Relatório sobre qualidade da água do São Francisco indica concentração acima do permitido de poluentes em áreas industriais, violação apontada por especialistas como a mais grave no rio.
(jornal Estado de Minas e foto João Zinclar)
São Gonçalo do Abaeté, Três Marias e Januária – De um dia para o outro, a pescadora Maria Rosilene de Souza, de 40 anos, percebeu erupções em áreas sensíveis do corpo, como as axilas e a virilha. “Fiquei com a pele toda irritada e apareceram feridas. Depois, apareceram em outras pessoas que vivem na beira do Rio São Francisco”, conta. A mulher conseguiu se tratar do problema em Belo Horizonte graças à ajuda da associação dos pescadores de São Gonçalo do Abaeté, que aponta a poluição industrial como uma das responsáveis pela intoxicação de moradores e peixes na região. A avaliação de que a indústria contribui para piorar a qualidade da água é confirmada por especialistas e por relatório oficial sobre o mais importante rio de Minas.
Como mostrou ontem o Estado de Minas, a mais recente análise do Instituto Mineiro de Gestão Águas (Igam) apontou que oito (57%) dos 15 pontos de monitoramento do Rio São Francisco apresentavam níveis de agentes poluidores acima do tolerado pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Os poluentes considerados mais tóxicos foram encontrados justamente na área de 20 quilômetros em que atua diariamente a pescadora Maria Rosilene, entre a barragem do Lago de Três Marias e o município vizinho de São Gonçalo do Abaeté, na Região Central de Minas.
Há dois índices ruins apontados pelo relatório do Igam na região de Três Marias e São Gonçalo do Abaeté. Próximo à ponte da BR-040 sobre o Rio São Francisco foram detectadas violações dos níveis de coliformes fecais: estão 400% acima do limite estabelecido pelo Conama. Nesse caso, o Igam indica o lançamento de esgoto doméstico como vilão. Mas no trecho de monitoramento seguinte, na foz do Rio Abaeté, a 19 quilômetros da ponte, há vestígios de contaminação das águas pela indústria. Nesse ponto, o Igam registrou níveis de sulfetos 4.400% maiores do que o máximo permitido. Para se ter ideia, o Conama estima que o limite para esse tipo de substância seja de 0,002 miligrama por litro de água. No trecho que antecede a foz do Rio Abaeté, a concentração salta para 8,8 miligramas por litro.
Contaminação Sulfetos são combinações de enxofre com outros elementos químicos, em geral metais pesados, como chumbo e zinco. “Encontrar sulfetos na água é uma violação muito séria, a mais grave em todo o rio”, alerta o biólogo Rafael Resck, mestre em ecologia aquática, consultor em recuperação de ecossistemas e responsável por levantamentos no curso d’água para a Cemig. Embora tenha apontado o lançamento de esgoto doméstico como causa do alto índice de coliformes fecais perto de Três Marias, o Igam não especificou que fonte pode ser responsável pela contaminação por sulfetos. O biólogo Rafael Resck diz que a alta concentração é decorrente de atividade industrial.
“Sulfetos são indicadores diretos de poluição industrial. Efluentes de esgotos contêm sulfetos, mas em quantidade pequena. Para atingir um nível desses em um rio volumoso como o São Francisco, é indicador de uso industrial”, afirma Resck. Paulo dos Santos Pompeu, coordenador do Laboratório de Ecologia de Peixes da Universidade Federal de Lavras (Ufla), acrescenta que “sulfetos são usados de maneira associada a vários tipos de minério. Quando se remove o metal, o sulfeto é um dos resíduos dessa produção”.
Os dois especialistas alertam que a quantidade de sulfetos apontada pelo relatório do Igam é ameaça aos peixes e aos seres humanos. “Nessa concentração encontrada pelo Igam, os sulfetos chegam a matar peixes e a contaminar o homem”, afirma Rafael Resck. “Os sulfetos agem principalmente no potencial de hidrogênio (pH), tornando a água mais ácida e inóspita para a vida aquática”, emenda Paulo dos Santos Pompeu.
Cobre em alta concentração
A alta concentração de sulfetos não é o único problema relacionado a atividades industriais apontado pelo mais recente relatório do Instituto Mineiro de Águas sobre a qualidade da água do Rio São Francisco. Na cidade de Januária, no Norte de Minas, onde é frequente o lançamento de esgotos domésticos na rede pluvial e em ligações clandestinas que atingem o Rio São Francisco, foram detectadas concentrações de cobre 31% superiores ao máximo permitido pela legislação. A violação é atribuída a atividades industriais. Segundo o biólogo Rafael Resck, é comum indústrias e curtumes aproveitarem para “camuflar” seus efluentes e lançá-los em meio aos dejetos sanitários. O cobre pode acarretar lesões ao fígado humano e é nocivo aos peixes, causando coagulação do muco das brânquias e matando os animais por asfixia.
Há também afluentes do Rio São Francisco em situação crítica. No Rio Borrachudo, que corta a cidade de Tiros, no Alto Paranaíba, a 365 quilômetros de Belo Horizonte, representantes do Instituto Estadual de Florestas (IEF) apontaram que a mineração e garimpos clandestinos contribuem, com lançamento de rejeitos, para a alta concentração de sulfetos. Segundo o o relatório do Igam, o índice na região está 900% acima do limite do Conama. Além disso, o instituto detectou também violações para fenois, da ordem de 33% acima do limite. Esse composto é um ácido que resulta de atividades siderúrgicas e industriais potencialmente tóxico ao homem, organismos aquáticos e micro-organismos. É considerado substância cancerígena.
Pescadores reclamam de indústria
Diante de casos de intoxicação de moradores e peixes, pescadores de São Gonçalo do Abaeté, na Região Central do estado, dizem ter redobrado a atenção com as atividades da Votorantim Metais, antiga Companhia Mineira de Metais (CMM), única indústria de grande porte que faz lançamentos no Rio São Francisco entre Três Marias e São Gonçalo do Abaeté. A planta em Três Marias usa sulfetos no processo de produção de zinco e de ácido sulfúrico.
“Estamos atentos porque a morte dos peixes acaba com nosso sustento. No fim do ano passado, por exemplo, vimos caminhões transportando material contaminado na estrada da CMM”, diz o presidente da Associação dos Pescadores de São Gonçalo do Abaeté, Moisés Cirino Nunes dos Santos. “O que derramava (dos caminhões) poderia chegar ao rio com as chuvas e, por ser concentrado, poderia matar peixes como o surubim e o dourado”, acrescenta.
A Votorantim Metais garante que cumpre as obrigações ambientais e que seu complexo industrial em Três Marias nada tem a ver com a contaminação no Velho Chico. “Não existe relação entre o percentual de sulfeto encontrado pelo Igam no Rio São Francisco e nossas operações. Realizamos o monitoramento de efluentes, com análises feitas por laboratório credenciado pelos órgãos ambientais, e não foi verificada a presença de sulfeto em nossos efluentes”, afirma o gerente-geral de Sustentabilidade da empresa, Ricardo Barbosa. Ele também negou que tenha ocorrido contaminação devido a problema no transporte de materiais para novo depósito. “Houve denúncia, mas uma análise constatou que não houve impacto.”