COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Agentes da CPT de todo o Brasil se reuniram em Goiânia (GO) entre os dias 4 e 6 de abril, durante o Conselho Nacional da entidade. Além das discussões e definições internas, o grupo debateu a conjuntura política nacional, com a assessoria do coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos.

(Cristiane Passos - Setor de Comunicação da CPT Nacional)

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De acordo com Boulos, devemos pensar o cenário grave que vivemos hoje, em especial o processo do golpe, a partir do esgotamento de dois pactos que haviam sido construídos na sociedade brasileira. O primeiro pacto, que agora está indo para o buraco, é o pacto feito durante a Constituinte de 1988, que fundou o que se chamou de a Nova República, e que subsiste no Brasil até hoje. Ali era o momento de declínio da ditadura militar. “De certo modo hoje vivemos uma situação parecida. Ali a ditadura perdia força e não causava mais coesão social. Hoje o regime da Nova República ainda é o que vigora no país, mas também perdeu a capacidade de unir a sociedade. Há uma crise de legitimidade de representatividade colocada”. Esse pacto fundou um regime de acordos. O povo iria eleger seus governantes, mas dentro de um regime onde o poder econômico interviria muito e onde as oligarquias regionais teriam uma força no parlamento. A Nova República favoreceu o poder das oligarquias locais.

“Construiu-se um arranjo e o azeite para a engrenagem funcionar era a corrupção. Ela é a base estrutural desse governo, por meio, por exemplo, dos financiamentos privados de campanhas. Esse foi o regime que se estabeleceu e, com todos os limites, foi o que funcionou até agora. Até chegar nessa crise de hegemonia que temos hoje. E essa crise foi anunciada, ela não surgiu com o golpe. Vamos pegar junho de 2013. As manifestações de verde e amarelo tiveram um pouco da sua origem nisso. Já tinha uma panela de pressão quase estourando. A Lava Jato acabou acelerando essa crise de representatividade. Ela colocou em praça pública o esquema de engrenagem do movimento político, aumentando a falta de credibilidade no sistema. Claro que fez isso com medidas paliativas, com medidas antidemocráticas e de exceção. Todo esse cenário foi acelerando o declínio do regime da Nova República, criando um mal estar que se traduziu como antipolítica. Esse sentimento a gente ouve na população, muito difuso e generalizado”, analisou o coordenador do MTST.

Segundo Boulos, esse sentimento de antipolítica ficou mais claro nas eleições passadas, com a geração do que ele chamou de “aberrações”, citando como exemplo o candidato eleito em São Paulo, João Dória, com o discurso de “não sou político, sou gestor”. Esse tipo de “figura” recebe apoio do povo que está na antipolítica, sem um lado assumido. “Não são totalmente de direita”, concluiu. Mas, segundo ele, são fenômenos preocupantes que podem gerar um processo antidemocrático no país, devido às propostas retrógradas e conservadoras.

“Isso coloca hoje no Brasil uma encruzilhada. Para a crise política, você pode ter duas saídas, e a saída oferecida pela direta é um arranjo antidemocrático, fechando qualquer brecha democrática que exista, fazendo arranjos conservadores. Estão pensando em reforma política para oferecer uma saída regressiva. Não podemos nos colocar nessa velha política, ou vamos oferecer de bandeja à direita todo o povo com a sua insatisfação com a política. O pacto da Nova República não funciona mais. Um poder passa por cima do outro”, disse Boulos.

O segundo pacto que se esgotou nesse mesmo processo, conforme Guilherme Boulos, era mais de ordem social do que política. O pacto inaugurado pelo Lula em 2003 quando chegou ao governo. “Ele tentou construir um grande acordo nacional. ‘No meu governo o povo vai ganhar, sem terra, sem teto, vão ter vez, e os ricos vão continuar ganhando também’. Essa estratégica de ‘ganha, ganha’, onde os pobres ganham com programas sociais, mas ao mesmo tempo isso é feito sem mexer uma vírgula nos privilégios e ganhos da elite brasileira e, claro, sem mexer em temas estruturais, não duraria muito. Como era possível um pacto desses? Porque durante o governo Lula, mais do que da Dilma, tivemos um grande crescimento econômico. Com ele aumentava a arrecadação e com isso podia-se fazer política pública para o povo só com o manejo orçamentário, sem enfrentamento. Enquanto funcionou, Lula estava lá com 90% de aprovação popular. Mas o capitalismo tem crises e veio a crise de 2008. Este pacto de que todo mundo ganharia na sociedade brasileira chegou ao fim. Isso estoura em 2014, ano de eleição. Dilma, em campanha, dizia que não tomaria uma série de medidas, como ajustes fiscais. Após as urnas fecharem ela logo fez ajuste fiscal. Claro que não se compara com o que o Temer está fazendo hoje. Acaba o governo de conciliação com a oportunidade que a burguesia viu em dar o golpe. Eles entenderam que era o momento para eles derrubarem o governo, e derrubaram, por isso Temer chegou ao poder. Nesse sentido, o governo Temer talvez seja o governo mais perigoso nos últimos 30 anos no Brasil. Temer representa essa saída regressiva para as duas crises. É um programa de governo de destruição. Não é nem contra o ‘pacto lulista’, mas contra o ‘pacto varguista’, com a destruição da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]. E ele pode ser e fazer qualquer absurdo que quiser, justamente por ser um governo ilegítimo. Ele não presta contas a ninguém. É um trunfo na mão da burguesia. Não é candidato e nem vai ser, não tem, portanto, preocupações com campanhas futuras e insatisfação do povo diante da sua postura”.

O golpe, o pacote de austeridade de Temer e o momento de reação

“Das três principais medidas do golpe, uma já conseguiram aprovar, a PEC do teto de gastos. Não há precedente histórico disso em nenhum lugar do mundo, mesmo quando se olha os governos neoliberais no mundo. Nem o FMI [Fundo Monetário Internacional] ousou colocar algo assim. Vinte anos de austeridade colocado na Constituição como algo obrigatório. Mesmo se elegermos um governo de esquerda nos próximos anos, se ele não tiver 3/5 do congresso nacional, ele não consegue reverter isso e não consegue governar. Essa PEC destruiu aquilo de mais poderoso que a Constituição de 1988 tinha, que era uma rede social. É inviável. O SUS vai acabar em cinco anos se essa PEC seguir. Foi assim que fizeram com a Telebrás, que fizeram com a Petrobrás, com a Vale. Vão precarizando os serviços para abrir caminho para a privatização. O Brasil vai crescer em algum momento nos próximos 20 anos, com isso vai aumentar o orçamento, mas o produto desse crescimento não vai poder ir para o povo porque vai estar na Constituição, e para onde vai esse dinheiro? Para o único lugar que não tem teto de gastos, o pagamento de dívida pública. E ainda tem a reforma da previdência e a reforma trabalhista para completar o pacote”, ressaltou Boulos.

A reforma da previdência prevê idade mínima para aposentadoria de 65 anos. Em várias regiões do país e mesmo nas cidades a expectativa de vida não chega a isso. “Tratar o desigual de forma igual é injustiça. No país machista que vivemos com mulheres com jornada tripla, é um escândalo querer igualar a idade para aposentadoria entre homens e mulheres”, completou.

“Temos, também, a reforma trabalhista com a terceirização ilimitada já aprovada. Colocaram para aprovação um projeto de lei de 1998! É um programa de austeridade inédito, é terra arrasada! O Temer transformou o parlamento brasileiro em uma Assembleia Constituinte permanente, pois tem mais de 3/5 do Congresso, além de apoio da mídia e de outros segmentos poderosos”, analisou Boulos.

Mas, apesar de tudo isso, segundo Boulos, o clima da sociedade começa a virar. O Temer já é o governo mais impopular da Nova República, o último governo que teve menos de 10% de aprovação foi o governo militar de Figueiredo. Além disso, essa política de cortes do governo golpista agravou a recessão e começa a criar um clima de convulsão social. A insatisfação vai se transformando em indignação, e o próximo passo, para o coordenador do MTST, é chegar à mobilização da sociedade.

“Desemprego chegando ao nível do governo de FHC. Perda real para os trabalhadores, falência dos estados, como aconteceu no Rio de Janeiro. As polícias ameaçando greve como no Espírito Santo e Rio. Serviços públicos à beira do colapso. Junto a isso, eles exageraram na dose, foram rápidos demais. Nós perdemos o debate do teto de gastos, mas o debate da reforma da previdência eles estão perdendo. Não chamamos greve geral desde o governo FHC e vamos ter uma agora no dia 28 de abril. Estamos, nesse momento, numa crescente possibilidade de mobilização”, avaliou Boulos.

Esse é um momento, segundo Boulos, de muita unidade na luta e de ação. “Não podemos deixar prevalecer divisões menores, um problema sério da nossa esquerda, é a dificuldade de reconhecer o que é comum e dar muita importância somente ao que divide. Temos que resistir à destruição do Brasil. Nós temos que retomar nossa capacidade de mobilização. A esquerda perdeu a capilaridade social. Nos últimos 20 anos a maior parte da esquerda esqueceu uma coisa chamada trabalho de base. A estratégia de disputa nas ruas, de ideologia, foi cedendo espaço para a disputa de votos. O problema é achar que só vamos fazer isso, e acabar entrando nas eleições sem ter povo organizado junto, e refém dos acordos de sempre. Trabalho de base é essencial e nós perdemos. Estamos pagando o preço daquilo que deixamos de fazer ou que nossas organizações deixaram de fazer. Esse espaço que a esquerda deixou vazio foi ocupado... pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. Temos que retomar esse trabalho de base, esse é um desafio fundamental. Sem isso não vamos construir um projeto hegemônico no Brasil”.

Além disso, para ele, outro desafio que vivemos é pensar um programa novo de esquerda para o Brasil. “Não podemos ser arrogantes com o que aconteceu até aqui. Precisamos reinventar um caminho de esquerda no Brasil. É possível governar de outras formas, a esquerda em outros países governou de outras formas. O PT pelo que mostrou não aprendeu com as lições do golpe, nas eleições municipais de 2016 fez diversas alianças com os golpistas. Temos que pensar a esquerda para disputar hegemonia no país, não somente uma eleição. É o momento de disputar cada palmo da sociedade”.

 

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