Carta Final do Encontro Nacional de Formação e Conselho Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), realizados entre os dias 22 e 29 de outubro, em que agentes da CPT de todo o país discutiram a “questão agrária atual”. Os e as agentes da CPT refletiram sobre a conjuntura política problemática que vivemos, em que o Estado se divorciou da sociedade que, descontente, dá sinais de renovação das lutas populares, com a ocupação das ruas reivindicando seus direitos e contra os desmandos desse governo golpista, com as ocupações de escolas e institutos federais, e com a reação dos povos originários, nas retomadas e autodemarcações de seus territórios tradicionais. Da mesma forma, denunciaram a investida do capital contra os povos do campo, aumentando a violência que já bate os 50 assassinatos em 2016. Confira na íntegra:
Aos agentes da CPT, às Igrejas e aos companheiros e companheiras na caminhada e a toda a sociedade,
“(...) [A] idolatria da propriedade, da riqueza e do poder (...) é a causa da violência que acompanha a luta pela terra (...)''' (CNBB. “Igreja e Questão Agrária no início do século XXI”, no 274)
Realizamos o Encontro Nacional de Formação e a reunião do Conselho Nacional da CPT – Comissão Pastoral da Terra, em Luziânia - GO, no Centro de Formação Vicente Cañas, do CIMI, entre os dias 22 e 29 de outubro de 2016, aprofundando o tema “Questão Agrária no Brasil atual: permanência, limites e possibilidades”. Nesta ocasião foi lançado o livro “CPT: 40 anos de fé, rebeldia e esperança” encerrando o ciclo de eventos celebrativos dos 40 anos da CPT.
O contexto político que nos envolve, preocupa e desafia é de um golpe contra a democracia, tão escancarado quanto acobertado por um manto de legalidade. A derrubada do governo eleito foi a estratégia para desmontar garantias e direitos conquistados desde a Constituição de 1988, chamada “cidadã”. Tudo para favorecer ainda mais o sistema predador dos bens da natureza e dos bens sociais dos homens e mulheres desta terra, de hoje e de amanhã. Rompe-se assim aquele pacto social constitucional, e tudo pode ilegitimamente acontecer contra o povo.
Toma conta da sociedade, nos mais diferentes ambientes, uma cultura de linchamento, que simplifica e nega o direito à diferença entre pessoas, gêneros, origens, etnias, religiões, culturas, posições ideológicas e políticas, a alimentar preconceitos, intolerâncias e ódios e a tirar o foco do sistema do capital. Sistema que engendra e se nutre deste individualismo exacerbado e suicida, em nome da “liberdade” do mercado, do “desenvolvimento” e do “progresso”, sob a falsidade de que isto é bom para todos. Processo este em que as religiões, em especial a cristã, cumpre um papel decisivo, de suprema legitimação, sacralização idólatra do mercado, quando se rende à “teologia da prosperidade”.
Conforme relatos de nossos agentes de todos os cantos do país, avolumam-se a apropriação e a concentração de terras por antigos e novos sujeitos atrelados ao capital nacional e internacional, recrudescendo ainda mais a violência contra camponeses, povos originários e comunidades tradicionais. A “novidade” é o capital financeiro, articulado ao capital do agronegócio de exportação. Não produz bens e riquezas para a nação, mas se nutre da especulação, espoliação e privatização do que é de todas e todos e de toda a vida: solos, águas, minérios, petróleo, ar, biodiversidade... Ambos avançam também sobre unidades de conservação e preservação ambiental e sobre terras públicas devolutas, a fim de tornar todas as terras e bens da natureza mercadorias e ativos financeiros.
Este quadro é o continuísmo de uma relação com a terra como base do poder econômico e político, que vem desde o período colonial, com o regime de sesmarias, passando pela mercantilista Lei de Terras em 1850 e pelos institutos legais posteriores. É uma história de negação da terra aos povos indígenas, aos escravos libertos e às diversas categorias de camponeses. História de criminalização da questão agrária, de violências e morte contra os pequenos do campo, das águas e das florestas. Violência que atinge hoje níveis dos mais elevados, principalmente na Amazônia. Já são 50 assassinatos de camponeses em luta somente em 2016; número igual a todo o ano de 2015. História também de resistências populares, quilombos, ocupações, acampamentos e retomadas.
Hoje, fortalecidos pelo golpe, os setores ruralistas de sempre tramam e impõem, com conivência e apoio dos Três Poderes, emendas constitucionais e projetos de lei que intensificam a privatização e mercantilização ilimitada da terra e dos recursos naturais, a flexibilização das leis ambientais e trabalhistas para atender aos interesses de acumulação incessante e progressiva de capital globalizado. A PEC 241, que limita e congela gastos públicos com políticas sociais, por 20 anos, é a evidência maior do sentido do golpe, por um Estado contra o Povo e a favor da acumulação de capital, poupado de cortes e limites. A proposta de “reforma da reforma agrária” se propõe corromper a escolha do público beneficiado, facilitar o negócio de terras e sufocar os movimentos e organizações sociais do campo.
Contudo, as lutas populares ganham força. As diversas mobilizações que vêm ocorrendo Brasil afora, a exemplo das ocupações de cerca de 1.200 escolas públicas, Institutos e Universidades Federais pelos estudantes, os protestos indígenas em defesa da saúde, as articulações por uma greve geral etc., revelam a insatisfação com os rumos que vêm sendo dados ao nosso país e com o divórcio entre o Estado e a sociedade. Renova-se a esperança de que o povo volte a ocupar as ruas e praças, como em junho de 2013, para retomar o que é seu por direito democrático.
Crescem também a consciência, a resistência e as práticas de outras relações humanidade/natureza, alicerçadas nas formas de vida dos povos originários e comunidades tradicionais, construídas na diversidade e pluralidade de culturas e caminhos que se expressam no que se denomina Bem Viver. São (re)inventadas formas de organização comunitária, de re-existência, através das retomadas e autodemarcações dos territórios, de produção e vivência agroecológicas, de uma economia popular solidária, de processos de educação popular, de produção de conhecimentos, que ajudam a construir a autonomia das comunidades. Aí se destaca o protagonismo de mulheres e jovens, contribuindo decisivamente para a descolonização dos saberes e das relações e práticas cotidianas. Vai se tornando evidente que a vida das pessoas e do planeta, hoje e amanhã, depende cada vez mais do que pode oferecer esta gente, pelo que produzem, pelo modo como produzem – alimentos saudáveis, cuidados ambientais e sociais etc. – e pela alternativa civilizatória que significam.
Uma sociedade nova e diferente é uma construção conjunta e intercambiada de todas as forças sociais descontentes com a atual. Por isso conclamamos as comunidades, movimentos e organizações sociais do campo e da cidade, as pastorais das diferentes igrejas, as religiões de matriz africana e indígena, as pessoas de boa vontade, a realizarmos um grande mutirão para defendermos nossos direitos ameaçados e cuidarmos da Casa Comum e de todos os seus integrantes.
A salvação da humanidade e do planeta depende da vivência de uma ecologia integral no campo e na cidade, como propõe o papa Francisco na encíclica Laudato Si.
Luziânia, 29 de outubro de 2016.
Comissão Pastoral da Terra
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Antônio Canuto (assessoria de comunicação CPT) – (62) 4008-6412