COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Em uma operação que contou com 180 homens das polícias Federal e Militar, cães, cavalos e helicóptero, oito indígenas Kaingang e três agricultores foram presos na manhã desta quarta-feira, 23, nos municípios de Sananduva e Cacique Doble, no Rio Grande do Sul. No final da madrugada, os Kaingang da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha foram surpreendidos pelo contingente.

 

(Por Renato Santana e Tiago Miotto – Cimi | Imagem: Reprodução Internet/Cimi)

As prisões têm relação direta com o Estado de Calamidade Pública decretado no último domingo, 20, pelo vice-prefeito em exercício de Sananduva, Leovir Fidêncio Antunes Benedetti, horas depois de um incêndio ter destruído plantações de monocultivo de fazendeiros da região. A Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) acusou publicamente os Kaingang e os agricultores.  

De acordo com os mandados da Polícia Federal, expedidos pela Justiça Estadual de Sananduva, os Kaingang e os agricultores são acusados pelos crimes de ameaça, extorsão, organização criminosa e dano ao patrimônio contra fazendeiros da região que se opõem de forma articulada contra a demarcação da Terra Indígenas Passo Grande do Rio Forquilha e que costumam punir pequenos agricultores próximos aos indígenas.

Mesmo sem provas concretas da relação dos indígenas e agricultores com o incêndio, ou com base em qualquer apuração e investigação pelos órgãos competentes, o vice-prefeito atendeu a Farsul e baixou o decreto. “Considerando que o clima tenso e hostil provocados pelos atos dos indígenas, beirando as vias do conflito, o que pode resultar em eminente risco à segurança e a vida dos envolvidos, bem como da população sananduvense”, diz um trecho do decreto.

Os hectares de monocultivo queimados pertencem aos fazendeiros que não permitiram a Fundação Nacional do Índio (Funai) realizar o trabalho envolvendo a demarcação da terra indígena, de acordo com as lideranças Kaingang. A Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha foi declarada, ou seja, teve o Relatório Circunstanciado publicado pelo Ministério da Justiça, em 25 de abril de 2011 e está na fase da demarcação física dos 1.916 hectares tradicionais.

"Os pequenos deixaram fazer. A mídia coloca que os colonos estão sendo ameaçados. É mentira. Dois foram presos com nossos parentes. Fazem reportagem sem saber como convivemos, como a gente pensa. Fiquemo sentido, porque a gente assume o que faz", afirma um Kaingang de Passo Grande do Rio Forquilha que prefere não se identificar temendo represálias da Polícia Federal.

Ação violenta e humilhante

Conforme os Kaingang, todas as casas foram reviradas pelos policiais. Os indígenas, levados para um Centro Comunitário, foram obrigados pelos policiais a deitar com o rosto para o chão. Crianças, mulheres e idosos não foram poupados. Os policiais levantavam a cabeça dos Kaingang para identificar os que deveriam sair dali sob custódia - oito acabaram na sede da Polícia Federal.  

"Constatamos que havia mandados de prisão para seis Kaingang. Dessa forma, dois foram liberados. Entre os presos sem mandado estava uma mulher (a mãe do cacique). Ela relatou agressões, tapas no rosto e estava com escoriações nos braços e na cabeça. Afirmou ainda que o delegado da PF a chamou várias vezes de vagabunda", relata o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul, Roberto Liebgott.

Acompanhado de um advogado do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Liebgott esteve com os indígenas que prestaram depoimento. Os seis Kaingang e os três agricultores foram encaminhados para a Penitenciária de Lagoa Vermelha no final do dia. "Foi uma grande humilhação o que esses indígenas passaram. Montaram uma operação de guerra, foram truculentos e violentos. Tiraram todo mundo da aldeia, apreenderam equipamentos de subsistência como se fossem armas", pontua Liebgott.  

"A polícia chegou atirando e mandou todo mundo ficar quieto. Inclusive mulheres grávidas, crianças pequenas. Botaram em cima de grama molhada de orvalho. Isso é crime. Digo isso como Kaingang. O que o delegado da PF falou vai ficar na mente da comunidade: disse que vai matar o cacique e um membro da comunidade", diz o Kaingang.

Perseguições

Ireni Franco Kaingang foi preso no sábado, 19, antes do incêndio. Seus dois filhos, entre eles o cacique da aldeia, estão com a prisão decretada. Os três são lideranças dos Kaingang da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha. Com os familiares e demais membros da comunidade, passaram anos vivendo às margens de uma rodovia. Muitos morreram ali mesmo, atropelados. Depois que ocuparam o território tradicional, em represália, passaram a viver sob a perseguição da Polícia Federal e dos fazendeiros.

A juíza Estadual Daniele Conceição Zorzi sustentou nos mandados de prisão que Ireni e os filhos agiram de forma "exclusivamente pessoal, praticando crimes comuns, ausente de interesses dos indígenas". No entanto, a defesa dos indígenas rechaça a tese de que os indígenas tenham cometido crimes. O procurador Federal da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Zeni, afirma que não há nenhum elemento que ateste a prática de crimes pelos indígenas.

"Pra gente Kaingang é tudo uma armação. Prenderam o Ireni sem dizer quando, como e onde ele cometeu algum crime. Depois aparece o incêndio e a mídia, a Farsul e a Prefeitura de Sananduva dizem que dissemos que íamos incendiar em retaliação ao que fizeram com o Ireni. Em Sananduva dizem até que vamos queimar tudo, matar gente. Tudo mentira", explica o Kaingang.

O coordenador do Cimi regional Sul, Roberto Liebgott, salienta: "Estamos diante de uma situação que, no mínimo, envolve conflito fundiário em terra indígena. A Justiça Estadual é incompetente para casos assim, sendo de exclusividade da Justiça Federal. Temos um conjunto de erros e arbitrariedades que caem sobre os Kaingang de forma a criminalizá-los mais uma vez no Rio Grande do Sul".

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