COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Comemorando os 90 de nosso bispo Pedro Casaldáliga, queremos relembrar os momentos significativos da sua ordenação episcopal no dia 23 de outubro de 1971 e as repercussões da Carta Pastoral “UMA IGREJA DA AMAZÔNIA EM CONFLITO COM O LATITÚNDIO E A MARGINALIZAÇÃO SOCIAL”, lançada naquela ocasião. Reproduzimos aqui o que foi publicado no Jornal Alvorada, em Retalhos de Nossa História, na edição de setembro/outubro de 1996 e que foi republicado agora na edição especial comemorativa de seus 90 anos de vida, 50 de Brasil, fevereiro 2018.

“São Félix do Araguaia, 23 de outubro de 1971. Noite. À beira do rio, Dom Fernando Gomes dos Santos, arcebispo de Goiânia, Dom Tomás Balduino, bispo de Goiás e Dom Juvenal Roriz, bispo de Rubiataba, consagram como bispo a Pedro Casaldáliga.

Esta ordenação marcaria profundamente a história da recém-criada Prelazia de São Félix do Araguaia e, podemos dizer, da Igreja do Brasil

Uma celebração carregada de fé, de simplicidade e de cheiro do povo e que teve o Araguaia como testemunha”.

CHAPÉU DE PALHA

Como sinal de identificação com o povo e do despojamento com que esta igreja queria se revestir, o novo bispo não aceitou qualquer insígnia ou distintivo que o distanciasse do povo a quem queria servir.

A mitra foi substituída por um chapéu de palha sertanejo. Um remo, feito pelos Tapirapé, substituiu o báculo. O anel de tucum, feito pelos índios da região, marcaria o compromisso com sua causa. (O anel que cursilhistas amigos de Madri enviaram, foi mandado como recordação e sinal de carinho à velha mãe, na Espanha).

Assim dizia o cartão-lembrança distribuído aos presentes:

Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo, o sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor.

Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti.

O teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra.

Não terás outro escudo que a força da Esperança e a liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outras luvas que o serviço do Amor. ”

As leituras bíblicas, traduzidas para a linguagem regional, lembravam os compromissos que o bispo assumia naquele momento.

Eu sou o bom vaqueiro. O bom vaqueiro arrisca a vida pelo seu gado. Aquele que não é vaqueiro e que não zela o gado, quando vem a onça, ele foge.

Eu sou o bom vaqueiro. Conheço o meu gado e o meu gado me conhece e dou a minha vida pelo meu gado. Tenho outros gados que não estão neste retiro. Eu devo ir atrás deles. E eles escutarão o meu aboio e haverá um rebanho só.” (Jo 10, 11-16)

“UM DOCUMENTO CHEIO DE DORES”

No dia da sagração episcopal foi distribuída a Carta Pastoral “UMA IGREJA DA AMAZÔNIA EM CONFLITO COM O LATIFÚNDIO E A MARGINALIZAÇÃO SOCIAL”. Em 123 páginas, a carta descreve a Prelazia, sua situação geográfica, econômica e social, mas, sobretudo, denuncia as injustiças sofridas pelos posseiros, índios e peões, provocadas pelas grandes empresas que estavam se estabelecendo na região com o dinheiro farto dos cofres públicos, através dos incentivos fiscais, em projetos aprovados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM.

Todas as denúncias vinham comprovadas com uma série de documentos que até hoje ninguém contestou.

A carta apela para a consciência e a solidariedade dos cristãos. Apelava também aos latifundiários: “pediríamos, se nos quisessem ouvir, um simples pronunciamento entre sua fé e seu egoísmo”. Apelava às autoridades: “Apelamos  às supremas autoridades federais, para que escutem o clamor abafado do povo; para que subordinem os interesses dos particulares ao bem comum; a política da ‘pata do boi’, à política do homem.”

E na carta se expressavam, de forma clara, os compromissos desta igreja, movida pelo Evangelho de Jesus Cristo na luta ao lado deste povo esquecido.

O Boletim “NOTÍCIAS” da CNBB, a qualificou de “UM DOCUMENTO CHEIO DE DORES”.

REPERCUSSÃO NACIONAL

A carta foi divulgada pela CNBB no dia 9 de novembro e encontrou enorme repercussão em todo o Brasil. Jornais de quase todos os estados divulgaram o documento e muitos destacaram trechos inteiros do mesmo.

O jornal “O SÃO PAULO”, da Arquidiocese de São Paulo, já em 23/10/71, comentava com destaque a carta e no dia 23/11/71 falava da repercussão que estava provocando.

O “JORNAL DO BRASIL” do Rio de Janeiro no dia 11/11/71, publicou editorial intitulado: “DENÚNCIA DO BISPO”, em que dizia: “Não há dúvida de que o documento do Bispo de São Felix não pode cair no vazio. Surge num momento de certo modo propício e fere um tema que está nas cogitações das autoridades, empenhadas em integrar um país de proporções continentais, como é o nosso” ( Jornal do Brasil – 11/11/71).

Já “O ESTADO DE SÃO PAULO”, defensor e porta-voz dos latifundiários publicou editorial com o seguinte título: “A MÁ FÉ  E A DEMAGOGIA DESTE BISPO” (OESP 13/11/71)  e o “JORNAL DA TARDE” também de São Paulo publicou: “A INJUSTIÇA DO DOCUMENTO SOBRE A AMAZÔNIA”  (JT 15/11/71). Os dois editoriais defendem os latifundiários, fazendo-os passar por grandes desbravadores. Estes editoriais  foram elogiados pela Associação dos Empresários Agropecuários da Amazônia e pelo dono da Fazenda Suiá-Missu, Herminio Ometto (O ESP – 2/12/71).

O jornalista Sebastião Nery, em sua coluna no jornal ‘TRIBUNA DA IMPRENSA”, do Rio de janeiro, transcreve trechos da carta, dando eco às denúncias do bispo. (Tribuna da Imprensa 11/11/71).

Várias agências de notícias internacionais e a Nunciatura Apostólica, procuraram na CNBB em Brasília, cópias do documento.

DOCUMENTO “LIMPO, PRECISO E IMPARCIAL”

A reação das autoridades diante do documento foi diferente.

O presidente da FUNAI, Gal. Bandeira de Melo e o Ministério do Interior negaram-se a comentá-las.

Já a SUDAM, através do Cel. Igrejas Lopes, disse que o assunto já era do conhecimento dos organismos de segurança e que “nosso país é democrático e por isso assegura a qualquer um ter terra, latifúndios ou minifúndios” (JB 11/11/71). A “FOLHA DO NORTE”, de Belém, reproduz as críticas do Cel. Igrejas, com a seguinte manchete: “BISPO SEM FÉ PARA IGREJAS” (Folha do Norte 11/11/71). O Coronel dizia que o documento era “subversivo” e “caluniador”.

O presidente do INCRA, José Francisco Cavalcanti disse que “as denúncias representam uma realidade que deverá ser modificada em breve com as iniciativas já estruturadas de discriminação de terras” (JB 12/11/71).

O Senador Correia da Costa, da Arena de Mato Grosso, afirmou que “jamais teve conhecimento de trabalho escravo no Mato Grosso” ... e que “em Mato Grosso reina paz social” (Folha de São Paulo 11/11/71).

O Governador do Estado, José Fragelli, disse que “o bispo exagerou ao denunciar injustiças” (Globo 16/11/71).

As declarações do Cel. Igrejas Lopes foram rebatidas pelos Bispos do Norte 1 reunidos que enviaram telegramas de apoio e solidariedade ao Bispo Pedro e por Dom Ivo Lorscheider,  secretário Geral da CNBB, que considerou o documento “limpo, preciso e imparcial.”  É muito fácil dizer o que o Cel. Igrejas disse, quero ver ele provar como fez o bispo de São Félix”, disse dom Ivo (Jornal da Tarde – São Paulo 12/11/71).

Muitos hoje consideram esta Carta Pastoral um marco na história da Igreja do Brasil, pela coragem da denúncia. Foi traduzida para diversos idiomas.

 

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