Confira entrevista com membros da Brigada Dessalines, da Via Campesina Brasil, no Haiti, sobre a situação do país e dos haitianos dois anos após o terremoto que devastou o país.
(Por Luciana Taddeo - Do Opera Mundi)
“Vocês são brancos mesmo?”, perguntavam-se os haitianos que se juntavam em grupinhos para vê-los trabalhar e sujar as mãos de terra. O ato de pegar na enxada e se inclinar sobre a plantação para trabalhar na roça, carregar fardos de palha ou tirar água de um poço chamava a atenção dos negros, que paravam para contemplar a cena, abismados e imóveis por 20, 30 minutos.
Com o passar de tempo, a convivência se converteu em confiança, superou a tonalidade da pele dos integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) no Haiti, tradicionalmente associada à exploração desumana, durante séculos, da população do país. Como membros da organização internacional Via Campesina, os primeiros sem-terra brasileiros chegaram ao país caribenho em 2009 para fazer um reconhecimento do território haitiano, diagnosticando as condições de solo, produção agrícola e dinâmica da sociedade.
Assim, a “Brigada Dessalines” deu início ao programa de cooperação para o fortalecimento da agricultura local, que sustenta 40% do consumo alimentar do país. Em entrevista ao Opera Mundi, o líder da brigada, José Luis “Patrola”, a agrônoma Dayana Mezzonato, o agricultor brasileiro André Luis Guimarães e o engenheiro agronômico Rafael Aquino contam as experiências vividas no país.
Como foi o período de reconhecimento do território?
Patrola – Primeiro, estudamos o idioma haitiano em Porto Príncipe e depois começamos a percorrer os departamentos do país. Viajamos de moto, ônibus, carro, tap-tap [transporte coletivo] e a pé. Este contato com o interior foi fundamental para entender, por exemplo, que fora de Porto Príncipe quase não há televisões ou geladeiras. Atuamos em um lugar chamado Ti Riviè Latibonit que tem cerca de 150 mil habitantes. André, quantas geladeiras você viu lá?
André – Fora do posto? Nenhuma. (Risos)
Dayana – Nestas cidades, só tem luz elétrica duas vezes por semana, de uma a duas da manhã.
Rafael – Ninguém sabe o dia que vai chegar, nem a hora que acaba. Chega numa quarta-feira pode ter por uma, duas ou três horas.
Patrola – Descobrimos também que o principal meio de comunicação é o rádio e se você não entende creóle, não vai saber o que acontece no dia a dia. Este período de vivência nos permitiu conhecer melhor e interpretar a realidade haitiana, o que é fundamental para estabelecer um programa de apoio e cooperação. Estabelecemos a sede central da brigada em L’Artibonite, a duas horas e meia de Porto Príncipe, e de lá nos deslocamos para as regiões onde atuamos.
Como vocês sentem a evolução depois de 2 anos de programa em termos de relação com os haitianos?
André – Quando o haitiano não te conhece, todo mundo que é estrangeiro, é “blan” (branco, em creóle haitiano). Depois, quando você já fala a língua deles, o que não é comum, a receptividade é outra. Como trabalhamos e convivemos com os camponeses, eles nos tratam com o que eles têm de melhor. Não dá pra explicar a dedicação com que eles te tratam quando sabem que você está contribuindo.
Dayana – Existe uma questão racial muito forte aqui. É uma sociedade onde mais de 90% é negra, então a primeira visão deles é que o branco é colonizador, tem dinheiro. No começo, nos chamavam tanto de “blan”, que chegava a incomodar. Mas como os voluntários passam um bom tempo na comunidade, a abertura é incrível. Eles amam o Brasil, o que é um fator positivo, mas para conquistar a confiança deles, tivemos que conviver, mostrar que existem brancos pobres no mundo, que a solidariedade se dá entre os povos e que estamos aprendendo juntos.
Patrola – Nossa brigada é motivada a falar permanentemente creóle, que pode até te salvar de uma situação complicada, porque permite explicar quem você é. Muitas vezes, somos parados na estrada por policiais e eles se surpreendem porque falamos o idioma. Uma vez nos liberaram sem nem olhar os documentos, só por falar creóle e ser brasileiro. Perguntaram nossa nacionalidade, se moramos aqui e se gostamos, e ganharam o dia.
Qual é o diagnóstico de vocês sobre a situação no campo haitiano?
Patrola – A água é uma necessidade prioritária e um luxo até para os haitianos de classe média da capital, que pagam e são abastecidos por um caminhão a cada semana, porque só tem água pública uma vez por mês. No meio rural o acesso é muito mais difícil. Nas montanhas, é normal ver crianças de 8, 10 anos, caminhando por três ou quatro horas com um balde de 20 litros na cabeça. E é uma água completamente podre, que no meu assentamento no Brasil nem os animais tomam.
Por outro lado, há problemas estruturais sérios que são a fórmula base de problemas menores. Por exemplo, o econômico. Há 75% de desemprego e a agricultura está em decadência. O trabalho rural é pesado e existe um êxodo rural permanente da juventude. Apesar destas dificuldades, o campo produz alimentação para 40% dos haitianos e é um pilar importante da economia.
Dayana – Desde meados da década de 1980, muitos produtos agrícolas estrangeiros entram no país e os nacionais são cada vez menos priorizados. Plantadores de arroz têm dificuldades para competir no mercado, porque a importação dos EUA é subsidiada.
Rafael – Uma característica forte da agricultura haitiana é a plantação diversificada, que mantém a fertilidade do solo, diminui a presença de pragas e de doenças e não demanda o uso de inseticidas. Nas montanhas tem de tudo: arroz, cana-de-açúcar, banana, mandioca, feijão... Mas eles usam poucas técnicas de conservação do solo, e há problemas de erosão e rios assoreados.
Como a brigada atua para melhorar o quadro do setor?
Patrola – Em 2010 instalamos cerca de 1500 cisternas em casas de camponeses. Foram doadas pelo governo da Bahia e transportadas pela secretaria de Ações Internacionais de Combate à Fome do Ministério das Relações Exteriores. Não é um grande número, mas eles moram próximos uns aos outros e cada uma é utilizada por até cinco famílias.
Temos centros de reprodução de sementes de legumes, porque a base da soberania é a capacidade de produção e hoje 100% das sementes de legumes utilizadas aqui são importadas. Também estamos construindo uma escola de formação técnica para jovens haitianos. Existe uma faculdade de agronomia no Haiti e quase metade dos formados abandona o país, que já tem uma grande carência de conhecimento técnico e ferramentas de trabalho, como facão e enxada, que o país não fabrica.
Por outro lado, estamos instalando viveiros de reflorestamento, já que o Haiti tem somente 2% de cobertura florestal e a atividade de extração é contínua, porque o carvão vegetal é uma fonte de renda alternativa para o camponês. Com o solo mais vulnerável, os ciclones e furacões são mais devastadores aqui do que no resto do Caribe.
Dayana – Outra ação concreta foi o envio de 76 jovens haitianos ao Brasil durante um ano, para vivenciar a realidade camponesa brasileira, ver como trabalhamos e passar por um período de formação na Escola Nacional Florestan Fernandes. A maioria voltou animada, com vontade de aplicar experiências aqui.
Como o programa de cooperação é financiado?
Patrola – Somos voluntários de uma brigada sustentada com apoio não-governamental. Entidades brasileiras e estrangeiras contribuem com recursos financeiros, transporte, gasolina e alimentação. Também temos uma relação muito boa com a embaixada brasileira, a Força Aérea transportou sementes várias vezes para cá e nos apoiaram com transporte dos jovens do intercambio e de brigadistas brasileiros que vieram para cá.
Mas queremos atuar em programas de produção de leite, instalação de moinhos e distribuição de cisternas para atender mais 75 mil famílias e precisamos de viabilização do governo federal. Se o Brasil quer cooperar massivamente com agricultores do Haiti, deveria contar conosco. Já solicitamos, agora depende deles.
Quais são as principais dificuldades da brigada?
Patrola – Temos dificuldades para a manutenção por gastos com gasolina, alimentação, saúde. Das 40 pessoas de diversos movimentos da Via Campesina que vieram ao Haiti, 36 tiveram malária, tifóide e infecções estomacais, porque temos muitas privações. Sabe quantos mercados tem na região onde trabalhamos? Nenhum. Dependemos das feiras, que são um fenômeno importante daqui. Lá há troca, compra e venda de produtos, é onde a economia de move.
André – Os agricultores de montanha percorrem 4, 5 horas andando para estar às 8h na feira para negociar os produtos. Carregam tudo na cabeça, e com o dinheiro da venda, compram outros produtos para levar para casa. A população vive em função disso.
Patrola – Se eu fosse fotógrafo eu ia querer fazer imagens dessas feiras.
[Neste momento, o fotógrafo do Opera Mundi comenta que entrou em uma feira de Porto Príncipe vestido com colete a prova de balas e capacete. A sala se inunda de risos.]
Dayana – Então a gente tinha que tirar foto é de vocês.
Como avaliam a presença das tropas da ONU e a situação da segurança no país?
Patrola – Eu faço minhas as palavras do [ex-]embaixador Igor Kipman: o Haiti precisa caminhar com as próprias pernas, ter autonomia. Não tem sentido gastar 800 milhões de dólares por ano com atuação militar. Talvez fosse necessário de 2004 a 2006, quando tinha instabilidade política, mas hoje é jogar dinheiro fora. O imaginário de que o Haiti é um país violento, que está em guerra civil, que não pode andar na rua sozinho, é uma inverdade. Mas pessoas se convencem disso, inclusive nossos colegas brasileiros. É uma construção negativa e inclusive preconceituosa. Em três anos aqui, nunca senti me senti inseguro.
Dayana – Há muitos interesses econômicos por trás da construção da imagem negativa de que os haitianos não gostam de trabalhar, de que são desorganizados, e que é preciso trazer a paz e a civilização para cá. De fato existe desorganização e muita necessidade, mas não podemos deixar de relatar o quanto este país é explorado. Não é que eles estão jogados ao léu, esperando uma ajuda humanitária chegar à ilha. As pessoas trabalham e trabalham muito, mas são super exploradas, e essa é a causa das dificuldades do país.