Pilhas de destroços de casas desapropriadas e derrubadas para dar lugar ao empreendimento do Porto do Açu, no 5° Distrito de São João da Barra (RJ), tornaram-se imagens comuns no município. Há meses elas estão ali sem serem recolhidas. Junto ao entulho, invariavelmente uma placa. Em alguns casos, os dizeres traduzem uma contradição explícita: “Propriedade Privada da Codin” (Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio, portanto, órgão público). Em outros, letras garrafais realçam que se trata de terreno da LLX, do megaempresário Eike Batista.
(Canal Ibase)
O bota-abaixo do Norte-Fluminense é fruto de uma desapropriação, que já atinge diretamente pelo menos 1.500 famílias, impactando cinco mil empregos e levando a uma modificação radical do meio ambiente, cada vez mais degradado.
É um processo em que a questão fundiária tem sido considerada uma caixa-preta e com uma perigosa aproximação entre interesses públicos e privados, envolvendo transferências de ativos a corporações estrangeiras. Há ainda descumprimento de contratos assinados entre o governo e os moradores de áreas desapropriadas, com participação da empresa. Agricultores, comerciantes, prestadores de serviços, marisqueiras e pescadores compõem um grupo de afetados pelo empreendimento.
O argumento para a concessão de todas as licenças ambientais é que se trata do sacrifício de poucos, numa região de baixa densidade demográfica, para algo que seria de interesse público.
- O escândalo no Porto Açu é o processo de transferência de terra para mãos privadas com o aval e recursos do estado – diz a antropóloga Gabriela Scotto, da Universidade Federal Fluminense, que vem estudando os impactos do empreendimento. – A concentração de terra, é claro, só pode beneficiar meia dúzia.
A propósito, a concentração de terra ali foi tão intensa que não só foram transferidos grandes terrenos do Quinto Distrito para a LLX como também em seu entorno a corporação de Eike Batista adquiriu quatro fazendas: a Caruara, de Saco Dantas, do Meio e Palacete. Assim, o município de São João da Barra deixou vários agricultores a ver navios e passou a ter um grande latifundiário e um modelo de desenvolvimento mais voltado às questões nacionais e internacionais do que às locais.
Há anos, moradores atingidos vêm denunciando irregularidades como situações de pressão da empresa sobre as famílias, falta de clareza sobre o projeto, ausência de transparência na relação da LLX com a Codin, descumprimento da legislação ambiental, entre outros problemas. Nada foi feito. Nesse tempo, porém, os atingidos articularam-se. O Canal Ibase esteve no mês passado em São João da Barra para acompanhar um Intercâmbio das Resistências ao projeto Minas-Rio. Com apoio do Ibase, de pesquisadores do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), da Universidade Federal de Minas Gerais, e da Universidade Federal Fluminense, além do Instituto Federal Fluminense, um ônibus lotado viajou durante 14 horas desde a cidade de Conceição do Mato Dentro (MG) até São João da Barra. Os mineiros foram ao encontro dos cariocas por um objetivo em comum: denunciar as irregularidades cometidas pelo projeto Minas-Rio, do qual o Porto do Açu faz parte. O sistema todo responde pela conexão de uma mina aberta na cidade de Conceição de Mato Dentro com o Porto do Açu, por meio da construção de um mineroduto. São 525 quilômetros de extensão, impactando 32 cidades pelo caminho.
Idosa sob pressão para deixar sua casa
Isolados, aqueles que tentam resistir são os mais impactados. Ana Ribeiro, de 75 anos, boné com símbolo de luta pela terra na cabeça, carrega dados sobre o Porto Açu mais na ponta da língua do que qualquer outra informação. Viúva, mora sozinha em um terreno desapropriado pelo decreto que criou o distrito industrial. É proprietária de uma área de sete alqueires e não quer sair do local onde morou a vida inteira e onde tem as raízes. Todos os vizinhos já cederam. Ela está cercada agora de pessoas de fora, trazidas pela LLX para trabalhar no empreendimento. E vive sob tensão. Recentemente, recebeu um ultimato da empresa dizendo que precisa sair:
- Me deram oito dias. Desesperei-me. O dinheiro que querem me dar não é suficiente para eu reconstruir minha vida como ela é. À minha volta agora, só tem gente da firma (LLX). Tenho medo, mas não saio assim expulsa, não – enfatizou ela, que participou do encontro dos atingidos e tentava a aprender a usar a câmera do celular para registrar o momento.
Reunidos na Associação de Produtores Rurais e Industriais do Açu (Asprin), alguns atingidos lembravam no mês passado os muitos casos que revelam violação de direitos humanos. O mais dramático talvez seja o da família Toledo. Enquanto os parentes do agricultor José Irineu Toledo, morto em agosto vítima de um AVC, estava liberando o corpo, policiais e técnicos da Codin entram no terreno dele.
_ Toledo teve a propriedade destruída no dia da morte dele, a família estava acompanhando a liberação do corpo, quando veio a imissão de posse, e começaram a arrasar com máquinas a lavoura e a cerca de arame farpado e retirar o gado de lá – diz Reinaldo Toledo, primo de José Irineu – Enquanto o corpo estava no velório, invadiram a propriedade.
Para o advogado Teo de Almeida, especialista em questões fundiárias, pelo relatos dos agricultores, houve flagrante desrespeito ao devido processo legal e violação clara de direitos individuais e coletivos:
- Para alcançar este fim houve uma harmonia perfeita do poder executivo Estadual e Municipal criando instrumentos administrativos, como alteração de perímetro rural para urbano, criando o distrito industrial e decretação de desapropriação de um perímetro com vários agricultores proprietários e posseiros sem individualizar suas situações.
O empreendimento do Porto do Açu é alvo de oito inquéritos no Ministério Público do Rio de Janeiro, que analisam não apenas a correção de irregularidades, como até a possibilidade de não continuidade do projeto. Entre os mais importantes, está justamente o que questiona a maneira como têm sido feitas as desapropriações das casas de moradores. Outros processos de grande relevância são sobre a salinização do Canal Quitinguta, em razão do aterro de areia que aponta falhas e sobre a ilegalidade no Estudo de Impacto Ambiental (EIA Rima). Os oito inquéritos estão sob a 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Campos. Não à toa, cresce a pressão para que as audiências públicas sejam retomadas na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Uma queixa-crime contra o empresário Eike Batista, o governador do Rio, Sérgio Cabral, e o presidente do BNDES, Sérgio Couti nho também foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no final do mês de agosto, feita por agricultores atingidos. Mas, enquanto isso, as obras continuam, e as denúncias ficam submersas sob o avanço do empreendimento.
A Codin confirma a transferência de terras para a iniciativa privada sem dar grandes detalhes, ou seja, sem grande transparência. O texto da assessoria de imprensa do órgão sobre o tema enviado ao Canal Ibase é o seguinte: ”A Codin obtém a posse das áreas após o ajuizamento das ações de desapropriação. Através de instrumento próprio transfere a posse das áreas a empreendedores interessados em instalar empresas na área do Distrito Industrial”. No caso, só houve um grupo interessado…
LLX procura famílias, antes do poder público
A empresa LLX, e não a Codin, foi o primeiro órgão a bater à porta de um casal, que não quis se identificar. Ele era pescador e ela dona de casa, então grávida de seis meses. Os dois contaram que um dia funcionários da LLX foram à casa deles e disseram que a família teria de sair dali. Para onde? A Vila da Terra, reassentamento feito para receber desapropriados. O local fica a quilômetros de distância da casa original dos dois. Não tem lagoas próprias para pesca nas proximidades.
- Tivemos que mudar tudo. Nunca cultivei nada, de repente tive que virar agricultor, minha renda caiu – disse ele.
Ela complementou, com a criança, agora já prestes a completar dois anos, nos braços:
- Fomos forçados a mudar de vida. E aqui não tem nada perto. Não tem posto de saúde, como prometeram. Já precisei algumas vezes para minha filha e só conseguimos ir porque temos carro.
O próprio contrato de desapropriação dos terrenos e casas deixa explícita a confusão entre interesses públicos e privados. Na Vila da Terra, o Canal Ibase teve acesso a um contrato com o símbolo da LLX no cabeçalho, ao lado do da Codin, que assina o termo. Nele, há uma cláusula que afirma a emissão de um documento de declaração da propriedade seis meses após a instalação dos moradores. Para algumas famílias, já se passaram dois anos. Nenhum dos moradores consultados possui o título até o momento.
No terreno da Vila da Terra, estava instalada a antiga Fazenda Palacete. A área pertenceria ao empresário Eike Batista, mas há controvérsias em relação a isso, já que um dos herdeiros da fazenda não reconheceu a transação da compra, que se encontra em litígio judicial. A AGB diz que há a hipótese de que esse litígio explique o fato de não haver qualquer família com o registro definitivo de posse.
Aluguel cobrado pela LLX pelos terrenos é o triplo do preço pago aos agricultores durante a desapropriação
A transformação imobiliária radical já se traduz em números. À imprensa internacional, Eike Batista vinha dizendo que seus 90 quilômetros quadrados de terra são equivalentes às dimensões da Ilha de Manhattan. A valorização do empreendimento não ficou só na retórica. Se o valor mais alto de indenização de uma família até o momento foi de R$ 1,90 o metro quadrado, já há casos de aluguéis por R$ 6,00 o metro quadrado, de acordo com dados do professor engenheiro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia.
- Dados da própria empresa mostram que o potencial de aluguel ali é de R$ 7 bilhões – diz Morais.
O governo do Estado do Rio desapropriou uma área 7,2 mil hectares equivalente à do Quinto Distrito. O processo foi conduzido sem transparência e suscita muitas dúvidas.
- A questão fundiária é uma caixa preta. O próprio diretor de sustentabilidade da LLX, Paulo Monteiro, admitiu, numa audiência pública, que a questão fundiária do Açu é uma das mais difíceis com a qual a empresa se deparou – disse o geógrafo Eduardo Barcelos, da Associação de Geógrafos do Brasil (AGB), que acompanha o caso há alguns anos.
No Quinto Distrito, ressalta o relatório da AGB, as famílias viviam ali há muitos anos. Estudos mostram que, desde o século XVIII, as casas ali foram passadas de geração em geração. Para a AGB, mesmo se em alguns casos não havia documento de propriedade, o poder público teria de respeitar o direito à terra.
A resposta do Inea sobre todo esse imbróglio foi diminuta. Só informaram no que consiste o complexo do Açu – “porto multiuso, distrito industrial, duas termelétricas, estaleiro, terminal e siderúrgica” – e afirmam que “as remoções referem-se principalmente ao distrito industrial e estão sendo acompanhadas pela Codin e que as condicionantes vêm sendo atendidas a contento”.
Quando indagada sobre as denúncias de que alguns moradores foram informados pela desapropriação por intermédio da LLX antes de qualquer visita da Codin, a entidade afirmou que essa informação não procede. A Codin afirmou também que as famílias receberam áreas que variam de 2 a 10 hectares, com casas de dois, três e quatro quartos, mobiliadas e dotadas de eletrodomésticos. Segundo a empresa, as famílias já estão colhendo as primeiras safras, mas, no local, moradores relatam dificuldade de cultivo naquela região.
Mais do que transferência de terras, o caso tem fortes indícios de uma nova modalidade comum na era de globalização: a transferência de terras e ativos em geral para mãos de corporações estrangeiras. No dia 14 de agosto, a LLX divulgou a assinatura de Termo de Compromisso com o Grupo americano EIG para investimento de R$ 1,3 bilhão na companhia. De acordo com o documento, o Grupo EIG passa a ser o controlador da LLX. Segundo a assessoria de imprensa da própria LLX, não é um processo de venda, e sim de aumento de capital. Mas, na prática, quando a operação for concluída, Eike passará a deter 21% da companhia (atualmente ele detém 53%). Ou seja, deixará de ser sócio majoritário.
Sobre a compra de terrenos de moradores antes de qualquer comunicado da Codin, a LLX admite que faz um serviço que seria obrigação da Codin e o classifica de “medida social”. Assim, por intermédio de sua assessoria de imprensa, a LLX, ao tentar se justificar, só expõe a mistura entre o público e o privado. “Importante esclarecer que o processo de desapropriação é conduzido pela Codin. A LLX tem realizado, como medida social, a compra de imóveis de áreas que serão desapropriadas (isso porque a maioria dos moradores não possui documentos que comprovem a propriedade da área). Com a compra direta pela LLX – pelo mesmo valor do laudo da desapropriação – eles recebem o valor imediatamente. Após a conclusão, a empresa busca os documentos para comprovar a propriedade e se habilita no processo”, diz a nota da empresa, demonstrando desconhecimento sobre como se faz uma desapropriação.
A ação certamente acelera o trâmite. Mas quem é o real interessado nessa rapidez, se as famílias, em muitos casos, sequer gostariam de sair do local onde moram? Para fechar o processo, a LLX não arca com prejuízo algum, já que, em seguida, a empresa se habilita para a desapropriação. Em outras palavras, a LLX apressa a saída das pessoas, é ressarcida por verba pública e ainda fica com a titulação da terra. Somado a tudo isso, ela ainda tem o direito de repassar o controle do empreendimento para outra corporação – inclusive estrangeira – como ocorre neste momento no caso do Grupo EIG. Não à toa uma fonte do EIG declarou, em reportagem feita pela agência Reuters, que a empresa espera que o porto seja usado para serv ir a Petrobras e parceiros como a britânica BP Group e a espanhola Repsol, em meio a exploração das reservas de petróleo do pré-sal ao longo da costa do Brasil. Segundo a fonte da agência: “O ponto de desembarque para todo esse petróleo é o porto do Açu. É uma jóia da coroa”
Está em jogo ali muito mais do que vem sendo dito.