Desde 2005, ano do assassinato da freira, 118 pessoas foram mortas no estado por disputas no meio rural. Entorno de Marabá é uma das regiões mais violentas. Na foto, freiras e agricultores com quem Dorothy atuou em Anapu (PA).
(CBN)
Dez anos após a morte da missionária americana Dorothy Stang, freira que defendia projetos de assentamento, o cenário ainda é de conflito e violência no campo do Pará. Somente no ano passado, foram mortas oito pessoas no estado, segundo dados preliminares da Comissão Pastoral da Terra. De 2005 a 2014, o Brasil registrou 334 assassinatos no campo. O Pará teve 118, ou 35,3% do total.
A região de Marabá, no Sudeste do estado, é uma das mais violentas. A reportagem da CBN visitou um acampamento no município de Abel no qual vivem 61 famílias. Em janeiro de 2014, dois trabalhadores rurais ficaram feridos após um conflito. Eles alegam ter sido atingidos por seguranças contratados pela siderúrgica Ibérica, dona da propriedade. Os vigias controlam o acesso ao acampamento, com coletes à prova de balas e pistolas, e decidem quem entra e sai.
Líder do grupo de sem-terra, Sebastião da Silva Santos está ameaçado de morte, de acordo com uma lista feita pela Pastoral da Terra. "Todos nós temos medo. Aqui, tem dias que ninguém dorme. A vontade deles (seguranças da fazenda) é nos perseguir", relata Sebastião.
Sobre o confronto, a siderúrgica Ibérica nega qualquer excesso dos seguranças. Segundo a empresa, um grupo tentou invadir a sede da fazenda e uma pessoa foi atingida por uma arma dos próprios sem-terra.
Em 2005, irmã Dorothy defendia a criação de assentamentos sustentáveis para trabalhadores sem-terra e atuava em Anapu, no Sudoeste do Pará, onde ocorria um conflito semelhante. O lote 55, uma área no centro do acampamento Esperança reconhecida pelo Incra como da União, era alvo de disputa entre fazendeiros e trabalhadores, defendidos pela missionária americana.
No dia 12 de fevereiro daquele ano, Dorothy levou seis tiros em uma estrada de difícil acesso do acampamento. O procurador da República Felício Pontes, que trabalhava com ela pela implantação do assentamento, lembra do perigo que a freira corria:
"Eu falei com ela, na hora em que ela saiu para o local em que morreu. Às 6h, estava com ela no telefone dizendo: 'Dorothy, não vai', até porque era um momento em que as coisas estavam acirradas com os fazendeiros."
Hoje, o assentamento tem capacidade para abrigar 260 famílias e produz, principalmente, cacau, além de pimenta, banana, mandioca, arroz, açaí, feijão e milho. A freira Katia Webster, que trabalhou com irmã Dorothy e permaneceu em Anapu, conta, no entanto, que ainda há ameaças.
"Quando o povo entra em uma área na qual não há fazendeiro, ou aparentemente não há, aparece um dono, e esse dono ameaça. Há pouco tempo, queimaram algumas casas de trabalhadores", afirma a missionária.
O Incra informou que foram construídas guaritas para o monitoramento das duas principais entradas do assentamento de Anapu.
Ouvidor agrário nacional há 16 anos, o desembargador Gercino José da Silva Filho afirma que os conflitos diminuíram nos últimos anos. Ele contesta os números da Pastoral da Terra e diz que, segundo a ouvidoria, foram apenas nove homicídios no país em 2014.
Impunidade é entrave para reduzir conflitos no campo
Em 28 anos, dos 428 casos de homicídios em disputas no meio rural do Pará, só 21 foram julgados. Apenas um dos cinco condenados pela morte de Dorothy Stang está na prisão. Organizações de direitos humanos criticam lentidão da Justiça.
"Depois de R$ 50 mil, R$ 10 mil, R$ 500, quanto, efetivamente, eles deram para cada um?"
"O Bida deu R$ 50 para o Tato, e o Tato passou os R$ 50 para mim."
"Então, quer dizer que, na verdade, a vida de Dorothy saiu por R$ 50?"
O diálogo entre o promotor Edson Cardoso e Rayfran das Neves, um dos assassinos da missionária Dorothy Stang, ocorreu no julgamento dele, em dezembro de 2005. Dos cinco condenados pela morte da freira, somente ele está na prisão, mas por causa de outro crime.
Rayfran foi preso em setembro do ano passado, acusado de matar um casal no Nordeste do Pará. Até então, cumpria prisão domiciliar por causa da morte de Dorothy. Os outros condenados estão em regime aberto ou semiaberto, e um dos mandantes conseguiu um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal.
A impunidade é um dos maiores entraves para reduzir a violência no campo, segundo especialistas e organizações de direitos humanos. De 1985 a 2013, dos 428 casos de homicídios no Pará, a Justiça só julgou 21, e apenas 17 executores e 12 mandantes foram condenados, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra.
Gildete da Silva tem 29 anos, cinco filhos e mora em um barraco de madeira e barro. O marido dela, Jair Cleber dos Santos, foi assassinado em setembro do ano passado, durante um confronto com funcionários da fazenda na qual fica o acampamento deles. A propriedade, localizada em Bom Jesus do Tocantins, pertence à empresa Jacundá Agro Industrial ltda.
"Ele morreu, mas eu fiquei. Tô dando conta de me manter, com meus filhos. Não pretendo sair daqui por enquanto, não. Tenho muito medo do dia de amanhã, porque não dá para confiar ainda", afirma Gildete.
Todos os suspeitos da morte do marido de Gildete permanecem soltos. A Jacundá Agro Industrial ltda. afirma que os funcionários da fazenda foram acuados pelos sem-terra com espingardas, facões e pedaços de pau, e agiram em legítima defesa.
O advogado Marco Apolo Santana, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, ressalta a dificuldade em se levar os mandantes para o banco dos réus, e afirma que fazendeiros formam uma espécie de "consórcio":
"Eles são muito solidários entre eles. É uma coisa que sempre percebi nesses processos. No caso da Dorothy, foi a mesma coisa. Quem defendeu os pistoleiros foram os advogados mais caros do Pará. Aí, você percebe uma organização entre eles, uma organização que os movimentos sociais não têm. Tudo é lícito. Pode ser antiético, mas é lícito."
Já o professor de Direito da Universidade Federal do Pará Jerônimo Treccani, que acompanhou todos os júris do caso Dorothy, afirma que a demora nos julgamentos faz com que crimes prescrevam. Ele ressalta ainda que nada mudou no Judiciário nesses dez anos, e cobra mais transparência.
"Só a partir do momento em que o sistema - Judiciário, Ministerio Público, delegados - mostrar que é possível acreditar que a justiça vai ser feita, aí acho que alguém pode até se dispor a ajudar na fiscalização", ressalta o professor.
Sobre a lentidão no julgamento de casos de violência no campo, a CBN procurou o Tribunal de Justiça do Pará e o Conselho Nacional de Justiça, mas nenhum dos dois órgãos se manifestou.