pelos fazendeiros. Com quase a totalidade dos 54,100 mil hectares reocupados pelos indígenas, os invasores expulsos tentavam recuperar algumas áreas, pois a intenção era evitar o fato consumado. Rumores diziam que nesta sexta-feira, 4, entraria na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) a votação da anulação dos títulos de posse incidentes em área indígena demarcada.

Fonte: Cimi - Renato Santana, de Brasília (DF)

Viaturas da Força Nacional e de tropas de elite da Polícia Federal circulavam pelos ramais que cortam a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, extremo sul baiano, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nas fazendas retomadas, indígenas mantinham-se atentos. Nas cidades de Pau Brasil, Itajú do Colônia e Camacan, cujas terras a área indígena se distribui, carros eram revistados e policiais se mantinham de prontidão. 

Porém, a vida seguia seu curso sob o sol escaldante, que não perdoava nenhum dos lados de uma história de expulsões e esbulhos que há quase um século teve início e há 30 anos estava nas mãos do STF: a anulação dos títulos de posse de fazendeiros concedidos de forma ilegal pelo governo da Bahia na década de 1960, que tramitava como uma Ação Cível Originária (ACO) e tinha parecer favorável do relator, o ex-ministro Eros Grau.

 

Numa das escolas indígenas da aldeia Caramuru, retomada ainda nos anos 1980, cacique Ilza Rodrigues da Silva Pataxó Hã-Hã-Hãe conversava com as crianças quando recebeu a notícia: os ministros do STF tinham iniciado a votação da ACO e Carmem Lúcia estava pronunciando seu voto. “Saíamos correndo para confirmar, até que liguei para Itabuna e descobri que estávamos ganhando de dois a zero (Carmem Lúcia e Rosa Weber já tinham votado pela anulação)”, explica a cacique. 

Quem estava na roça largou a enxada, as aulas foram suspensas e a primeira roda de Toré foi armada. Do voto das ministras, seguiram os de Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Marco Aurélio Mello, que votou contra a anulação dos títulos e a favor dos invasores, Celso de Mello e o presidente do STF, Ayres Brito. Somado ao voto de Eros Grau, sete posições favoráveis ao pedido de anulação e apenas uma contra. Uma vitória sem precedentes, histórica e que recompensa as dezenas de mortes, entre elas a de Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe, queimado vivo num ponto de ônibus em Brasília há 15 anos, enquanto realizava articulações entorno das terras de seu povo.

 

Surpresa e alegria 

Os indígenas foram pegos de surpresa pela votação da ACO. Como não entrou na pauta, os Pataxó Hã-Hã-Hãe não esperavam que os ministros fossem abordar a matéria. Porém, a ministra Carmem Lúcia pediu ao presidente do STF que o pedido de anulação dos títulos de posse de 186 fazendeiros invasores dos 54,100 mil hectares da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu fosse apreciado em face dos crescentes conflitos na região. 

Articulados, os ministros concordaram e Carmem Lúcia pronunciou seu voto. Argumentou o que a levou a decidir pela anulação dos títulos por uma hora. “O resultado foi muito bom, sentimos uma grande alegria. Eu não esperava que fosse uma decisão contrária. Não seria possível que depois de 30 anos de espera, de lutas e caminhadas o STF não fizesse justiça”, explica o cacique Nailton Muniz Pataxó Hã-Hã-Hãe. 

O cacique lembra que se preocupava em morrer sem ver o fim da luta pela terra. Agora afirma que seus filhos e netos não derramarão mais sangue para tê-la. Nailton tem 75 anos e desde os 35 é liderança do povo. Sofreu ameaças, atentados e todo tipo de criminalização. Resistiu a tudo como tantas outras lideranças, mas viu dezenas de Pataxó Hã-Hã-Hãe tombarem pelas mãos dos pistoleiros. 

Por outro lado, o início das retomadas em janeiro pareceu um erro, porque o STF poderia entender como pressão. Ao menos assim algumas leituras foram feitas. Ocorreu exatamente o contrário: o ministro Ayres Brito frisou durante a votação que a constante luta pela ocupação do território mantém provas de que os indígenas estão vinculados a terra. Já o ministro Celso de Mello trouxe o indigenato (instituto que reconhece as terras indígenas como direito originário), criado no século XVII, frisando que as constituições que se seguiram só o reafirmaram. 

Argumentos que desfizeram a defesa do ministro Marco Aurélio, que afirmou que os Pataxó Hã-Hã-Hãe não estavam sobre a terra na Constituição de 1967, avocando o conceito de temporalidade estabelecido pelas condicionantes da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e por isso os título não podiam ser anulados, pois são de boa fé.

“Com essa decisão, fica claro para os fazendeiros que agora é um novo momento e que entendam que a terra é dos Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nunca duvidamos disso. O que se precisa fazer agora é criar estratégias de ocupação, com aldeias e agricultura, para proteger o território”, destaca cacique Nailton.  

Ameaças e planos

Reginaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe estava em Salvador quando recebeu a notícia de que os ministros do STF votavam a nulidade dos títulos. “Tentei manter a calma. Sabíamos que o STF não ia votar contra a gente, porque sempre tivemos certeza de que essa terra sempre foi nossa”, diz. Para o cacique, o desafio agora é recuperar a floresta, ressuscitar as nascentes dos rios e fortalecer o solo para a agricultura.  

Uma assembleia envolvendo todo o povo Pataxó Hã-Hã-Hãe ocorrerá nos próximos dias para que caciques e lideranças decidam ao lado da comunidade os próximos passos. Os indígenas pretendem avaliar o processo das retomadas até o julgamento desta quarta-feira na sessão do STF. Além desses pontos, vão tratar da segurança: “Não podemos descartar que os pistoleiros queiram se vingar, que os fazendeiros estão mordidos com a derrota. Estamos atentos a qualquer tipo de agressão”, destaca cacique Reginaldo.

Antes do julgamento, a posse de oito a dez fazendas faltava para que todo o território estivesse em posse dos Pataxó Hã-Hã-Hãe. Porém, as cerca de 20 mil cabeças de gado tinham sido retiradas, bem como os fazendeiros também não ocupavam mais as sedes das fazendas. Restavam apenas os ‘seguranças’ das áreas.

 

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