Tëpi Pajé é o nome de um forte xamã do povo Matis. Na língua matis, Tëpi era chamado de xó’xókit, palavra que nomeia aquele que cozinha o xó, aquele que carrega, porta, possui ou trabalha com muito xó. O Xó é a substância xamânica e de poder para os matis. Tëpi era o único em seu povo a ser chamado xó’xókit, um curador poderoso a quem muitos índios de outras etnias também recorriam para se tratar. Nesta terça-feira, 7 de março, o xó’xókit matis morreu e passou a ser tsussin (uma força desencorporada).
(Por Barbara Arisi*, em Amazônia Real | Imagem destaque: Barbara Arisi)
Tëpi estava pescando com sua família quando a cobra o picou, próximo a sua aldeia Bokwat Paraíso, no rio Branco, coração da Terra Indígena Vale do Javari, segunda maior do país, com 8,5 milhões de hectares, no estado do Amazonas.
Tëpi Pajé chegou ainda com vida na aldeia Bokwat Paraíso, mas não havia soro anti-ofídico e não tinha enfermeiro. Não havia helicóptero ou barco para que pudesse ser removido e aumentar a chance de ser salvo. O atendimento de saúde no Vale do Javari é muito precário, faltam medicamentos, os agentes de saúde e enfermeiros trabalham em condições péssimas.
O Vale do Javari é um local único, graças a sua diversidade e riqueza socioambiental, onde vive o maior número de povos indígenas em isolamento voluntário do mundo, como os conhecidos pelo nome de Flecheiros, além de abrigar os povos Kanamari, Tsohom-Djapá, Kulina, Marubo, Mayoruna/Matsés, Korubo e Matis. A terra indígena foi demarcada em 2000 e homologada em 2001.
Em 2016, uma das jovens lideranças Matis se tornou o primeiro vereador eleito dessa etnia indígena no Brasil. A Funai considera o povo Matis como de recente contato com a sociedade nacional. Já trabalhando na Câmara Municipal de Atalaia do Norte, o vereador Marcelo Markë (PSDB) informou que os contratos do Ministério da Saúde para os serviços de transporte por helicópteros não foram assinados. Também não havia barco para fazer a remoção de Tëpi para o hospital em Atalaia, cidade que fica na beira do rio Javari, na divisa com o Peru e distante a mais de 1.300 quilômetros a oeste de Manaus.
“Tëpi sempre respeitou os jovens, sempre lutou pela gente, era nosso vice-cacique na aldeia Paraíso, estou triste demais”, escreveu Markë, que é sobrinho do pajé.
Quando soube da morte de Tëpi, lembrei da noite em que tive medo de morrer, picada de cobra, por uma surucucu ou jararaca. Estava na aldeia Tawaya, no mesmo rio Branco, em 2014, ajudando a equipe da cineasta Celine Cousteau a fazer um documentário sobre a falta de atendimento de saúde e o desrespeito do governo brasileiro para com os povos indigenas. Sofri no próprio corpo a falta do atendimento e o abandono.
Binan Chapu Chunu, conhecedor de plantas e ervas, e o enfermeiro Felipe Machado me cuidaram e me salvaram. Havia soro, mas apenas duas ampolas, então, com a noite já escura, os Matis foram de barco com motor 8HP buscar mais medicamento na aldeia onde morava Tëpi. O enfermeiro aplicou-me mais uma dose, além de hidrocortisona e outras drogas. Binan Chapu Chunu perguntava de tanto em tanto se estava tonta, se minha cabeça rodava, acalmou-me dizendo que eu ficaria bem e que ele conversava com a cobra. Acho que estava negociando por mim.
Mais de 25 horas depois de ser picada e após ter, pelo rádio UHF, o pedido de helicóptero negado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (ligada ao Ministério da Saúde), cheguei de barco motor 200 HP na cidade de Atalaia do Norte. Não havia médico na cidade. Viajamos mais uma hora para percorrer 25 quilômetros até Benjamin Contant, onde um médico aplicou-me outras cinco doses de soro anti-ofídico. Fiquei hospitalizada mais de 20 dias, corri o risco de ter trombose e a perna amputada.
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Todas essas lembranças e medo vieram hoje me visitar quando soube da morte de Tëpi Pajé. Cantei para ele, como se deve chorar, sem derramar lágrimas e sabendo que ele não voltará. Tëpi minbi kuanaremá. É dolorido cantar a morte de um pajé.
Como aprendi com Tëpi Pajé, as cobras só picam quem elas escolhem. Era a segunda vez que a cobra escolhia Tëpi, um verdadeiro xó’xókit! A primeira picada o colocou em contato mais próximo com os dunu tsussin – as forças desencorporadas da cobra – que vivem na floresta. Quando morei na aldeia Beija-Flor, no rio Ituí, em 2009, Tëpi ofereceu-me metade de sua casa, onde vivia com sua jovem mulher. Durante meses, fui sua hóspede, pois o pajé é quem lida com estrangeiros. Pagava pela gentileza trazendo água para sua mulher cozinhar, a ajudava a lavar roupa e a descascar mandioca.
Tëpi me pedia para eu cantar para eles e em retribuição me ensinava cantos de onça e outros cantos matis, cantos de milho, cantos de queixada, cantos de pássaros. Desenhava para explicar como via o mundo das forças desencoporadas. Muito do que escrevi em minha tese de doutorado, aprendi com Tëpi. Havíamos nos conhecido em 2003, ele trabalhava na Base da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Vale do Javari, na confluência dos rios Ituí e Itacoaí.
Tëpi era criança quando os Matis fizeram contato com os não indígenas nos anos 1976 e 1978. Naquela época, a Funai ajudava a Petrobras a fazer perfurações em busca de petróleo na região. Era ditadura militar, haviam planos mirabolantes de construir em plena floresta a Perimetral Norte, uma estrada que cortaria o território repleto de rios e igarapés a partir do Acre. Tëpi sobreviveu à mortandade genocida empreendida pelo governo brasileiro que matou mais de dois terços de seu povo.
Aldeia Matis Tawaya no Vale do Javari (Foto: Michael Clark/Reprodução Amazônia Real)
Viveu também a experiência de ser um dos quatro homens matis que intermediaram o contato da Funai com o grupo Korubo, conhecido como o grupo da Mayá, em 1996. Tëpi me ensinou muito sobre xamanismo, sobre animais, sobre mitos e sobre as aldeias dos tsussin, mas nunca quis conversar sobre o contato com os Korubo. Ele também foi quem iniciou as mulheres a tomarem o cipó tatxik, antes reservado apenas aos homens.
Certa vez, em sua casa, Tëpi contou-me sobre sua quase-morte e como ele virou pajé. Caçava, quando sentiu a dor da picada e viveu sua experiência de quase-morte. Desmaiou, o homem que tentava carregá-lo nas costas optou por deixá-lo na mata e correr para pedir ajuda na aldeia. Quando voltava com outras pessoas para buscá-lo, topou com Tëpi caminhando já bem próximo da maloca. Caiu ao chão e os companheiros o carregaram. Depois, Tëpi contou que os espíritos da floresta haviam carregado seu corpo até ali.
O xó é a substância de poder que entra no corpo das pessoas pela tatuagem, a marca distintiva do povo matis, com as linhas paralelas que sobem da boca pela face, e as duas linhas paralelas em cada uma das têmporas e as duas linhas longas da testa. O xó é aplicado por quem, mais velha ou mais velho, tatua o rosto da jovem ou do jovem. Assim é passada entre as gerações a marca dos antepassados, o xó fica inscrito com a tinta no rosto dos mais jovens, homens e mulheres, todos recebem uma injeção de xó. Tëpi tatuou os mais moços e deixou sua marca. O xó também entra através das picadas de animais que o carregam, como as cobras, os escorpiões, as abelhas, as aranhas, entre outros. Pajé recebeu novamente o xó da cobra. E, dessa vez, partiu.
Nós que ficamos, lembraremos para sempre desse homem que tinha um brilho especial nos olhos pretos, da cor do xó. Sua imagem e seu olhar ilustraram uma capa da revista National Geographic, na época era conhecido como Tëpi Caçador. Os Matis sempre o reconheceram como sendo um de seus melhores caçadores.
A sua morte é uma perda imensa para o povo Matis e para todos nós que tivemos o prazer de aprender e conviver com esse homem que trazia sempre comida, cuidados e ensinamentos da floresta para casa. A força do nosso pajé agora é tsussin. Choraremos e lembraremos dele por muitos anos, nós que seguimos, tentando ser firmes nos remos, caçando e cantando.
*Barbara Arisi é antropóloga e jornalista, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), atualmente pesquisadora visitante na Vrije Universiteit Amsterdam, na Holanda.