Confira depoimento de Antônio Canuto, amigo de Dom Tomás, acompanhou sua caminhada e luta, e vivenciou os últimos dias de Dom Tomás, acompanhando-o enquanto este esteve no hospital.
Antônio Canuto - secretário da coordenação nacional da CPT e membro fundador da entidade
Posso me considerar um privilegiado por ter estado perto e convivido com Dom Tomás muitos momentos na vida. Conheci-o em 1971, quando ele foi fundamental na decisão de Pedro Casaldáliga em aceitar a indicação de bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT). Em 1997, quando foi eleito presidente da CPT, fui incorporado à secretaria nacional.
Mas não é sobre isso que quero falar. Os momentos mais privilegiados, posso dizê-lo, foram na última fase da sua vida, quando passei algumas noites ao seu lado no hospital.
Foram momentos de extrema importância e que revelam o homem apaixonado que sempre foi. Apaixonado pela vida, apaixonado pelos povos e pela causa indígenas, apaixonado pelos camponeses e trabalhadores e trabalhadoras da terra, apaixonado pelo CIMI e a CPT que ajudou a criar, por uma igreja comprometida com as causas do povo sofrido.
Quando eu estava com ele, comunicava-lhe as últimas notícias das lutas camponesas e indígenas e da igreja. Ele, mesmo não podendo conversar muito por ter o pulmão afetado, fazia questão de as comentar com muita lucidez e sagacidade. Gostava de estar antenado com os acontecimentos. E, como um grande articulador que sempre foi, imaginava estratégias e ações que pudessem ser apoio às causas do povo. Numa das noites, quando conversávamos sobre a situação dos povos indígenas na luta pela reconquista de seus territórios, ele destacou a relação umbilical dos índios com a terra. Pontuou que a terra é essencial para o índio, pois índio sem terra não tem condições de sobreviver. E propôs imediatamente uma articulação de importantes figuras do campo jurídico - citou como imprescindíveis, Dalmo Dallari, Fabio Konder Comparato e Paulinho Guimarães, assessor jurídico do CIMI – com as quais queria reunir-se para discutir os possíveis encaminhamentos no sentido de explicitar os fundamentos jurídicos que garantiriam a defesa desta relação essencial índio/terra.
Na última noite que passei com ele, quarta-feira, dia 30 de abril, respirava com muita dificuldade. Os médicos receitaram nova medicação e ele voltou a respirar melhor. Ao melhorar, comuniquei-lhe que o STJ havia concedido Habeas Corpus ao cacique Babau, Tupinambá da Bahia, preso em Brasília. Mesmo na situação em que estava, vibrou: “uma grande notícia!”.
A paixão por uma igreja comprometida com a causa dos pobres se explicitou no desejo de participar da Assembleia dos Bispos que discutia o tema da Igreja e a questão agrária, no século XXI. Todos os dias, quase obsessivamente, manifestava a vontade de estar na assembleia. Pedia que a CPT reservasse sua passagem; queria fazer contato com a CNBB para garantir sua participação. Eu, na sexta-feira, 2 de maio, fui a Aparecida para um encontro dos bispos acompanhantes da CPT. Os que estavam com ele naquela noite em que veio a falecer me disseram que ele insistia em falar comigo, pois tinha algumas contribuições a apresentar para que o documento que a CNBB iria votar fosse contundente e profético. Como não se conseguia falar comigo, solicitou que lhe trouxessem um computador portátil para redigir o que tinha no coração. Pouco depois deu seu último suspiro.
Frei José Fernandes, dominicano, responsável pela sua internação e que sempre esteve presente, testemunhou que “Dom Tomás morreu lúcido, sereno e bem humorado”. Quem estava ao seu lado no momento final eram Itamar, companheiro fiel dos últimos meses e Valdir Misnerovicz, assentado do MST em Goiás e da direção nacional do movimento.
Para mim a morte de Dom Tomás ter acontecido quando a CNBB realizava sua 52ª assembleia, discutindo o tema Igreja e Questão Agrária; de Valdir, do MST, estar a seu lado, no momento do desenlace final; e de, na chegada a Goiás, seu corpo ter sido introduzido na catedral por mãos indígenas de diferentes povos, que realizaram todo um ritual, pintaram seu rosto com urucum e colocaram na cabeceira do caixão um cocar, está carregada de um valor simbólico ímpar. Tomás morreu como viveu, reconhecido pelos lavradores, sem-terra e indígenas, a quem dedicou sua vida e seu ministério episcopal, apaixonado pelas suas causas, e lutando para que a igreja assuma a causa dos oprimidos e dos excluídos, saindo dos templos, em direção às periferias como o papa Francisco convoca hoje a Igreja.