Seminário de lançamento do Caderno Conflitos no Campo Brasil 2022 reuniu organizações de defesa dos direitos humanos e governo para debater dados sobre conflitos trabalhistas
Por Marília da Silva | Especial para a CPT Nacional
O tema do trabalho análogo à escravidão no Brasil foi discutido na segunda mesa do seminário de lançamento do Caderno Conflitos no Campo Brasil 2022, na tarde dessa segunda-feira, 17, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). O tema, que tem movimentado os noticiários nacionais desde a operação que resgatou mais de 200 trabalhadores em condições análogas à escravidão em vinículas do Rio Grande do Sul, no último mês de março, é uma das pautas prioritárias da Comissão Pastoral da Terra desde de sua criação, em 1975.
A mesa contou com a participação de Carolina Motoki, assessora da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT, intitulada De olho Aberto Para Não Virar Escravo, Marcelo Campos, auditor fiscal do trabalho do Ministério do Trabalho, e Marinaldo Soares Santos, trabalhador rural duas vezes resgatado da escravidão contemporânea, que atua hoje no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmem Bascaranhas, de Açailandia (MA).
Carolina Motoki e Marcelo Campos discutiram o aumento no número de ocorrências de trabalhadores resgatados, registrado pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc-CPT) nos últimos anos. Em 2022, foram registrados 207 casos de trabalho análogo à escravidão no meio rural, com 2.218 pessoas resgatadas, o maior número dos últimos dez anos. Somados, o número de ocorrências de conflitos trabalhistas no campo em 2021 e 2022 representam mais de 32% do total registrado na última década.
“Entre 2021 e 2022, apesar de 50% dos cargos de Auditor Fiscal do Trabalho estarem vagos, houve uma explosão nos números. Um fator determinante para isso foi a dedicação do conjunto de servidores em atuação”, explica Carolina Motoki. Marcelo Campos reiterou a leitura de Carolina. “Bolsonaro e Temer são inimigos da luta contra o trabalho escravo. Bolsonaro disse claramente que o projeto dele era que a auditoria do trabalho fosse extinta, mas, para sua tristeza, nós nos mantivemos ativos e aumentamos nossa atuação”, relatou Marcelo.
Os dois também apontam para uma maior vigilância da sociedade em relação ao trabalho análogo ao escravo, o que também incide em mais ações de combate. “A partir da criação dos Grupos Táticos Móveis, o trabalho de fiscalização foi uma construção coletiva. Nós, auditores, sozinhos, não libertamos um só trabalhador. Precisamos da atuação da sociedade civil. É a sinergia do poder público com a sociedade que nos permite fazer o combate ao trabalho escravo”, explicou o auditor.
Carolina Motoki afirmou ainda que, com a Reforma Trabalhista realizada no governo Temer, aumentou a precarização do trabalho e houve queda na oferta de emprego formal, fatores que também expuseram mais pessoas ao trabalho degradante. Segundo Marcelo, atualmente são raros os casos de trabalho análogo à escravidão no campo que não envolvem a terceirização da contratação dos trabalhadores. “Quem são, muitas vezes, essas empresas terceirizadas? São os gatos [aliciadores] que criam uma roupagem jurídica” , disse o auditor.
Marinaldo Soares Santos trabalhava em uma fazenda no Maranhão quando foi resgatado pela primeira vez. Ele conta que estar perto da família tornava a situação menos penosa. Quatro anos depois, foi levado para trabalhar em uma fazenda no Pará, onde pensou que iria perder a sua vida. “A minha cidade não oferecia emprego pra eu sustentar minha família. Encontrei um gato. Na fala dele a situação lá era bonita, mas na verdade não era. A pessoa não quer ver sua família passando fome, então ela vai”, relata Marinaldo, que, após o segundo resgate, começou atuar como defensor de direitos humanos. A atriz Dira Paes, que interpreta a Pureza Loiola no filme “Pureza”, de Renato Barbieri, enviou por vídeo uma mensagem ao público do seminário falando de seu envolvimento com a luta contra o trabalho análogo à escravidão e da importância da organização da sociedade para esse combate.
Ainda durante o debate, Carolina Motoki afirmou que o trabalho análogo ao escravo no Brasil continua sendo fundado na desumanização das pessoas afrodescendentes e indígenas, e que o processo de erradicação desse mal requer uma atuação contra essa desumanização, o que inclui também a luta contra o racismo. Marcelo Campos complementou a análise afirmando que a persistência dessa gravíssima violação aos direitos humanos no Brasil se deve à cultura escravocrata enraizada na elite brasileira. Ele analisa que, após a poibição da escravidão no Brasil, a Lei de Terras e a Lei de Vadiagem foram mecanismos criados para manter os africanos e afrodescendentes em situação de escravidão, não lhes garantindo nenhum meio de trabalho e criminalizando-os após sua alforria.
“Temos que combater o criminoso, o escravocrata. A Constituição garante que todo trabalhador e trabalhadora tem o direito de ser tratado(a) com dignidade, que todo trabalho deve ser digno. É necessário atuar por direitos e para que os(as) trabalhadores(as) defendam os direitos trabalhistas. Foi a luta dos afrodescendentes e das entidades de direitos humanos, como a CPT, que nas décadas seguintes à abolição foram dando voz a essas lutas por direitos. E só vamos conseguir erradicar o trabalho escravo quando conseguirmos realizar a Reforma Agrária”, conclui Campos.
Foto: Letícia De Maceno