As presentes iniciativas e as perspectivas futuras do povo A’uwe-Xavante em uma terra em reconstrução no Mato Grosso. Confira Reportagem Especial sobre a realidade do povo A’uwe-Xavante na luta pela conquista definitiva de seu território, no Mato Grosso.
Por Maíra Ribeiro, da Articulação Xingu Araguaia (AXA)
Do sonho à luta
Sonho é coisa séria para o povo Xavante, que se autodenomina A’uwe Uptabi, ou povo autêntico (e que será designado neste texto como A’uwe-Xavante). Decisões importantes tomadas pelos anciãos de uma aldeia levam em consideração o que foi trazido através dos sonhos. São nos sonhos que os A’uwe-Xavante recebem conselhos, conhecimentos e informações, seja de antepassados, de mensageiros espirituais ou dos seres criadores. Ali, podem antecipar situações no estado onírico para basear suas decisões. Assim, poderíamos inverter nossa frase inicial e afirmar que decisões importantes tomadas pelos anciãos de uma aldeia costumam ser levadas para consulta nos sonhos. É necessário disciplina e preparação para sonhar.
O cacique Damião Paridzané nasceu em Marãiwatsédé e nunca deixou de sonhar com essa terra. Conta que, certa vez, sonhou que era indicado a liderar seu povo de volta a sua terra. Ele assumiu o compromisso no sonho e, assim, iniciou sua luta. Era década de 1980 e os indígenas que foram deportados de sua terra Marãiwatsédé em 1966, estavam dispersos em várias aldeias A’uwe-Xavante. Seu primeiro passo foi reunir novamente seu povo. Foi através dos sonhos que entendeu todo o caminho que deveria percorrer para atingir seu objetivo.
Muitos anos se passaram, Paridzané é hoje um dos mais respeitados caciques A’uwe-Xavante. Seu sonho e a luta do seu povo culminaram na desintrusão completa da Terra Indígena Marãiwatsédé em 2013. Mas há muito ainda a ser feito para a reconstrução da terra onde nasceu. (foto Blog Marãiwatsédé)
A vida mansa e dura em Marãiwatsédé
O dia começa cedo na aldeia. Antes do amanhecer já há burburinho na trilha que dá no córrego. É o primeiro dos muitos banhos do dia. Logo cedo, ouve-se o canto dos waptés, adolescentes que estão no período de imersão na aprendizagem da cultura A’uwe-Xavante, anterior ao rito de passagem à vida adulta no qual furam suas orelhas. Os homens adultos e os anciãos trazem suas cadeiras e esteiras para o centro da aldeia para discutir as questões importantes do dia no warã, reunião que ocorre diariamente ao amanhecer e ao entardecer. Não tarda, no entanto, para o movimento direcionar-se à escola estadual, onde vão chegando os professores, todos A’uwe-Xavante, e as centenas de estudantes.
Mês de março é tempo de colheita de arroz e milho nas roças familiares. No fundo das casas, as mulheres pilam o arroz colhido. Elas passam grande parte do dia no rio, lavando roupa e vasilhas e se banhando junto com as crianças. Elas também cuidam da casa, coletam lenha e frutas nos arredores e trabalham na roça.
A vida até parece pacata se não estivéssemos falando da Aldeia Marãiwatsédé. Ela é resultado da épica e sofrida luta a que esta comunidade se dedicou ao longo de cinco longas décadas para voltar à terra de onde foram tirados. Atualmente é a maior aldeia A’uwe-Xavante, dentre as mais de 200 que existem, com quase 1.000 moradores. São 87 casas dispostas em semicírculo, cujo centro tem mais de 500 metros de extensão e abriga vários “campos” onde homens e mulheres jogam futebol no fim de tarde.
Este ano completa uma década desde que a comunidade retornou para esta terra e fundou a aldeia. Em grande parte da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, a paisagem ainda é de pastos, áreas degradadas e construções demolidas, resultado dos anos de invasão. Marãiwatsédé mantém há anos o título de Terra Indígena mais devastada da Amazônia Legal. Em 1992, dos 165.241 hectares (ha) demarcados, 66 % eram floresta, 11 % eram cerrado e somente o restante estava degradado. Foi nesse ano que se iniciou um processo sistemático de invasão. Dezessete anos depois, 103.628 ha de mata e cerrado já haviam sido derrubados. Durante esse período, desmatamentos para abertura de pastos e lavouras, incêndios criminosos e caminhões carregados de toras de madeira saindo da área eram episódios corriqueiros na região.
Faz pouco mais de um ano que esse território é ocupado somente por indígenas, mesmo assim, o risco de incêndio na época da seca é enorme, devido à insistência de ex-invasores de queimar a área. Além disso, como o próprio povo A’uwe-Xavante usa o fogo de forma tradicional para caça, roça e rituais, nas atuais condições ambientais locais, a chance da queimada feita por eles sair do controle também aumenta. Atualmente, o fogo é o fator que mais dificulta o processo de regeneração natural da área. A degradação ambiental atinge diretamente a alimentação da comunidade. Para um povo que exerce a caça e a coleta, a alimentação depende em grande parte do equilíbrio do ecossistema que habita.
Apesar de tudo, nestes dez anos, as primeiras mudas e sementes plantadas atrás das casas já dão frutos e sombra nos quintais. A regeneração natural ocorre lentamente enquanto animais, como as araras, começam a aparecer. Em 2012, a comunidade conseguiu eleger o A’uwe-Xavante Vanderlei Temireté (PSB) como vereador no município de Bom Jesus do Araguaia (MT). Temireté transita entre a aldeia e a cidade e leva as demandas da comunidade para a Câmara dos Vereadores e para o prefeito.
"Estou trabalhando na cidade, com os outros vereadores, mas sou índio, nasci índio e sempre vou ser índio. Estou trabalhando para melhorar minha aldeia. Trabalho pro meu povo e para as nossas crianças”. Vanderlei Temireté, vereador A’uwe-Xavante
De todas as dificuldades que enfrentam, porém, a insegurança é sem dúvida a maior preocupação da população de Marãiwatsédé. Após a desintrusão há mais de um ano, os indígenas relatam que já sofreram diversas ameaças, principalmente o cacique da aldeia. No ano passado, uma ponte dentro da TI foi incendiada por não-indígenas. Os A’uwe-Xavante não são bem-vindos em algumas cidades próximas à aldeia e sofrem preconceito. Isso é algo esperado após um conflito nestas dimensões no qual o poder e a mídia locais se posicionaram claramente contrários à desintrusão da TI Marãiwatsédé. E por isso mesmo, é importante que haja um trabalho informativo e educativo na região para que a relação entre indígenas e não-indígenas consiga ser minimamente harmoniosa.
A tensão tomou maior proporção em janeiro de 2014, no mesmo mês de retirada das forças de segurança que faziam a proteção pós-desintrusão da TI, quando cerca de 300 pessoas retornaram e acamparam no Posto da Mata, local dentro da Terra Indígena onde se localizava o povoado não-indígena. O cacique Paridzané relatou que foi impedido pelos invasores de chegar ao local e transitar livremente pelo seu território. Além disso, o posto de fiscalização da Fundação Nacional do Índio (Funai) dentro da TI foi incendiado.
Somente dois meses depois, foi realizada a operação de retirada dos invasores. As famílias retiradas foram alojadas em um ginásio de esportes e escolas da região. As forças de segurança ainda deverão permanecer por tempo indeterminado na TI Marãiwatsédé para averiguar o caso, garantir a segurança dos indígenas e coibir novas invasões.
(Re)conhecer para proteger
Tendo em vista a ameaça concreta de reinvasão, a gestão territorial é um ponto fundamental neste processo de retomada do território. Não só no âmbito de proteção do território, mas também pela necessidade de realizar o manejo adequado dos recursos que ainda restam e de recuperar aqueles necessários à sobrevivência física e cultural da comunidade indígena. Neste sentido, há muitas atividades sendo propostas pela comunidade e instituições parceiras, visando um modelo que alia as especificidades culturais com as práticas agroecológicas. A comunidade já fez o Plano de Gestão Territorial junto à Funai e entidades parceiras, e já realiza excursões pela Terra Indígena. Os i’rehi, guerreiros da aldeia, se organizam percorrendo regularmente a área e observando se há indícios de presença não-indígena, como armadilhas de caça ou restos de acampamento.
Já as mulheres realizaram, no ano passado, uma excursão de coleta, chamada dzo’omori, que durou três dias. Essa atividade fez parte do projeto de etnomapeamento e etnozoneamento iniciado ano passado junto à organização não-governamental Operação Amazônia Nativa (OPAN), em parceria com a Funai. Elas acamparam em fazendas retomadas e coletaram recursos, alimentos e matérias-primas para ornamentos. No Posto da Mata, chamado pelos indígenas de Mo’onipá, elas coletaram três variedades de inhame nativo (denominado mo’oni), muito apreciadas pelos A’uwe-Xavante. Foi uma surpresa boa para as mulheres e os anciãos, que não acreditavam que ainda haveria essa diversidade numa área tão modificada. Elas estão animadas para fazer novos dzo’omoris, que já estão previstos no calendário de atividades da aldeia para este ano.
“É importante a gente pegar essa memória que os velhos têm. Levar eles no campo para mostrar como era a vivência deles na época, e mostrar o local das aldeias antigas também. Isso vai ser um instrumento para a gente também, uma ferramenta que possa facilitar a história, a memória e a utilização dos recursos naturais do território”
Cosme Rité, diretor da escola, sobre o trabalho de etnomapeamento (foto Diego Gino)
Pelo projeto de etnomapeamento, serão três oficinas neste ano onde serão feitos mapas mentais e viagens pelo território para reconhecimento e identificação das áreas importantes para a comunidade, seja por seu valor histórico, espiritual ou pela presença de recursos como caça ou coleta. O resultado final será a produção de mapas, definição de pactos de uso futuro, elaboração de estratégias de vigilância territorial e outras ações para possibilitar melhores usos e compreensão do território pela comunidade.
Intercâmbios que valem mais que mil palavras
Visando a troca de experiências e aprendizado com outras comunidades, os A’uwe-Xavante têm investido em intercâmbios. Para este ano, haverá pelo menos um intercâmbio com um povo do Xingu. No ano passado, eles visitaram experiências da região, como no Projeto de Assentamento Jaraguá em Água Boa e em Campinápolis, e de outros povos indígenas como os Manoki em Brasnorte, também em Mato Grosso.
Um grupo de dez pessoas conheceu as experiências do povo Kisêdjê na TI Wawi, município de Querência, no vale do Araguaia, cujo histórico tem muitas semelhanças. A TI Wawi também é um território tradicional reconquistado pelos Kisêdjê, que contava com grandes áreas desmatadas das fazendas retomadas. As técnicas de reflorestamento apresentadas chamaram a atenção dos A’uwe-Xavante para novas estratégias de recuperação ambiental. Uma dessas experiências foi uma área que desde 1994 não é desmatada e que não pegou fogo, sendo possível a regeneração natural.
Os Kisêdjê como outros grupos do Xingu tem bastante experiência com associações e comercialização. Eles possuem uma cadeia produtiva bem estruturada do pequi, fruto tradicionalmente muito importante para os povos do alto Xingu. Hoje, além do consumo, os Kisêdjê beneficiam o pequi de várias formas para a venda, como a extração do óleo e da castanha e a produção de doce de pequi. Os A’uwe-Xavante aproveitaram as variedades de pequi que receberam neste intercâmbio, para plantá-las nas áreas demonstrativas agroflorestais, de volta à aldeia.
Ainda no ano passado, um grupo de A’uwe-Xavante de Marãiwatsédé também participou da viagem organizada por entidades da Articulação Xingu Araguaia (AXA) para conhecer a experiência da Cooperafloresta, em Barra do Turvo, no sul do estado de São Paulo. Esta é uma das mais bem sucedidas cooperativas de camponeses agroflorestais no Brasil. Apesar de já terem feito diversas vivências e oficinas sobre sistemas agroflorestais, o plantio de cultivares junto com árvores ainda é algo novo e visto com desconfiança por muitos A’uwe-Xavante. A forma tradicional de plantio é a roça de toco, na qual corta-se um pedaço de mata, queima, limpa e planta. Na vivência eles ouviram relatos de agricultores da Cooperafloresta que, assim como eles, faziam roça de toco, mas através dos sistemas agroflorestais, diversificaram ainda mais o que produzem num sistema mais sustentável.
“Era a mesma coisa lá, derruba a árvore depois queima. Mas eles mudaram, fizeram, testaram e deu certo para eles quando faz a roça e planta mandioca assim cruzado, e planta árvore no meio. Quando sai e cresce a mandioca, já pode tirar, já pode alimentar com aquela mandioca. Eu achei interessante. Então, nós vamos testar isso aqui também, já estamos fazendo”
Alcione Wa’aihã, sobre a vivência com a Cooperafloresta (foto Paulo Varalda)
Segurança alimentar e reflorestamento
O sistema agroflorestal (SAF) tem se mostrado muito adequado para proporcionar o reflorestamento com a produção de alimentos. Assim, se combate duas das principais dificuldades desde que retornaram ao seu território: a degradação ambiental e a insegurança alimentar.
No fim do ano passado, juntamente com a OPAN, foram feitas duas áreas demonstrativas de plantio agroflorestal nas quais foram plantadas sementes de árvores nativas e frutíferas, inclusive das variedades de pequi que ganharam dos Kisêdjê, consorciadas com mandioca. Cada área é respectivamente cuidada por rapazes waptés e do grupo etário Nodzo’u.
Além destas duas áreas demonstrativas, os A’uwe-Xavante já planejaram os plantios agroflorestais para o fim deste ano. Uma das áreas será de casadão, nome regional dado para o plantio de SAF, misturando sementes e mudas. Outra usará a técnica desenvolvida na região pelo Instituto Socioambiental (ISA) de plantio mecanizado da mistura de sementes chamada de muvuca. Como uma das principais ameaças à conservação destas áreas são as queimadas na época da seca, será feito também um aceiro verde ao redor das áreas, plantando uma muvuca de sementes de espécies com características como resistência ao fogo ou que acumulam água.
Outros espaços muito importantes para a segurança alimentar são as roças e os quintais. As roças A’uwe-Xavante são familiares onde plantam milho e feijão, tendo variedades próprias destes, além de arroz, abóbora, melancia entre outros. Eles também plantam árvores e cultivos como mandioca e cana-de-açúcar nos quintais familiares atrás das casas.
Neste sentido, eles contam desde a fundação da aldeia com a distribuição por entidades parceiras de sementes e mudas para o enriquecimento destes quintais e roças. No fim de 2013, a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – distribuiu 36 variedades de feijão-fava (Phaseolus lunatus L.) visando aumentar a diversidade dos cultivares usados nas roças. As sementes foram entregues a agricultoras e agricultores chaves, que farão a reprodução destas, na expectativa de que elas se espalhem com o tempo pela aldeia. Dentre as sementes que vieram, os anciãos identificaram uma espécie que tinha sido perdida nas roças A’uwe-Xavante de Marãiwatsédé, chamada Waduhöbo. Anteriormente, a Embrapa já havia doado variedades de tubérculos, raízes e hortaliças não convencionais, como batata-doce, araruta, ora-pro-nobis e bertalha, além de variedades do milho A’uwe-Xavante. Outros parceiros também tem apoiado a comunidade com doação de mudas de plantas frutíferas e de uso tradicional, além de estimular a multiplicação destas pelos próprios A’uwe-Xavante para conquistarem autonomia quanto à agrobiodiversidade que utilizam.
O povo de Marãiwatsédé conta ainda com um plantio mecanizado de arroz para abastecer toda a comunidade, num total de 30 ha, feito junto com a Funai. Além da roça, da caça, da coleta e da pesca, os A’uwe-Xavante complementam sua alimentação com produtos do mercado, adquiridos nas cidades próximas com recursos de salários e pensões.
Um projeto coletivo de escola
O Plano Político Pedagógico (PPP) para a escola estadual da aldeia para 2014 conseguiu incluir no calendário da escola, atividades de campo e oficinas de valorização da comida tradicional. O diretor da escola, Cosme Rité, conta que o plano foi uma construção coletiva da comunidade e teve a orientação dos anciãos, de como eles pensam o futuro para as futuras gerações. Assim, em março já ocorreu uma primeira oficina de Datsá Uptabi, de alimentação tradicional, na qual as mulheres mais velhas ensinaram as alunas dos jovens grupos etários Abare’u e Nodzo’u a fazerem o bolo de milho tradicional.
As atividades de campo incluem plantios agroflorestais e excursões pelo território, dialogando com os projetos que já desenvolvem na aldeia. Outra atividade prevista no PPP é a elaboração de um calendário sazonal. Ali, serão levantadas as atividades anuais realizadas pela aldeia, como roça, caça, coleta e pesca, detalhando as épocas de plantio, colheita e coleta, e os períodos nos quais se pode pescar, quais caças estão disponíveis, entre outros.
Também será produzida uma pequena cartilha educativa sobre as plantas usadas pelos A’uwe-Xavante. Essa cartilha será o resultado de um levantamento etnobotânico feito pela escola para identificar quais são as plantas medicinais, ornamentais e cerimoniais e seus usos, para apoiar o aprendizado cultural dos jovens A’uwe-Xavante.
Mulheres Coletoras de Sementes
Uma iniciativa que tem crescido na aldeia é a coleta de sementes. Em 2011, as mulheres, apoiadas pela OPAN, formaram um grupo de coletoras da Rede de Sementes do Xingu, o Pi’õ Romnhá Ma’ubu’mrõiwa, nome sugestivo que significa Mulheres Coletoras de Sementes. Na Rede de Sementes do Xingu, articulada pelas entidades da AXA e outras da sociedade civil, grupos organizados de indígenas e camponeses coletam sementes de floresta, cerrado e cultivos para comercialização e troca para uso em áreas que serão reflorestadas na região. Sendo a coleta de frutos e sementes uma atividade tradicional feminina, não foi difícil para o grupo começar, com 11 mulheres. Hoje participam 78 coletoras, entre crianças, jovens, adultas e idosas, pertencentes a 13 famílias da aldeia e que coletaram 123 kg em 2013.
Além da renda com a venda de sementes, o trabalho ajuda na gestão territorial, já que as coletoras passam a observar as árvores do território e os períodos de floração e frutificação. As principais espécies coletadas atualmente são carvoeiro, favela, jatobá, caju e adubações-verde como crotalária, fedegoso e feijão de porco. Na Rede de Sementes é necessário mapear onde estão as árvores-matrizes de sementes e seguir um plano de manejo para que a extração das sementes não seja predatória. Isso é ainda mais importante aqui, se pensarmos que se trata de uma terra devastada ambientalmente. Além do mais, as coletoras se comprometem a plantar parte das sementes que coletam.
Outro resultado interessante do grupo de coletoras é que se tornou um espaço de encontro das mulheres fora do habitual. Nas reuniões regulares não se fala somente sobre a estruturação do grupo ou a qualidade das sementes, mas também é um momento no qual as jovens ouvem os conselhos e sermões das anciãs e outros assuntos são discutidos. Dentro desse grupo, elas também começaram a organizar a comercialização do artesanato que produzem para uma loja no Rio de Janeiro.
É uma experiência que vem crescendo ano a ano. Para os próximos anos estão previstas as construções de uma casa de sementes, um espaço de formação do grupo e um viveiro para produção de mudas para o reflorestamento da própria aldeia e da Terra Indígena. Com a revegetação natural e experimental na Terra Indígena, a variedade e quantidade de espécies aumentam e também o trabalho das coletoras.
Da conquista ao sonho
Além destes projetos que estão sendo tocados e planejados, a comunidade também tem investido em diferentes frentes. O cacique Paridzané elenca as suas prioridades: promover a proteção da sua terra, desenvolver a alimentação tradicional, fortalecer a Funai e melhorar a saúde indígena, reflorestar a terra junto com as entidades parceiras, trazer a tecnologia útil para os jovens, a escola e a aldeia, e, por fim, que sejam respeitados pela sociedade brasileira os direitos indígenas e a Constituição Federal. São muitas ainda as transformações necessárias para o bem estar da sua comunidade, e de certa forma dos povos indígenas brasileiros como um todo, mas a clareza quanto aos principais objetivos a serem trabalhados e a determinação para alcança-los é uma característica deste povo. Se a história de Marãiwatsédé é marcada até os dias atuais por dificuldades, sofrimentos e ameaças, desta vez, a comunidade terá a calma e as ferramentas para trabalhar na construção de um futuro cada vez melhor para seus descendentes na terra onde nunca mais deixarão.
“Os índios não criaram a lei, os índios estão aqui antes, mas a lei foi criada pelos brancos para proteger e eles mesmo não respeitam suas leis”
Vanderlei Temireté
Mas não podemos esquecer que se estamos falando de Marãiwatsédé é porque trata-se de um caso emblemático dentro dos conflitos envolvendo indígenas no Brasil. A resolução da questão só ocorreu depois que esta já tinha tomado proporções gigantescas e houve perda e sofrimento tanto para posseiros quanto para indígenas, dois personagens erroneamente considerados opostos já que estão do mesmo lado de um sistema excludente. De começo, existe a falta histórica e persistente de uma política pública de organização fundiária e reforma agrária no Brasil que deixa à própria sorte famílias que só precisam de terra para morar e trabalhar, bem como povos indígenas cuja própria terra lhes é negada. Enquanto lutam por um mesmo espaço, as grandes fazendas crescem, marginalizando ainda mais as pessoas da terra. Soma-se a isso a omissão e lentidão do governo em dar uma resposta firme quando surgem irregularidades abertamente, como ocorreu no incentivo à ocupação da terra devolvida aos A’uwe-Xavante. Por fim, estas situações só ocorrem porque a cultura do coronelismo ainda persiste, levando pessoas a insistirem em atos sabidamente ilegais, ancorados na proteção que esperam de poderosos. Neste e nos últimos casos similares, como Raposa do Sol e os Awá-Guajá, a Justiça tem respeitado os direitos indígenas versados na Constituição Federal, não restando dúvida quanto à legitimidade do povo tradicional em acessar em segurança seu território reconhecido.
Mas lá na aldeia, distantes, mas não alheios à sua condição, o dia vai perdendo o brilho em Marãiwatsédé. As crianças, soltas até então pela aldeia, vão retornando para suas casas com o entardecer. Os homens e anciãos se reúnem novamente no centro para mais um warã. Ali, discutirão as principais questões do dia que passou e planejarão o dia seguinte. Em seguida, voltarão às suas casas e sonharão.
O histórico do conflito de Marãiwatsédé
A’uwe-Uptabi – O Povo Xavante
Segundo o último censo, a população A’uwe-Xavante é de 18 mil pessoas, vivendo em mais de 200 aldeias em onze Terras Indígenas, a maioria descontínua. É uma sociedade que se caracteriza pelo seu dinamismo político, vivenciado através de disputas e alianças entre grupos, que tem por núcleo uma linhagem ou associação de linhagens aparentadas. A vida do povo A’uwe-Xavante é marcada, desde seu passado, pela mobilidade e pela dualidade.
Suas aldeias tem forma de ferradura, voltadas para um córrego. O centro da aldeia é o warã, espaço político onde os homens adultos se reúnem diariamente pela manhã e ao anoitecer para conversar, planejar e discutir. Tradicionalmente praticam excursões e acampamentos que podem durar dias ou meses, realizados somente por homens ou por toda uma aldeia, dependendo do seu propósito. O contato com a população não-indígena os obrigou a ter uma vida mais sedentária e limitada ao território demarcado. Mesmo assim, o povo A’uwe-Xavante tem grande apreço pela sua mobilidade, realizando saídas frequentes de caça e coleta no seu território e também às cidades, frente às novas necessidades.
O povo A’uwe-Xavante se divide em clãs opostos e complementares. A criança ao nascer herda do seu pai o pertencimento a um clã e deve se casar com uma pessoa do clã complementar. Os clãs são Poredza’ono (girino) e os complementares Ö’wawe (rio grande) e Topdató (círculo). Se por um lado, os clãs competem entre si, inclusive desde a tenra idade, na luta das crianças chamada Oi’ó, eles se complementam para formar uma família. Da mesma forma, funcionam os oito grupos de idade, aos quais pertencem todos os adultos da aldeia. Estes oito grupos etários se aliam em dois grandes grupos competitivos. Essa cultura de oposição e movimento dá ao xavante uma compreensão de mundo no qual a divisão, a instabilidade e a contradição são partes integrantes e naturais.
Os A’uwe-Xavante eram conhecidos pelos não-indígenas desde os tempos de colônia, porém não mantinham contato frequente ou amigável. No século XVIII, há registros do povo A’uwe-Xavante vivendo no aldeamento Carretão, na então província de Goiás. Foi nesse século que os A’uwe-Xavante cruzaram o rio Araguaia, dominando o território que se estendia pela Serra do Roncador no vale do Rio das Mortes, reagindo de forma violenta a qualquer presença externa no seu território. Na região foi fundada a aldeia Sõrepré, considerada a última aldeia onde houve unidade política do povo A’uwe-Xavante. Dali partiram, em diferentes épocas, grupos que formaram novas aldeias que, por sua vez, fragmentaram-se, migrando em diferentes direções. Essas divisões internas dentro do povo A’uwe-Xavante existem até os dias atuais, e foram acentuadas pela demarcação descontínua das Terras Indígenas, tendo em seu entorno fazendas, estradas e cidades. Marãiwatsédé é um desses grupos A’uwe-Xavante.
O povo de Marãiwatsédé vivia numa área de contato do cerrado com a floresta de transição para a amazônica, bastante fértil e diversa. Era o único grupo A’uwe-Xavante a habitar e utilizar as matas de transição, localizado na região mais ao norte do território habitado pelos A’uwe-Xavante, entre os rios Tapirapé (ao norte), Araguaia (leste) e Xingu (oeste), fazendo limite ao sul pelo território ocupado por outro grupo xavante, de Wedezé. Como o A’uwe-Xavante é originalmente um povo do cerrado, ou Ró, a floresta é vista como um ambiente misterioso e amedrontador, daí o nome que denominava a região onde essa comunidade vivia: marãiwatsédé (lê-se marãi uassédê), que pode ser traduzido como mata perigosa ou sombria (marã = floresta, watsédé = ruim, mal). Em seu apogeu, Marãiwatsédé era formada por várias aldeias cujo centro político e cerimonial era a aldeia chamada Bö’u.
Para saber mais:
Leia o livro Terra de Esperança, OPAN, de 2012
Veja o filme Vale dos Esquecidos, de Maria Raduan, de 2012
Escute as músicas de Márcio Tserehité
Analise a linha do tempo do conflito
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