Entrevista especial com Teobaldo Witter - Faltou compromisso do governo para enfrentar as queimadas no Pantanal, diz o pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil em Mato Grosso.
TEXTO: Patricia Fachin - Instituto Humanitas Unisinos – IHU
FOTO: Mayke Toscano - Secom/MT
A tragédia ambiental e social que atinge o Pantanal nos últimos meses, em decorrência do aumento das queimadas, não é um problema estritamente local do bioma brasileiro, considerado uma das maiores áreas úmidas contínuas do planeta. As causas que levam à destruição do ecossistema são mais profundas e podem ser vistas em nível regional, nacional e global, manifestadas através da "ganância humana".
Teobaldo Witter, pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB em Mato Grosso, e integrante dos movimentos religiosos e sociais comprometidos com o cuidado da nossa casa comum, é enfático ao observar esse aspecto. "A vida da humanidade está ameaçada. Um grande mal ocupa todos os espaços, e há poderes querendo assumir o papel de Deus. Quem, porém, cede a essa tentação e é detentor de poder, procura despir-se de sua condição de criatura para submeter homens e mulheres, jovens e crianças, a natureza e o mundo a seus próprios interesses. O fruto dessa autossuficiência incorpora-se num verdadeiro ídolo – designado na Escritura como poder do dinheiro ('Mamon'). Esse mesmo ídolo, adorado e venerado, é o fundamento do sistema sócio-econômico-político hegemônico no mundo de hoje", assegura.
Há mais de 40 anos, ele transita entre a Floresta Amazônica, o Cerrado e o Pantanal e relata que as queimadas deste ano são incomparáveis a outros períodos. "Durante duas madrugadas, pássaros do Pantanal vieram se abrigar no cajueiro do pátio e nas árvores das praças. Macacos vieram se alimentar das frutas das mangueiras. Isso nunca havia acontecido. Cinzas, poeira tóxica, calor alto, umidade baixa, o fundo da piscina preto de carvão que vem com o vento", sem falar nas comunidades quilombolas, pantaneiros ribeirinhos, indígenas, como Guató, Xaraiés, Bororo e outros, que são diretamente afetadas.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Witter também critica a lentidão do governo federal em tomar uma atitude para conter as queimadas e fala sobre as expectativas acerca do trabalho da Comissão Externa Queimadas em Biomas Brasileiros da Câmara Federal, na criação de "leis justas para a promoção dos direitos humanos e da terra".
Teobaldo Witter é doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso, com a tese "A prática solidária luterana, no Sínodo Mato Grosso-IECLB, MT: dimensões pedagógica e teológica", mestre em Teologia com ênfase em práticas sociais e gestão de redes, pela Escola Superior de Teologia - EST, São Leopoldo, e graduado em Pedagogia pelas Faculdades Integradas de Várzea Grande, MT.
IHU On-Line - Os ambientalistas dizem que o Pantanal vive a maior tragédia ambiental das últimas décadas. Como está a situação na região atualmente e quais foram as áreas mais afetadas pelas queimadas no Pantanal?
Teobaldo Witter - Antes de falar ou escrever qualquer palavra, eu expresso minha solidariedade com todas as pessoas que, sensibilizadas, arriscam suas próprias vidas para salvar animais, floresta e a terra. Um gigantesco mutirão de voluntários está nesta luta justa. Chegaram antes de qualquer governo. Em memória do artista plástico Sebastião Mendes, de 54 anos, que morreu, na tarde de 8 de outubro, ao sofrer um infarto enquanto ajudava a apagar o fogo na Serra do Taquaral, em Cáceres, MT. (E Jesus chorou, João 11.35).
Vivo no Mato Grosso e Pará há 44 anos. São duas gerações. Andei por muitas regiões da Floresta Amazônica, do Cerrado e do Pantanal. Era terra de florestas, águas e vegetações rasteiras. Nas áreas da maioria das atuais cidades de hoje se ouvia o cantar das aves, dos pássaros, o rastro dos animais terrestres e o pular dos peixes livres nos rios límpidos. Secas sempre teve. Geralmente, de maio a outubro é essa seca. Mas fumaça havia somente em locais onde foram instaladas as grandes serrarias. Em 1979 foi uma das secas mais longas. Mais de seis meses. Mas havia fumaça aqui e acolá. Havia poeira e ar seco, isso sim. Penso que aí pela virada do milênio, ou um pouco antes, as chamas surgiram mais violentas. E não respeitavam mais o que vinha pela frente: capim, mato seco, animais etc.
O Pantanal é a grande área alagada no Brasil, na Bolívia, no Paraguai. O Pantanal foi o caminho pelas águas para ir à Europa e a outros continentes. Isso foi até a década de 1940. Mas durante as últimas décadas houve vários embates para preservar o Pantanal. Projetos econômicos e de navegação ameaçam a vida do bioma.
14 de novembro é o Dia do Rio Paraguai, de articulação internacional para cuidar do rio, coordenado pela entidade Fé e Vida, de Cáceres, MT. É dia de fazer a síntese das atividades diárias do cuidar: recolher lixo, educar a população, preservar a floresta ciliar, celebrar a vida. Em 2008, o Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama aprovou este “Dia do Pantanal”. Esta data é significativa porque lembra a luta contra a instalação das usinas de álcool e açúcar no Pantanal. Cuidar do Pantanal está sendo difícil e até ameaçador. Talvez isso explique o fogo criminoso.
Aqui na região onde vivo, as áreas de vegetação nos municípios do entorno de Cuiabá e a estrada Transpantaneira foram queimadas. Os animais que ainda vivem vêm para a cidade em busca de água e alimentação. Aves voam durante a noite e se abrigam das ruas. Tragédia. Em outras épocas, já teve fogo no Pantanal, mas nada se compara ao que ocorre nestes dias; é terra arrasada. Por onde o fogo passa, tem cinzas, animais das espécies pantaneiras mortos ou feridos, sem comida e sem água. Os que conseguem fugir do fogo, perambulam pelas cinzas.
IHU On-Line - Quais são os principais efeitos das queimadas no Pantanal no estado de Mato Grosso, onde o senhor vive?
Teobaldo Witter - Eu vivo em Cuiabá, MT. Durante duas madrugadas, pássaros do Pantanal vieram se abrigar no cajueiro do pátio e nas árvores das praças. Macacos vieram se alimentar das frutas das mangueiras. Isso nunca havia acontecido. Cinzas, poeira tóxica, calor alto, umidade baixa, o fundo da piscina preto de carvão que vem com o vento.
IHU On-Line - Como as queimadas atingem a população que vive no entorno do bioma? Quem são os mais afetados pelas queimadas?
Teobaldo Witter - Toda a população é afetada. Mas as pessoas mais afetadas são as que vivem em situação de vulnerabilidade: quilombolas, pantaneiros ribeirinhos, indígenas, como Guató, Xaraiés, Bororo e outros. Alguns ficaram sem caça, pesca e lavoura.
IHU On-Line - Além da seca, que contribui para as queimadas no Pantanal, que fatores têm contribuído para o aumento das queimadas?
Teobaldo Witter - A seca é apenas um facilitador. A ganância humana é que mais contribui para as queimadas. O valor de mercado da terra é tentador. Dominadas pela ganância de ter mais, as pessoas cometem loucuras. Inclusive queimar terras de domínio da União para grilar e fazer lavoura ou pastagem e, posteriormente, legalizar em seu nome ou de algum parente.
IHU On-Line - Quais são os crimes ambientais em curso no Pantanal?
Teobaldo Witter - Pois é. Vários procedimentos, mesmo que legalizados, trazem prejuízos à natureza. Por exemplo, o agrotóxico, jogado no ar e nas lavouras de todo entorno do Pantanal, prejudica. Fica na terra por muito tempo. Pela água das chuvas e dos rios é levado para as partes mais baixas, junto com vegetais e animais mortos. Com a construção das cidades, as fontes e afluentes são entupidos de lixo urbano. Com o assoreamento, com o acúmulo de lixo, os rios e lagos diminuem o fluxo da água. Menos água, menos Pantanal.
Historicamente, o Pantanal serviu como uma esponja que segura as águas das chuvas e as libera aos poucos. A falta de saneamento, além de produzir água tóxica, diminui esse processo natural. Há existência de garimpos em algumas áreas, como em Poconé, onde são cavoucadas enormes crateras. É claro que isso fere e mata o ecossistema da vida. Quanto ao fogo, segundo imagens de satélite, a maior parte é ilegal. É criminoso. Os crimes são facilitados pela impunidade. É proibido usar fogo nesta época, mas quem fiscaliza? Quem pune quem? Parece que o crime compensa. O cara queima, expulsa o pobre e aquele em situação de vulnerabilidade, mata os animais e a natureza. Depois o Estado legaliza terra para ele?
IHU On-Line - Como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - Conic e outras instituições ligadas às igrejas estão atuando diante das queimadas no Pantanal?
Teobaldo Witter - O Conic tem boa perspectiva e contribuição para colaborar com o cuidado da vida no Pantanal. Reúne igrejas e entidades ecumênicas e pessoas de boa vontade. Temos a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. A sua metodologia: ver, julgar, agir, celebrar e continuar é adequada para a realidade do Pantanal. Tem o gesto concreto das ofertas. Comunidade e grupos podem recorrer ao fundo para auxiliar nos seus projetos de promoção da vida humana e da natureza. Tem também a Semana de Oração pela Unidade Cristã, quando diferentes comunidades se encontram para celebrar e assumir compromissos individuais, familiares, sociais e comunitários. A boniteza, como escreve Paulo Freire, se expressa na união de esforços para cuidar mais do Pantanal.
IHU On-Line - Como foi o encontro dos movimentos religiosos e sociais da região do Pantanal com deputados para tratar sobre o enfrentamento das queimadas? Qual seu balanço deste encontro?
Teobaldo Witter - O encontro com lideranças de diferentes igrejas, bispo, padre, pastor, pesquisador e entidades que trabalham diretamente na área do Pantanal, do Cerrado e da Amazônia foi muito bom. A Comissão Externa Queimadas em Biomas Brasileiros da Câmara Federal fez e está fazendo pesquisa contextualizada com quem vive nesta região. Com isso, esta comissão percebe o que está acontecendo e cria sensibilidade com a vida ameaçada nos biomas. E recolhe sugestões de leis justas para a promoção dos direitos humanos e da terra.
IHU On-Line - Os movimentos religiosos e sociais reclamaram da lentidão do governo em lidar com os incêndios. O que poderia ter sido feito?
Teobaldo Witter - O fogo é instrumento útil para a humanidade há milênios. Tem seu espaço na vida. Mas ele escapou do controle no Pantanal, na Amazônia, no Cerrado e em outras áreas. Aí, não tem jeito; ele arrasa. No entanto, todo ser humano sabe muito bem disso. A história está cheia deste conhecimento, tem muitas experiências. O que faltou? Faltou respeito do governo brasileiro à natureza e às informações da Ciência, que estava anunciando a tragédia. O Pantanal em chamas, e o ministro continuava negando o perigo. Faltou compromisso. Todo fogo pode ser combatido, desde que se assuma a responsabilidade de fazê-lo. O Estado não se comprometeu, deixou tomar conta. O governo está chegando quando o fogo já queimou e está se apagando; é irresponsabilidade total. O governo tem a força nacional, tem exército e outras forças para agir no combate ao fogo. Por que não agiu?
Tem questões históricas. A ganância humana quer acabar com os biomas. O uso sustentável da natureza deve ser planejado, e podemos tirar dela o sustento humano; isso é direitos humanos. Mas a natureza também tem direito de viver. No entanto o modelo de desenvolvimento é predatório. Até quando a terra vai nos aguentar? É preciso mudar o modelo.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Teobaldo Witter - Sim, desejo lembrar uma bela reflexão que o Concílio da Igreja elaborou no ano 2000, na Chapada dos Guimarães, na região do Pantanal, MT. Não há como negar. O problema é local, mas não é somente local: é regional, nacional e global. A vida da humanidade está ameaçada. Um grande mal ocupa todos os espaços, e há poderes querendo assumir o papel de Deus. Quem, porém, cede a essa tentação e é detentor de poder, procura despir-se de sua condição de criatura para submeter homens e mulheres, jovens e crianças, a natureza e o mundo a seus próprios interesses. O fruto dessa autossuficiência incorpora-se num verdadeiro ídolo – designado na Escritura como poder do dinheiro (“Mamon”). Esse mesmo ídolo, adorado e venerado, é o fundamento do sistema sócio-econômico-político hegemônico no mundo de hoje. Somos testemunhas de que esse sistema requer sacrifícios, faz suas vítimas e promove dor, sofrimento e morte. Jesus diz: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (João 10.10).