Conferência Internacional da Reforma Agrária discute as investidas do capital sobre os territórios em várias partes do mundo.
Cristiane Passos*
Ainda no primeiro dia da Conferência Internacional da Reforma Agrária, que segue até o dia 17 de abril, em Marabá, no Pará, os 170 participantes discutiram a realidade agrária no mundo. Themba, representante do Movimento dos Sem Terras da África, destacou que o projeto do capital é controlar tudo, não somente a produção. “Não querem controlar apenas os alimentos, querem controlar sua mente, querem controlar tudo. 1% da população do mundo quer controlar todos os recursos naturais do planeta”.
Com o controle das formas de produção, Themba denuncia o alto valor dos alimentos no sul da África. “Os camponeses não podem produzir conforme o seu modelo, mas de acordo com um modelo imposto, com transgênicos e outros elementos do capital, como o veneno”.
Outro elemento destacado pelo africano foi a repressão do Estado e a impunidade das ações violentas que ele pratica. “Há muita impunidade, os responsáveis nunca são punidos por suas ações. O governo envia a polícia para garantir essa política de repressão, assim é na África, como foi aqui no Pará também”.
Shalmali, representante da Focus on the Global South, organização da Índia parceira da Via Campesina, analisou a conjuntura asiática. Da mesma forma que Themba, Shalmali destacou que a criminalização e a impunidade são elementos que marcam a realidade agrária da Índia. Isso faz parte do projeto de desenvolvimento em toda a Ásia, segundo ela.
Outro problema para os países da região são os acordos de livre comércio. As zonas francas, por exemplo, próximas às fronteiras, são áreas muito grandes, com políticas especiais para atrair os investidores, em detrimento dos direitos dos trabalhadores. Várias famílias são expulsas dessas terras para garantirem esses projetos. Além das zonas francas, Shalmali destacou, também, outros mega projetos que impactam diretamente os povos do campo. “Esses projetos de Mega Investimento são programas financiados por empresas e bancos internacionais, onde posso incluir projetos hidrelétricos, minerários, e outros projetos que tomam enormes quantidades de terra, expulsando os povos de seus territórios”.
A colonização, segundo ela, está assumindo grandes espaços na Ásia. “Quando se compra uma grande quantidade de terras em Bangladesh, não se sabe quem está comprando essas terras, pois são fundos que ficam em paraísos fiscais, não conseguimos ver nomes por trás desse dinheiro”.
E como em outras regiões, a repressão e a impunidade marcam as lutas sociais. “Vemos os defensores de direitos humanos, os trabalhadores, os camponeses em suas lutas, e eles não estão seguros. Pois quem resiste é considerado terrorista. Temos visto muitos desaparecimentos, prisões, assassinatos. E muitas vezes não sabemos quem é polícia estatal ou privada, pois trabalham conjuntamente. E a impunidade reina. Ela está apoiada por várias classes sociais em nossos países, inclusive o setor das ONGs. A boa notícia é que a população não está inerte. Há resistência, há luta em várias partes da Ásia”, concluiu ela.
Da União de Comitês de Trabalhadores Agrícolas da Palestina, Omar (foto ao lado) retomou a luta do povo Palestino frente às constantes tentativas de expulsão de seu território originário. Segundo ele “a Palestina sofreu com sucessivas ocupações, um pouco diferente de outros países. Depois de sair do Império Otomano, entrou num mandato britânico, em que Inglaterra se aliou ao Egito. Anos mais tarde a Grã Bretanha entregou todo o território a Israel, em 1947. O povo palestino ficou restrito a uma pequena área da faixa de Gaza. Israel sabe que os palestinos são pequenos produtores, que vivem de sua terra, então o que fazem é tirar os palestinos de suas terras, oferecendo empregos com bons salários. Assim, quando saem de suas terras, os israelitas as tomam. A tentativa, portanto, dos Comitês é tentar manter os palestinos em suas terras para garantir que Israel não as tome. Além disso, Israel controla quase 90% das fontes de água, dessa forma os palestinos não têm como ter acesso à água sem a autorização de Israel”, destacou Omar.
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O cultivo principal da Palestina são as azeitonas, oliveiras, para a produção de azeite. Elas ocupam quase 70% das terras produtoras da Palestina. “Produzimos pão, azeite de oliva, ovos, e importamos a maior parte dos cereais e de outros alimentos que consumimos. E importamos, principalmente, de Israel. 25% da nossa população trabalha na agricultura. Como não temos indústrias, o setor agrícola torna-se muito importante para a economia da Palestina”, concluiu.
Miklos Attila, da Romênia, destacou que na Europa a realidade é similar. “O problema, como na Romênia e na Ucrânia, é que grandes empresas têm mais de 1 milhão de hectares de terras. Todos os agricultores produzem, mas mesmo assim compramos produtos do Brasil, por exemplo. Isso é consequência do modelo neoliberal. A terra não está sendo usada para produzir alimentos para seu povo”. Ele destacou, também, que essa será a luta dos jovens. “Se perguntamos aos camponeses jovens do que precisam, sempre vão dizer terras. Necessitamos terras, necessitamos de uma reforma agrária”. Frederico, de Andaluzia, na Espanha, também destacou que no leste europeu há muita concentração de terras, como em várias partes do mundo. “Estão diminuindo as terras públicas e as terras comuns, e aumentando as terras em mãos de poucas empresas”, concluiu.
A urgência da reforma agrária
Perla, do Paraguai, da mesma forma discutiu sobre a concentração das terras nas mãos do capital, com destaque para a realidade das Américas. “Nossos territórios estão concentrando projetos do capital, que estão disputando com os trabalhadores e trabalhadoras, do campo e da cidade”. Para ela, “nossas bandeiras de luta pela reforma agrária são ainda mais urgentes e necessárias hoje. Mas não é aquela reforma agrária que discutíamos há 20 anos, mas um projeto de reforma agrária integrada, popular, onde convivamos novamente com a natureza, recuperando nossos saberes ancestrais. Sem terra e sem territórios não poderemos ter nossa soberania alimentar. Somos muitos, somos muitas! Precisamos unir nossa luta”.
Frei Sérgio Görgen, do Movimento dos Pequenos Agricultores do Brasil (MPA), destacou a falácia existente no discurso do agronegócio de que eles produzem os alimentos no mundo. “O grão torna possível que o capital possa dominar a agricultura. Pois é fácil plantar, colher e secar, e transformar esses grãos em commodities. A preocupação não é se tem gente passando fome ou não, e sim se o capital retorna. Essa produção deles, portanto, não é voltada para a alimentação da população”.
Além disso, segundo o frei, esse modelo de agricultura é um mega produtor de carbono. Ele é petrodependente do começo ao fim. Veneno, fertilizante, máquinas, transporte, tudo é petróleo, portanto, insustentável. “O monocultivo em si reduz a biodiversidade, destroi biomas, ecossistemas. Ele trabalha com poucas variedades de alimentos, vegetais e animais, e pouca variedade de sementes”, destacou.
Da mesma forma é o impacto desse modelo de produção sobre as águas. “Sobre a água vou dar o exemplo do cerrado brasileiro, que é uma grande caixa d’água. Praticamente todos os grandes rios do Brasil nascem no bioma cerrado, à medida que a soja toma conta do cerrado, isso prejudica toda a caixa d’água do território brasileiro. Não sabemos a consequência disso a longo prazo”, analisou frei Sérgio.
Para o representante do MPA, os camponeses e movimentos sociais de luta pela terra possui grandes desafios e a tarefa de oferecer à sociedade um modelo sustentável para o futuro. “Nós, camponeses e camponesas, povos originários, representamos a única esperança que a humanidade tem de ter no futuro serviços ecossistêmicos saudáveis e comida na mesa. Temos que ter uma proposta de qualidade de vida, de autonomia genética e energética, de controle saudável do território, entre outros, diferente de um discurso de anos atrás. Só nós temos como alimentar a população mundial, com capacidade e qualidade”.
Silvia Ribeiro, da ETC do México, destacou o momento de opressão e violência que os movimentos sociais estão passando. “Estamos vivendo um momento de violência. A morte de Berta Cacéres, o assassinato de dois sem terras no Paraná, este lugar em que estamos, em Eldorado dos Carajás. Outra violência foram também os golpes de estado, como no Paraguai e Honduras, que foram apoiados pelo agronegócio. O nível de violência segue crescendo, pois estamos em um planeta finito. As empresas também estão em crise e nos querem passar essa crise. A reforma agrária além de justa e necessária, é imprescindível e inteligente. A reforma agrária é necessária pois tem a ver com todos, é uma questão de sobrevivência. Não se refere apenas aos camponeses”, concluiu ela.
*Assessora de Comunicação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – coletivo de comunicação da Conferência Internacional da reforma Agrária
*Crédito imagens: Cristiane Passos