Municípios que produziam arroz trabalham agora na criação de camarão para sobreviver.
(POR CLEIDE CARVALHO - Matéria publicada no jornal O Globo, no dia 24 de agosto de 2014)
Como a cumprir antigas profecias, o Velho Chico perde força e cede seu leito ao mar. Antes das barragens em cascata que culminam no gigantesco lago de Sobradinho e, por fim, na hidrelétrica de Xingó, a apenas 180 km da foz, entre Alagoas e Sergipe, os ribeirinhos conviviam com grandes cheias. As águas volumosas transbordavam, formando lagoas. Nelas, plantava-se arroz.
O primeiro sinal de mudança veio com o aumento no nível do mar, no fim da década de 1990, quando as comunidades de Cabeço e Costinha tiveram de ser remanejadas. Ao mesmo tempo, o controle da vazão no Baixo São Francisco feito pelas hidrelétricas, pôs fim às cheias e correntezas. No pequeno município de Ilhas das Flores, a 25 km da foz, os pescadores já nem falam mais em cheia, mas em maré.
— A gente vê pela correnteza. Não é o rio que desce, é o mar que sobe. O rio virou lago — diz José Cornélio Santos, o Queléu, de 56 anos, presidente da colônia de pesca de Ilha das Flores.
Mas é na comunidade de Resina, em Brejo Grande, que a entrada do mar e a gestão do rio saltam aos olhos. A energia elétrica só chegou ali em 2012, 99 anos após a inauguração da primeira hidrelétrica do Nordeste. Os moradores dependem do rio para pescar, plantar e beber. Há dois anos, a plantação de arroz começou a amarelar e secar. Quando chega a brotar, o grão fica chocho.
— Aqui a água está salobra. A gente pega a água salgada e bebe, mas não mata a sede — conta Gilvan Rosa dos Santos, de 20 anos, que nasceu e cresceu às margens do rio.
Para ele, a saída para o futuro de Resina é usar as lagoas e o rio para criar camarão — camarão de água salgada.
Parece também difícil de acreditar, mas, em pleno leito do São Francisco, centenas de pescadores depositam esperanças num projeto de criação de tilápias em cativeiro. Dia e noite, fazem vigília para evitar o roubo dos peixes e para engordá-los com a ração usada nos seis núcleos já implantados.
— O mar se aproveita da fragilidade do rio. O destino é a área se transformar num grande estuário — diz o professor Luiz Carlos Fontes, do Laboratório Georioemar, da Universidade Federal de Sergipe.
O progresso movido à eletricidade mudou a relação entre o homem e o rio. O Velho Chico perde água com o desaparecimento de nascentes, veredas e afluentes. Pelo menos 16 rios da bacia, que eram perenes, hoje são intermitentes — secam durante parte do ano. Calcula-se que o rio já tenha perdido entre 35% e 40% de seu caudal.
ILHAS DE AREIA E EROSÃO
Com águas paradas, multiplicam-se ilhas de areia. Nada menos do que 95% das margens do São Francisco sofrem com erosão. Antigamente as ilhas eram menores e mudavam de lugar com a correnteza. Nos últimos oito anos, elas estão se tornando fixas e maiores. Fazendeiros tomam posse para alimentar gado.
— Quando cheguei aqui, na década de 1980, não tinha esse tanto de ilha. Vinha a correnteza e arrastava os bancos de areia. Agora que a água corre pouco, as ilhas aterram o rio. Muita água foi embora. O rio ficou raso e fino — diz o pescador José Lima Rosa, o Galego, de 58 anos.
Diante do assentamento Borda da Mata, em Canhoba (SE), o rio baixou cerca de 10 metros. Há trechos onde não passa de 50 centímetros. Algumas ilhas têm 2 km. Os moradores do Baixo São Francisco temem o futuro com a transposição das águas.
— Os governantes falam que vão tirar apenas 1% (de água), mas não sabemos quanto este 1% vai nos custar. Não sabemos o que vai ser da gente daqui para a frente — afirma Maria Izaltina Silva Santos, da comunidade de Brejão dos Negros, que fica na foz do rio.