"O discurso do ambientalmente correto esconde práticas socialmente injustas: invasão de propriedades, apropriação de territórios tradicionais, desmatamentos desenfreados, perfuração de poços (estagnação do lençol freático), comprometimento de corpos hídricos, contratos duvidosos, entre outros tem sido pratica comum das empresas nas comunidades.", escreve Gilmar Ferreira dos Santos, da Comissão Pastoral da Terra, da Equipe Sul/sudoeste da Bahia. Confira o artigo:
Neste ensaio, será feito uma abordagem acerca do atual contexto da energia eólica seus impactos econômicos, sociais e ambientais sobre comunidades tradicionais e quilombolas no município de Caetité - Bahia, bem como suas formas de organização e resistência a ofensiva dos empreendimentos em seus territórios.
No atual contexto da crescente pressão para o desenvolvimento econômico com base na exploração desenfreada dos recursos naturais, motivados pela forte demanda por consumo de matérias primas, sobretudo pelo mercado internacional, além do forte discurso que gira em torno da procura de soluções para a crise global (econômica e ecológica), tem afinado um discurso entre setores do grande capital e governos principalmente no investimento de novas fontes de energia, entre elas a matriz eólica, tida atualmente como a alternativa mais viável ecologicamente para a produção de energia elétrica. Não diferente de outros setores de incidência do capital, a implantação de parques eólicos trazem consigo uma carga de contradições cujos impactos influenciam diretamente a vida de populações de comunidades tradicionais.
A energia eólica é aquela obtida da energia cinética (do movimento) gerada pela migração das massas de ar provocada pelas diferenças de temperatura existentes na superfície do planeta. A geração eólica ocorre pelo contato do vento com as pás do cata-vento, elementos integrantes da usina. Ao girar, essas pás dão origem à energia mecânica que aciona o rotor do aerogerador, que produz a eletricidade. (Atlas de energia elétrica do Brasil, parte 2- p. 81).
No Brasil, os investimentos nessa matriz energética foram impulsionados com a implementação do PROINFA- Programa de Incentivo as Fontes de Energia Elétrica por volta do ano de 2004 e da criação de linhas de créditos especificas assim como incentivos fiscais promovidos pelos estados. Nesse sentido a disponibilidade de grandes volumes de recursos públicos oriundos do BNDES destinados às empresas ajudou a impulsionar o setor.
Segundo estudos apresentados no Atlas do Potencial Eólico de 2001, o Brasil possui um potencial energético estimado em aproximadamente 143,5 mil MW, tendo na região Nordeste aproximadamente 52% do potencial da capacidade nacional. Dessa forma, tem atraído à atenção de grandes empresas do setor além de vários agentes especuladores imobiliários pressionando comunidades e lhe tirando a autonomia sobre seus territórios.
A Bahia apresenta um significativo potencial de energia eólica, estimado em 14,5 GW para uma altura de 70 m — o que representa 10,1% do potencial nacional e 19,3% do potencial da região Nordeste. Diferentemente dos outros estados da região, que têm maior incidência de ventos no litoral, a Bahia tem seu potencial eólico concentrado no interior, ao longo de toda a margem direita do Rio São Francisco. O estado é atualmente o segundo maior em potência contratado nos leilões de energia eólica no país alcançando um total de 81 parques eólicos já licenciados e uma previsão de mais de R$ 6 bilhões de reais em investimentos (Atlas do Potencial eólico do estado da Bahia, 2001).
O Governo do Estado tem atraído e facilitado a implantação desses empreendimentos através da criação e montagem de toda a infraestrutura necessária a operação das empresas, facilitando os processos de licenciamentos e de regularização fundiária em nome de empresas ou de terceiros, para atender as demandas propostas pelas empresas, numa ação clara de favorecimento e legitimação de sua ação. Esses empreendimentos tem avançado sobretudo na região semiárida, em áreas historicamente desprovidas de políticas públicas, castigadas pelo baixo regime pluvial, que amarga índices históricos de pobreza, mas com uma população que depende exclusivamente do seu território como garantia da sua existência e reprodução dos seus modos de vida e, que agora sofrem com a forte presença das empresas especulando e ocupando espaços historicamente usados pelas comunidades tradicionais ameaçando os modos de vida e tirando sua autonomia, configurando uma forma de aprisionamento com uma nova versão da histórica indústria da seca disfarçado no chamado mercado da energia verde.
Nos últimos três anos os municípios de Caetité, Guanambi, Pindaí, Licínio de Almeida, Igaporã e Tanque Novo, situados na região sudoeste do estado da Bahia, sofreram uma mudança radical com alterações bruscas em suas paisagens e no modo de vida das populações do campo e cidade, a exemplo da ameaça e perda de territórios pelas comunidades tradicionais, migração forçada, grilagens, crescente urbanização, violência, entre outras. Essas mudanças representam o início de um novo ciclo de exploração econômica nunca antes imaginado pela maioria dos moradores, com a implantação de centenas de aerogeradores ocupando territórios historicamente usados pelas comunidades tradicionais.
Atualmente, cinco grandes empresas vêm atuando na região de Caetité: Renova Energia, Iberdrola/neoenergia, Polimix, Atlantic e EPP. São empresas que integram grandes grupos transnacionais e econômicos do setor, principalmente de origem espanhola. Essas em diferentes fases de atuação, sendo que os grupos Iberdrola/Neoenergia e a Renova energia já iniciaram a implantação das torres e correm para o licenciamento dos próximos parques, enquanto as demais na fase de estudos e na corrida pela celebração dos contratos junto aos proprietários de terra.
Apesar da capacidade de geração os parques implantados não iniciaram a fase operação pela falta da infraestrutura necessária para conduzir a energia ao sistema de distribuição nacional, o que acarretou ao governo o pagamento de multas por descumprimento dos prazos como noticiado pelo jornal Folha de São Paulo, mostrando que a ausência de um sistema de transmissão, de responsabilidade do governo, impede o escoamento da energia gerada. Além do desperdício de energia, a paralisia custa caro. A cada mês, desde julho de 2012, o governo é obrigado a repassar R$ 33,6 milhões para compensar o prejuízo das empresas que colocaram R$ 1,2 bilhão naquele que seria o maior complexo eólico da América Latina, na região de Caetité (BA). Por conta disso, a conta fica para o consumidor brasileiro que terá de pagar por uma energia que não está sendo produzida. (Folha de São Paulo).
O discurso do ambientalmente correto esconde práticas socialmente injustas: invasão de propriedades, apropriação de territórios tradicionais, desmatamentos desenfreados, perfuração de poços (estagnação do lençol freático), comprometimento de corpos hídricos, contratos duvidosos, entre outros tem sido pratica comum das empresas nas comunidades.
Os contratos celebrados põem em dúvida os princípios de lisura e transparência numa ação clara e tendenciosa de favorecimento as empresas. Os trabalhadores alegam que se sentiram pressionados a assinar os contratos, sendo proibidos de analisarem o conteúdo de maneira independente, sempre induzidos por algum funcionário da empresa proponente. Tal afirmação se expressa na Cláusula Oitava do contrato da Renova Energia: “Este contrato tem caráter de confidencialidade e deverá ser mantido em sigilo entre as partes, não devendo ser divulgado a terceiros fora do âmbito estabelecido nesse contrato” o que inibiu muitos trabalhadores a não procurarem orientações acerca do que estava proposto.
Em sua grande maioria, os trabalhadores desconhecem o conteúdo do contrato, sendo que algumas cláusulas põem em risco a autonomia dos moradores em suas terras e no direito de uso dos territórios tradicionalmente ocupados, como escrito em uma das considerações, (iii) ... o imóvel não estará localizado em áreas onde existam quaisquer comunidades indígenas, comunidades constituídas por remanescentes de quilombos ou outras comunidades tradicionais com direitos de reivindicação de propriedades (RENOVA ENERGIA). Contudo, os aerogeradores foram implantados em áreas de uso comum, com fortes características de terras devolutas, há muitos anos ocupadas pelas comunidades tradicionais que por direito deveria deter a posse desses territórios, os moradores perderam o acesso a áreas de solta do gado tendo prejuízos de ordem social e econômica.
As empresas se apropriam de áreas de gerais do município de Caetité. Consideradas áreas de extrema importância ecológica, rica em biodiversidade e onde existem as principais reservas de água para o município, integram parcelas do bioma cerrado que hoje se constitui um dos mais ameaçados no Brasil. Os desmatamentos foram intensos que os sinais foram perceptíveis de maneira imediata, principalmente com a diminuição drástica das reservas de água, além da invasão de propriedades particulares como denunciado através de nota no site da Rádio Educadora Santana de Caetité.
Uma dessas empresas, teve a ousadia de invadir um terreno particular e abrir uma verdadeira cratera para armazenar água para o seu consumo particular. Isso tudo às margens da estrada que liga Caetité/Brejinho das Ametistas, mais propriamente na localidade conhecida por todos como “PASSAGEM DA PEDRA”. Lá existe a primeira Barragem que armazena água para o nosso consumo. O excedente escorre, juntando-se com várias outras pequenas nascentes, formando um pequeno riacho que passa pela fazenda Santarém chegando até a estação de captação da EMBASA.
Em todo o município, há fortes indícios de grilagem de terra. A chegada das empresas despertou a especulação imobiliária em todas as comunidades gerando conflitos e insegurança, cercas derrubadas, casas demolidas, expulsão de famílias de suas terras, como mostra o filme (“As contradições da energia limpa”).
Em outro caso, a empresa comprou terras de um suposto proprietário, sendo que a área faz parte do território da comunidade quilombola de Malhada de Maniaçú, onde cerca de 40 famílias ocupam a área há mais de 200 anos, portanto, há fortes indícios de grilagem de terra, já que o suposto dono era inexistente até então. Em uma reunião entre os quilombolas, empresa e a Comissão de Meio Ambiente de Caetité, realizada no dia 7 de março de 2012 o suposto proprietário confirmou ser dono da área: “Comprei do senhor Benvindo há uns dez anos uma área no tamanho de 700 hectares, quando medida deu somente 357 hectares, eu nem fiz questão”, disse Elder Guimarães, suposto dono da área. A fala de Elder foi contestada pelos moradores da comunidade na fala de D.Odetina “Minha criação, o poço pra meus animais beber água, está tudo dentro onde hoje esse senhor que está aqui diz que é dono” e do senhor Silvano que afirmou: “nasci e me criei aqui, meu pai morreu com 85 anos, eu trouxe de dentro desta área muitas bruacas de mandioca”.
O valor a ser pago aos proprietários, estabelecido pelos contratos é de R$5.000,00/torre/ano. Considerando o potencial de cada torre (1,6 MW/HORA) em um único dia de funcionamento uma torre gera R$ 4.070,40 (valor bruto). Em resumo, um único dia de funcionamento uma torre praticamente pagaria o valor de um ano de contrato do proprietário da terra. Isso prova que o lucro e a riqueza propagandeada são apenas exclusividade da empresa, que acumula toda a riqueza e gera com sua presença o aumento das desigualdades econômicas e sociais.
Quanto a vigência, a cláusula quarta do contrato da Renova diz que o mesmo terá um valor de 35 anos, sendo renovado automaticamente ao final, não havendo mais interesse por parte da empresa a mesma pode rescindi o contrato sem ônus. O contrário para o proprietário, caso queira rescindir estará sujeito a multa de 5.000.000,00 (5 milhões de reais) e ainda pagar pelo valor de cada torre implantada, como descreve a cláusula sétima do referido contrato.
No dia-dia das comunidades os problemas começam a ganhar evidência, a exemplo da grande quantidade de água utilizada pelas empresas para suprir a grande demanda durante a fase de construção, que acabou com reservatórios de muitas comunidades por conta da grande quantidade de poços perfurados, utilização de mananciais ou contaminação de reservas, aterramento de nascentes, provocando um quadro de escassez, comprometimento na produção agrícola local e do abastecimento das comunidades.
Além dos impactos já sentidos durante a fase de implantação, muitos ainda poderão acontecer na fase de operação. Entre os principais impactos socioambientais negativos das usinas eólicas destacam-se os sonoros, devido ao ruído dos rotores e os visuais, modificação da paisagem. Outro impacto negativo das centrais eólicas é a possibilidade de interferências eletromagnéticas, que podem causar perturbações nos sistemas de comunicação e transmissão de dados e também a possível interferência nas rotas de aves migratórias (Atlas do Potencial eólico, 2011).
Frente aos impactos supracitados as comunidades vêm iniciando um processo de organização com o apoio de instituições e Pastorais sociais, na perspectiva de reafirmação da sua identidade, fortalecer seus processos de organização interna, se articular com outras forças no sentido de buscar a garantia dos seus direitos, da autonomia sobre seus territórios, da regularização e titulação do seu território e acima de tudo de assegurar seu direito de dizer não a implantação dos empreendimentos.