Confira artigo de Roberto Malvezzi sobre a mercantilização das águas, prática que começa a tomar corpo em nosso país. Essa é a lógica dos interesses do capital, transformar bens naturais em mercadorias, vendáveis e rentáveis.
Roberto Malvezzi (Gogó)
Como estava previsto na lei nacional de Recursos Hídricos 9433/97, a cobrança pelo uso da água começa a se difundir pelo Brasil. Ela se torna possível quando é criado um comitê de bacia e esse comitê cria sua agência de águas, isto é, um corpo técnico que se torna responsável pela implementação da cobrança. Entretanto, a cobrança é uma decisão do comitê.
O São Francisco começa nesse mês a cobrar pela água, o que tem deixado muita gente preocupada. De fato, a cobrança pela água é muito mais complexa do que se pode imaginar à primeira vista. Os chamados usuários – qualquer ente físico ou jurídico que utilize águas de um determinado corpo d’água, como irrigantes, indústria, serviços de saneamento, etc. – terão que pagar por ela, desde que esteja acima do chamado “uso insignificante”, que no São Francisco foi determinado em 4 litros por segundo. Acima disso, qualquer usuário terá que receber uma outorga e terá que pagar por cada metro cúbico utilizado.
Mas, não paga apenas pelo que capta, pagará também pelo que devolve ao corpo d’água em forma de efluentes. Quanto mais limpa for a água captada, mais caro se paga. Quanto mais suja for a água devolvida, mais caro se paga. Quando o uso é “consuntivo”, isto é, a água retirada não volta mais àquele corpo d’água, como é o caso da Transposição, ainda mais caro se deve pagar.
O critério é o enquadramento dos corpos d’água, que de forma sintética, classifica a qualidade da água. Aí entra outro fator complexo, já que a classificação é pelo DBO – demanda biológica por oxigênio – que indica a demanda de oxigênio que aquele efluente vai demandar do corpo d’água, para processar seu material orgânico. Portanto, não são avaliadas questões chaves, como a contaminação por metais pesados.
A água do São Francisco a ser captada pela Transposição está classificada no nível 2, portanto, nem a melhor das águas, nem a pior. Além do mais, é um uso cem por cento consuntivo, já que nenhuma gota voltará ao São Francisco. O problema é que sua adução até os demais estados demanda muita energia e manutenção dos canais e maquinários. Então, o governo, que sempre garantiu que essa água seria barata, agora quer impor redução no preço da água transposta. Resultado, os beradeiros do São Francisco poderão pagar mais caro pela água do rio que os receptores nos estados do setentrional.
Discute-se também se para pôr um barco na água, para pescar, etc., esses pequenos usuários deveriam pagar. Pelo menos no comitê do São Francisco, ainda não. Porém, os pequenos agricultores mineiros estão apavorados porque agora tem que registrar suas minações, olhos d’água e outras formas de captação, mesmo que o uso seja insignificante e não tenham que pagar pelo seu uso.
Enfim, agora água é mercadoria, tem valor econômico e será vendida como qualquer produto. Há quem defenda a cobrança pela água como uma medida pedagógica e disciplinar. Nós achamos que o mecanismo da cobrança não estabelece o uso equitativo da água – quem tiver outorga e dinheiro para comprar leva -, e que outros mecanismos seriam mais eficientes para disciplinar e fazer justiça no uso da água. Mas, prevaleceram os interesses e a lógica do capital, embutidos em nossa lei de recursos hídricos.
No futuro, quando toda água estiver mercantilizada, novas formas de fazer da água um negócio deverão aparecer. Previmos esses desdobramentos desde a Campanha da Fraternidade da Água, em 2004. Agora estamos colhendo os frutos da implementação dessa lei e da política que ela nos trouxe.