Famílias da comunidade pesqueira de Canabrava tiveram suas casas e plantações destruídas por funcionários de um fazendeiro - sem decisão judicial.
Reportagem: Daniel Camargos, do Norte de MG
Imagens: Fernando Martinho
Edição: Ana Magalhães
Por: Repórter Brasil
Todas as manhãs, o pescador Edmar Gomes acorda e caminha pelas ruas de Buritizeiro, cidade com 27 mil habitantes no norte de Minas, até alcançar o rio São Francisco. “Venho olhar a água”. São saudades do tempo em que vivia, com demais pescadores, nas margens do rio, na comunidade Canabrava. Sua família e outras 30 que viviam ali foram expulsas da beira do Velho Chico em 2017 e tiveram suas casas e plantações destruídas – em uma ação que descumpriu liminar judicial que garantia a permanência dos pescadores no local.
Insegurança no campo: Milícia rural tem apoio de secretário de segurança de Minas Gerais
A ação foi comandada por Adriano Pinto Coelho, um dos fazendeiros mais articulados da região, integrante e entusiasta do Segurança no Campo, grupo formado por 300 produtores rurais e denunciado por movimentos sociais como milícia rural. Foi Coelho quem pediu à Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e à Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) para que interferissem junto ao governo federal e à Secretaria de Patrimônio da União para paralisar as demarcações das margens do São Francisco. O bom trânsito levou Coelho a conseguir – na Justiça estadual – uma decisão de reintegração de posse de uma área considerada do governo federal.
O lobby ruralista contra demarcações das margens
A Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP) fez diversos questionamentos e protestos, pois considera que a área em disputa é da União e, por isso, o tema deveria ser tratado na justiça federal, não na estadual. No dia do despejo, a comunidade conseguiu uma liminar para suspender a ação. Mesmo assim, policiais militares destruíram 13 casas da comunidade, até serem convencidos da existência da liminar e pararem com a destruição.
NO DIA DO DESPEJO, MESMO COM UMA LIMINAR PARA SUSPENDER A AÇÃO, POLICIAIS MILITARES DESTRUÍRAM 13 CASAS DA COMUNIDADE ATÉ PARAREM COM A DESTRUIÇÃO
Passados dois dias, um grupo de funcionários de Coelho destruiu as casas que restavam de pé, as plantações e, segundo os moradores, levaram os animais de criação. Dois meses depois, a Justiça estadual concedeu outra reintegração de posse em favor de Coelho.
Sem possibilidade de permanecer na área, a comunidade intensificou a busca pelo Termo de Autorização de Uso Sustentável, expedido pela Secretaria de Patrimônio da União, que garante o uso das terras, mas esbarrou na organização dos fazendeiros e no lobby dos ruralistas no órgão. O termo foi indeferido em setembro do ano passado.
“Fomos expulsos e escorraçados a mão armada. Tiraram uma terra sagrada da mão da gente para entregar para o fazendeiro, que não é o proprietário, mas que usa e abusa dela da forma que ele bem quer”, lamenta o pescador Clarindo Pereira dos Santos sobre a ação que os expulsou da comunidade.
Aos 66 anos, Edmar lamenta os últimos três anos que passou longe do rio. “Vivíamos tão sossegados comendo o peixinho fresco da gente”, recorda. Para continuarem com a pesca, eles se refugiaram em uma ilha do rio, a Ilha da Esperança e em uma faixa de dez metros, no barranco do rio, encurralados entre as cercas dos fazendeiros e a água. A grande maioria dos ex-pescadores, no entanto, passou a viver na área urbana, em casas de familiares.
‘SPU É PARCIAL’
Para Adriano Coelho, o fazendeiro que comandou a ação contra os pescadores, o grupo Segurança no Campo foi uma resposta aos movimentos sociais como o MST. “Aí, vieram com a história de que lá reside uma comunidade tradicional. Estão criando comunidades que pleiteiam 120 mil hectares na região”, disse Coelho, em depoimento durante audiência na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em maio de 2018. Na visão dele, as comunidades tradicionais estão requisitando porções demasiado extensas de terra. A Repórter Brasil conversou com Coelho, que não quis conceder entrevista e nem responder s perguntas enviadas. Ele afirmou que mantém o que disse durante a audiência na assembleia.
APÓS A EXPULSÃO, A MAIORIA DOS EX-PESCADORES PASSOU A VIVER NA ÁREA URBANA, EM CASAS DE FAMILIARES
Coelho também acusou a SPU de ser parcial ao definir os limites das terras nas margens do rio São Francisco. Ele disse ainda, durante a audiência, que a SPU e o Ministério Público atuam de maneira tendenciosa, pois dão atenção a falsas acusações feitas contra ele, enquanto ignoram crimes praticados pelas comunidades tradicionais. Durante o encontro na assembleia, a bancada dos deputados estaduais estava enfeitada com uma faixa: “Movimento Segurança no Campo! Prosperidade no campo, fartura na cidade! Todos unidos em defesa da propriedade privada!”
AVANÇO DAS CERCAS
A tensão entre pescadores e fazendeiros é constante nas margens do rio São Francisco. Em Ibiaí, cidade vizinha de Buritizeiro, os pescadores também são ameaçados. O presidente da colônia de pescadores da cidade, Magno Seixas, explica que eles têm o hábito de ficarem vários dias no rio e, por isso, usam as margens para construir barracos de lona para descansarem. “Estamos sem acesso às margens dos rios. Não estão aceitando mais que a gente faça um barraquinho para poder pescar”, lamenta.
Na comunidade de Barra do Pacuí também há tensão entre fazendeiros e pescadores. Sem conseguirem acesso às margens do rio para plantarem, os moradores da comunidade aproveitam o período que o rio não está cheio e cultivam nas ilhas.
“A gente trabalha na ilha porque não tem acesso às margens. O negócio deles [fazendeiros] é plantar capim e criar boi para eles venderem”, reclama Maria do Carmo Paiva Silva. As ilhas, porém, têm limitações. Silva explica que é muito difícil plantar mandioca, pois descer o barranco da ilha para chegar até o barco e depois subir para desembarcar, carregando o peso da produção é muito penoso.
O avanço das cercas dos fazendeiros em direção ao rio impediu outra atividade da comunidade tradicional de Barra do Pacuí: o extrativismo de frutos e sementes do cerrado, como a castanha de baru. “Faz três anos que não conseguimos coletar. O fazendeiro disse que ia quebrar nossa carroça se pegasse a gente na área dele”, conta Nélia Rodrigues Souza. Antes, a comunidade vendia o quilo da castanha de baru por R$ 20. “É uma coisa que eles não usam para nada, mas não deixam a gente pegar.”