Reunidos no Canadá em outubro passado, representantes de organizações e movimentos sociais do Brasil e do Canadá se encontraram com organizações da sociedade civil, pesquisadores e ativistas de direitos humanos, buscando estabelecer alianças na América Latina e no Canadá. As principais reivindicações do coletivo foram destacadas no documento abaixo:
Territórios de solidariedade
Carta do Quebeque (Canadá)
Neste dia, 20 de novembro, quando o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra, as instituições que assinam esta carta vêm manifestar sua solidariedade aos movimentos sociais do Brasil, notadamente, aos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas.
Entre 19 e 25 de outubro de 2017, representantes de movimentos sociais do Brasil e do Canadá se encontraram nas cidades canadenses de Montreal e Sherbrooke com organizações da sociedade civil, pesquisadores e ativistas de direitos humanos, buscando estabelecer alianças na América Latina e no Canadá.
Após esses encontros, ficou evidente que é alarmante o quadro de vulnerabilidade e violência vivenciado pelos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas no Brasil, sobretudo um ano após o golpe de estado que destituiu a presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff.
Diante desses testemunhos, elencamos e endossamos aqui algumas das principais reivindicações para garantir os direitos sociais, econômicos, culturais, territoriais e ambientais desses povos e comunidades que compõem a rica sociodiversidade brasileira e que historicamente são os guardiões e guardiãs da biodiversidade do país.
Também manifestamos nosso desejo de seguir fortalecendo os laços, criando um vasto território de solidariedade que contemple os movimentos sociais de Norte a Sul desse enorme e rico continente americano que lutam por justiça social e ambiental.
Ao Governo do Brasil:
- A garantia da segurança dos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas e a responsabilização de agentes públicos e privados pelos crimes praticados contra esses mesmos povos e comunidades. Segundo levantamentos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do Instituto Socioambiental (ISA), o número de assassinatos decorrentes dos conflitos por terra cresceu de forma assustadora depois que Michel Temer assumiu de forma ilegítima a presidência do país. Os dados da CPT apontam que os assassinatos no campo aumentaram de 50 em 2015 para 61 em 2016 (+22%); as tentativas de assassinato passaram de 59 em 2015 a 74 em 2016 (+25%); enquanto as ameaças de morte aumentaram consideravelmente, de 144 em 2015 para 200 em 2016 (+39%). Já em 2017, de janeiro a outubro, houve 64 assassinatos averiguados pela CPT como fruto de conflitos agrários, as vítimas sendo 29 sem-terra, 11 quilombolas, 9 posseiros, 6 indígenas, 5 assentados, 3 aliados dos camponeses e 1 pescador. Em relação à violência contra os povos indígenas especificamente, ainda não há dados totais quanto ao ano corrente, mas, em 2016, o CIMI contabilizou 56 assassinatos, 23 tentativas de homicídio, 11 homicídios “culposos”, 10 ameaças de morte e outras 7 ameaças diversas envolvendo povos indígenas em todo o Brasil. Quanto ao cenário quilombola, 2017 foi o ano mais violento desde 2011, tendo a CONAQ e o ISA registrado 14 assassinatos de membros de comunidades quilombolas, o que corresponde a mais de uma morte por mês.
- A retomada da demarcação de territórios indígenas e da titulação dos territórios quilombolas, assim como a proteção dos territórios já demarcados e titulados. O povo Pankararu, de Pernambuco, vem sofrendo crescentes ameaças de ocupantes não indígenas que se recusam a deixar o território mesmo após decisão judicial em fevereiro deste ano. É urgente o destacamento de agentes da Força Nacional para garantir que a retirada desses ocupantes ocorra sem maiores conflitos.
- O empenho na defesa do Decreto 4.887/2003 perante o julgamento no Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 3.239. No dia 9 de novembro, o Ministro Dias Tóffoli defendeu a tese do marco temporal para a titulação dos territórios quilombolas. Para ele, só deverão ter direito à terra aquelas comunidades que efetivamente as ocupavam em 1988, ignorando que o histórico de violência no campo praticamente inviabilizou que essas comunidades ocupassem e ocupem toda a extensão de seus territórios ancestrais. Hoje, a maioria das comunidades quilombolas ocupa uma porção reduzida de suas áreas, o que impossibilita sua reprodução física, cultural e ambiental. Vale destacar que, mesmo com o referido Decreto, o escasso número de titulações de territórios quilombolas não atende à demanda, mas certamente a derrubada desse instrumento inviabilizará as necessárias novas titulações. Além disso, o processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas é um ato administrativo e, portanto, não deve estar em mãos da Casa Civil, órgão eminentemente político.
- O impedimento da instalação de projetos de mineração, petrolíferos e energéticos (inclusive nuclear) sobre territórios indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais.
- O não sucateamento dos órgãos responsáveis pela execução das políticas públicas voltadas aos povos do campo, das águas e das florestas. É inadmissível que o mesmo governo que imprime cortes orçamentários tão severos à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) anistie dívidas bilionárias e trabalhe em prol do fortalecimento do agronegócio.
- A retomada de políticas de fortalecimento da agricultura familiar, notadamente, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que ao mesmo tempo assegura o escoamento da produção camponesa e de todos os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e proporciona alimentos saudáveis às populações atendidas pelas três esferas de governo. As modalidades de compra com doação simultânea, aquisição de sementes e compra direta tiveram uma drástica redução, passando de mais de R$ 318 milhões para apenas R$ 750 mil, ou seja, 0,24% do orçamento atual. Não é aceitável que um país que conta com uma agricultura familiar tão expressiva em termos numéricos e produtivos ofereça ração aos setores mais empobrecidos da sociedade, como ocorre na cidade de São Paulo. Está claro que a compra dessa ração só beneficiará as empresas em detrimento da dignidade e da segurança alimentar da população.
- A reversão do desmonte da Reforma Agrária promovido pelo golpe, o que se expressa principalmente no orçamento para 2018 e no contingenciamento do ano de 2017. As conquistas de políticas públicas para as populações do campo sofreram severos cortes ou interrupções, sendo que em 2017 a execução orçamentária foi de apenas ¼ dos recursos previstos e menos de 10% do que foi destinado a essas mesmas políticas em 2015. Os recursos para a obtenção de terras para o assentamento de famílias sem terra, por exemplo, sofreram um corte de 86,7%, passando de R$ 257 mil em 2017 para nada mais que R$ 34 mil em 2018.
- O firme compromisso com a pauta do direito a educação do campo, o qual vem sendo sistematicamente violado também pelos cortes no orçamento. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) teve orçamento reduzido de forma abrupta, passando de R$ 30 milhões em 2016 para pouco mais de R$ 11 milhões em 2017 e para ínfimos R$ 3 milhões em 2018.
- O compromisso em consolidar o Tratado da ONU de Responsabilização de Empresas Transnacionais, de modo que as diversas violações de direitos humanos por empresas em todo o mundo sejam devidamente punidas e as vítimas devidamente protegidas e ressarcidas por danos decorrentes dessas atividades.
Aos Ministros e Ministras do Supremo Tribunal Federal (STF):
-A votação favorável à manutenção do Decreto 4.887/2003. A decisão contrária ao Decreto representará um grande retrocesso na efetivação do direito quilombola à terra. A ADIN 3.239 impetrada pelo Partido Democrata (DEM) reflete tão somente os interesses de oligarquias que historicamente detêm o controle da maior parte das terras do Brasil e, portanto, deve ser refutada.
- A declaração de inconstitucionalidade da Lei 13.465/2017, que, em função de seus efeitos deletérios, ficou conhecida como Lei da Grilagem de Terras e Privatização dos Assentamentos. A implementação da referida lei confere ao governo autonomia para alienar propriedades da União e permite a expropriação de terras para a produção de commodities, desrespeitando o princípio da função social da terra. Para os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas, a terra é um bem da natureza e não pode ser transformado em mera mercadoria. Em todo o mundo, são esses povos e comunidades que assumiram a responsabilidade pelo cuidado com o planeta, ao aliar o cultivo da terra e a produção de alimentos à proteção das nascentes, dos solos, da fauna e da flora. A luta pela terra é assim indissociável da produção de alimentos saudáveis, um tema que interessa não só aos povos do campo, mas também à população que vive nas cidades. Nesse sentido, a Lei 13.465 representa uma afronta à luta pelo direito humano à vida em equilíbrio com os bens da natureza.
Ao Congresso Nacional do Brasil:
- A interrupção da tramitação do Projeto de Emenda Constitucional 215 (PEC), que visa retirar do Executivo a atribuição exclusiva de demarcar terras indígenas. O direito indígena ao território está amparado pela Constituição Federal e não pode ficar sujeito a deliberações do Congresso Nacional. Entretanto, vale destacar que a PEC 215 é apenas uma das diversas ações que o Congresso Nacional vem tomando contra os direitos dos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas.
Ao Governo do Canadá:
- A paralisação de projetos de mineração, entre outras atividades, que afetem os territórios dos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas no Brasil, sobretudo quando esses projetos não respeitem o direito à consulta e consentimento livre, prévio e informado, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
- A paralisação de projetos de mineração, entre outras atividades, que afetem os territórios e violem os direitos dos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas em todos os demais países irmãos latino-americanos e também no Canadá, devendo o governo canadense trabalhar em prol da ratificação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
- A investigação minuciosa e punição de casos de grilagem de terras no Brasil envolvendo entidades e cidadãos e cidadãs canadenses.
- O compromisso em consolidar o Tratado da ONU de Responsabilização de Empresas Transnacionais, de modo que as diversas violações de direitos humanos por empresas em todo o mundo sejam devidamente punidas e as vítimas devidamente protegidas e ressarcidas por danos decorrentes dessas atividades.
Aproveitamos a carta para dialogar também com organizações da sociedade civil e comunidade acadêmica colocando as seguintes recomendações no sentido de estreitar as relações entre setores e atores de Norte a Sul das Américas
Às organizações da sociedade civil e agências de cooperação do Canadá:
- O apoio a projetos conduzidos por instituições ou grupos pertencentes aos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas do Brasil
- O estabelecimento de uma interlocução mais direta e sistemática com esses povos e comunidades para a troca de informações e para dar visibilidade em seus veículos de comunicação às demandas e denúncias de violações de direitos humanos no Brasil.
- A criação de uma rede de informação e apoio mútuo entre os povos e comunidades tradicionais da América Latina e do Canadá.
A pesquisadores e pesquisadoras do contexto latino-americano:
- A busca pelo estabelecimento de uma interlocução com instituições e representantes dos movimentos sociais do Brasil de modo que estes também contribuam para o embasamento de pesquisas sobre o país, considerando o dever de compartilhar resultados e, quando for o caso, repartir benefícios com os grupos envolvidos.
- A busca por uma leitura pan-americana dos conflitos socioambientais que afetam povos e comunidades do campo, das águas e das florestas nas Américas. A partir desses estudos, os movimentos sociais desses países poderão identificar as interfaces para a criação de uma rede de informação e apoio mútuo que possa enfrentar de forma mais qualificada o poderio do capital que avança sobre o campo, das águas e das florestas.
Em 2018, o Fórum Social Mundial será realizado no Brasil, na cidade de Salvador, Bahia, e acreditamos que será um momento fértil para fortalecer os laços de solidariedade entre América Latina e Canadá.
Assinam esta carta:
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME)
Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Comité pour les droits humains en Amérique latine (Montreal, Canadá)
Devéloppement et Paix – Caritas Canada
Bishop’s University, Cluster de Pesquisa Crossing Borders (Sherbrooke, Canadá)
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Amigos do MST no Canadá
Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS)
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)
Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)
Instituto Socioambiental (ISA)
KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço
Instituto Luiz Gama
Mariana Crioula - Centro de Assessoria Jurídica Popular
Terra de Direitos
Coletivo Brasil-Montreal
GRAIN
Rede de Observadores da Consulta Prévia na América Latina (Rede Observa)