“A Portaria 303 beneficia esse tipo de gente: grileiro, madeireiro, latifundiário. São grupos que invadem nossas terras, ameaçam de morte, assassinam”, diz liderança Guajajara.
(CIMI)
Os maracás voltaram a dançar em protesto contra a Portaria 303, publicada no último dia 16 de julho pela Advocacia Geral da União (AGU). Cerca de 350 quilombolas e indígenas dos povos Guajajara (Tenetehara), Awá-Guajá e Ka’apor trancaram nesta terça-feira (4) as duas faixas da BR 316, entre os municípios de Santa Inês e Bom Jardim, no Maranhão.
A rodovia liga as capitais São Luís do Maranhão e Belém do Pará. De acordo com as lideranças do movimento, a estrada permanecerá interditada até o meio dia de hoje. “Queremos chamar a atenção do governo federal ao fato de que os povos indígenas não aceitam essa portaria (303) e pedem a revogação imediata dela”, frisou Flauberth Rodrigues Souza Guajajara.
Para as comunidades indígenas, a Portaria 303 possibilita a revisão de terras indígenas demarcadas e até homologadas. Além disso, permite que sob o argumento de interesse nacional os territórios sejam invadidos. “Sem contar que vai inviabilizar novos processos de demarcação. Avisamos que se essa portaria não for revogada faremos movimentos mais intensos. Vamos parar o estado”, destacou a liderança.
No Maranhão, a situação das comunidades é tensa. No início deste ano, comissão composta por integrantes da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi) comprovou a invasão de madeireiros no interior da Terra Indígena Araribóia, onde vivem índios Guajajara em situação de isolamento voluntário.
“A Portaria 303 beneficia esse tipo de gente: grileiro, madeireiro, latifundiário. São grupos que invadem nossas terras, ameaçam de morte, assassinam. Essa portaria significa mais violação aos nossos direitos de ocupação da terra tradicional”, salientou Flauberth Guajajara. Até o momento, o trancamento ocorre de forma tranquila; os indígenas distribuem panfletos informando a população os motivos do protesto, realizam danças, cantam e praticam rituais.
O movimento quilombola está representado pela organização de quilombos MOQUIBOM. Vítimas da expansão do agronegócio atrelada ao modelo de desenvolvimento adotado pelo governo federal, os quilombolas do Maranhão passam por problemas semelhantes aos dos indígenas. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) também participa da mobilização.
Desdobramentos
Num bloquinho do Serviço Público Federal, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo escreveu de próprio punho, no último dia 31 de agosto, deliberação pela suspensão da Portaria 303 até o julgamento da ação envolvendo as condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Um dia antes, indígenas da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) estiveram reunidos com o presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, que foi taxativo: não entendia que as condicionantes de Raposa Serra do Sol se estendiam para as demais terras indígenas – tal como entende e usa como principal argumento para a Portaria 303 o ministro da AGU, Luiz Inácio Adams.
"Não queremos saber de suspensão. O que queremos é a revogação. Revoga ou revoga; estamos no processo de regulamentação da Convenção 169, temos a Constituição Federal. Exigimos desse governo respeito”, declarou Francisco Apurinã, da CNPI e integrante da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib).
Durante a última semana, cerca de 50 lideranças de onze povos indígenas permaneceram mobilizadas em Brasília, cercando em duas ocasiões o prédio da AGU e com um ato público na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios. No Mato Grosso, indígenas dos povos Paresi, Bororo, Umutina, Nambikwara, Chiquitano, Manoki, Bakairi e Mỹky, Nambikwara, Rikbaktsa, Cinta-Larga, Arara e Enawenê Nawê bloquearam as rodovias federais 174 e 364, próximas aos municípios de Comodoro e Cuiabá, Mato Grosso, por vários dias.
O que é a Portaria 303
A Portaria 303 pretende estender condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Judicial contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol para as demais terras indígenas. Porém, a decisão dos ministros ainda não transitou em julgado e essas condicionantes podem sofrer modificações ou serem anuladas.
Diante de flagrante inconstitucionalidade, juristas e setores do próprio governo federal se levantaram contra a portaria. Durante o contexto de publicação da portaria, a presidente da Funai revelou estar sendo pressionada.
Isso porque a Portaria 303 determina, entre outras medidas, que as terras indígenas podem ser ocupadas por unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta aos povos. Por um mero instrumento, a AGU desconstrói o direito constitucional indígena de usufruto exclusivo da terra de ocupação tradicional.
Desconsidera, assim, a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário desde 2004. Por fim, a medida publicada pela AGU determina a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas que não estiverem de acordo com o que o STF decidiu para o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Conforme as lideranças indígenas, tal medida busca aprofundar a falsa e injusta compreensão de que os povos indígenas e as terras habitadas por eles são empecilhos ao “desenvolvimento”.