COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Violências e insegurança jurídica marcam a trajetória de luta pela Reforma Agrária de centenas de famílias. Área da União é explorada por grileiros com influência política e econômica para seguirem impunes. 

Por CPT Regional Mato Grosso
Fotos:
Fotos Gleba Mestre I _ Acampamento Renascer

Em Jaciara, Mato Grosso, 198 famílias acampadas na Gleba Mestre I vivem sob a constante ameaça de despejo. A Gleba Mestre I, área pública pertencente à União e destinada à reforma agrária, é alvo de disputas jurídicas devido à influência de grileiros e empresas que se apropriaram ilegalmente da terra. 

Entre os dias 29 e 31 de janeiro, a Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso realizará um julgamento decisivo para o futuro dessas famílias. Enquanto ocorre o julgamento, as 198 famílias se mobilizam em frente ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso na esperança dos desembargadores reconhecerem a legitimidade da União sobre a área.

A Gleba Mestre I faz parte do patrimônio da União desde 1984, conforme processo conduzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). No entanto, ao longo dos anos, a área passou a ser reivindicada por empresas privadas, que alegam posse da terra com base em matrículas de propriedade que, segundo a União, foram abertas de forma fraudulenta no Cartório de Registro de Imóveis de Jaciara.

Entre os principais envolvidos nesse contexto jurídico estão os Irmãos Naoum, a Usina Pantanal, Porto Seguro Negocios Empreendimentos E Participações S/A e o Grupo Bom Jesus, que, segundo documentos da União, os dois primeiros teriam ocupado a área ilegalmente e registrado títulos de posse que não possuem respaldo legal. Essas matrículas, posteriormente, foram incluídas como ativos em um processo de recuperação judicial das usinas Jaciara e Pantanal, onde a empresa Porto Seguro foi a arrematante da Unidade Produtiva Isolada (UPI), criada para supostamente pagar os credores das Usinas Pantanal e Jaciara. 

Além de ilegal a inclusão de terras públicas da União para compor a UPI, a empresa Porto Seguro assim que tomou posse da área, depredou o patrimônio, arrendou ao Grupo Bom Jesus, e nunca pagou por isso, e hoje  é quem busca legalizar a posse das terras através de processos judiciais, mesmo com evidências de fraudes e descumprimento de obrigações contratuais, de acordo com avaliação jurídica feita pela Comissão Pastoral da Terra de Mato Grosso (CPT/MT), e das defesas e documentos apresentados pela Advocacia Geral da União. 

As famílias que vivem acampadas na Gleba Mestre I ocupam a área há mais de 20 anos e dependem da terra para sua subsistência. Eles produzem uma grande variedade de alimentos que são comercializados principalmente em Jaciara, Juscimeira, Rondonópolis, Cuiabá e região. Estas famílias, mesmo sem nenhum incentivo do governo, por não serem assentadas, conseguem produzir e sobreviver com o que plantam, abastecendo a mesa de diversas pessoas da região. 

A União já obteve decisões favoráveis na Justiça Federal, que reconheceram sua propriedade sobre a Gleba Mestre I, avaliada em meio bilhão de reais, além de antecipar os efeitos da sentença para garantir sua posse sobre a área. O Mandado de Imissão na Posse, expedido em favor da União, foi cumprido no começo de 2024. Para a CPT/MT, essa decisão judicial evidencia que a terra está sendo ilegalmente explorada por grupos que não contribuem financeiramente para os cofres públicos nem quitam suas dívidas com credores. Além disso, faz-se uso indevido de um bem público para obtenção de benefícios privados, sustentado por disputas jurídicas complexas no âmbito do Poder Judiciário.

Um novo desdobramento jurídico ameaça os acampados. De acordo com a análise da CPT/MT, o processo judicial em tramitação na Justiça Estadual, na Vara de Falência, incluiu indevidamente terras públicas como parte de um ativo em recuperação judicial. Além dessa irregularidade, o arrematante da área, a empresa Porto Seguro, não cumpriu as obrigações assumidas no contrato de arrendamento e, há mais de 10 anos, faz uso do bem público sem repassar os valores devidos ao Grupo Naoum e à Usina Pantanal. Consequentemente, os credores, em sua maioria trabalhadores, seguem sem receber pelos serviços prestados, apesar de anos de reivindicação por seus direitos.

“Diante de decisões judiciais conflitantes, uma da Justiça Federal, que reconhece a Gleba Mestre I como propriedade da União, e outra da Vara Estadual de Falência, que homologou o Plano de Recuperação Judicial prevendo o arrendamento da Unidade Produtiva Individual (UPI), incluindo terras públicas federais, instaurou-se um impasse jurídico. Ao converter a recuperação judicial em falência, após mais de 10 anos sem que os credores fossem pagos, a Justiça Estadual manteve a essencialidade da UPI, apesar desta nunca ter cumprido sua finalidade de gerar recursos para o pagamento das dívidas”, reforçou análise jurídica feita pela CPT/MT.

Devido ao impasse jurídico, o juiz da Vara de Falência levou o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para definir qual instância deveria decidir sobre a posse da terra. De maneira controversa, o ministro relator do caso determinou que a decisão caberia ao Juízo Falimentar.

Julgamento Decisivo

Entre os dias 29 e 31 de janeiro, a Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso julgará um recurso apresentado pela União na Justiça Estadual. O principal aspecto em análise é a essencialidade dos bens incluídos na Ação de Falência, que atualmente compõem a Unidade Produtiva Isolada (UPI), onde a União pleiteia que a essencialidade seja retirada sobre as áreas que são públicas.

A Porto Seguro argumenta que adquiriu os direitos de arrendamento da terra no processo de recuperação judicial e, por isso, teria legitimidade para reivindicar a posse. No entanto, a União contesta essa alegação, afirmando que a venda de ativos incluiu terras públicas de maneira irregular, já que áreas pertencentes à União não podem ser comercializadas sem a devida autorização legal.

A decisão da Justiça Estadual pode agravar ainda mais a situação das famílias acampadas, que temem ser removidas da terra onde construíram suas vidas. “Estamos aqui há mais de 20 anos, plantando, criando nossos filhos. A terra é pública, e a gente só quer o direito de continuar vivendo e trabalhando aqui”, afirma uma das lideranças das famílias acampadas, que preferiu não ser identificada por questões de segurança.

Interesses Econômicos vs. Reforma Agrária

O caso da Gleba Mestre I não é isolado. Em diversas partes do Brasil, comunidades de trabalhadores rurais enfrentam conflitos com grandes empresas e grupos de influência política que tentam se apropriar de terras públicas para fins privados. Em muitos casos, essas disputas são marcadas por decisões judiciais que favorecem os grandes empresários, deixando os trabalhadores em situação de vulnerabilidade.

Segundo a CPT/MT, a estratégia utilizada pelos grileiros neste caso segue um padrão conhecido: primeiro, registra-se ilegalmente uma área pública como propriedade privada; depois, esses títulos são utilizados em negociações financeiras, incluindo processos de recuperação judicial ou venda de ativos; por fim, com base nesses registros, busca-se a posse da terra por meio da Justiça estadual.

“O que temos aqui é um processo clássico de grilagem de terras públicas, onde documentos irregulares foram utilizados para tentar dar legitimidade a um esquema que, na prática, busca expulsar pequenos produtores de uma área destinada à reforma agrária”, afirma a coordenação regional da CPT/MT que acompanha o caso.

O Destino das 198 famílias

Com o julgamento se aproximando, cresce a mobilização de movimentos sociais e organizações de defesa dos trabalhadores rurais para garantir que as famílias não sejam despejadas injustamente. A expectativa é que a União continue a recorrer de qualquer decisão que tente legitimar a posse privada da Gleba Mestre I.

No entanto, para as 198 famílias acampadas, o tempo corre contra. Muitas já sofreram tentativas de despejo e vivem sob o medo constante da remoção forçada. “Querem tomar a nossa terra sem qualquer justificativa legal. O que está em jogo aqui é a dignidade das famílias que lutam para sobreviver”, denuncia um acampado.

A decisão judicial pode marcar um ponto de virada na história da Gleba Mestre I. Se a Justiça Estadual decidir em favor dos grileiros, validando os indícios de fraudes processuais, as famílias poderão ser despejadas da terra que reivindicam há décadas. Se a decisão for favorável à União, pode ser estabelecido um precedente importante para a proteção de terras públicas destinadas à reforma agrária.

O caso da Gleba Mestre I reflete um embate que vai além do município de Jaciara. Trata-se de um capítulo a mais na luta pelo direito à terra no Brasil, um país onde os interesses do agronegócio e do capital frequentemente se sobrepõem aos direitos das comunidades que historicamente dependem da terra para viver.


Entenda os pontos da luta pela terra deste caso com base nos documentos de acompanhamento jurídico organizados pela CPT/MT.

O que aconteceu?

  1. A Terra é Pública
    • A Gleba Mestre I é oficialmente da União Federal e foi registrada assim desde 1984.
    • Essas terras foram identificadas como públicas por meio de um processo realizado pelo INCRA.
  2. Ocupação Ilegal
    • Empresas privadas e indivíduos (Irmãos Naoum e Usina Pantanal de Açúcar e Álcool LTDA) ocuparam ilegalmente a área.
    • Mesmo sendo notificados para saírem, continuaram explorando as terras.
  3. Ações na Justiça
    • O INCRA processou os ocupantes ilegais, mas perdeu o caso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região porque o tribunal entendeu que o INCRA não tinha legitimidade para reivindicar terras públicas.
    • Então, a própria União Federal entrou com um novo processo em 2012 e, dessa vez, ganhou. O tribunal determinou que a União Federal retomasse a posse das terras.
  4. Fraude nas Matrículas das Terras
    • Os Irmãos Naoum falsificaram registros imobiliários, criando documentos que indicavam falsamente que a Gleba Mestre I era propriedade privada.
    • Com esses documentos falsos, eles incluíram as terras como parte dos bens da empresa Usina Pantanal, que estava em recuperação judicial.
  5. Leilão Fraudulento
    • Em 2014, essas terras foram incluídas num leilão de ativos da empresa Usina Pantanal, como se fossem bens privados.
    • A empresa Porto Seguro Negócios Imobiliários S/A arrematou os supostos "direitos de arrendamento" sobre essas terras por R$ 200 milhões.
  6. Impacto nas Famílias Sem Terra
    • cerca de 198 famílias sem terra que ocupam aproximadamente 400 ha e reivindicam os mais de 5 mil ha para fins de Reforma Agrária há mais de 20 anos, e mais uma vez correm o risco de despejo por conta das decisões tomadas na recuperação judicial da Usina Pantanal.
  7. Decisão Judicial Recente
    • A Justiça Federal determinou que as terras voltassem para a União, mas o juízo da recuperação judicial suspendeu essa decisão, argumentando que os "direitos de arrendamento" são essenciais para a recuperação da Usina.
    • O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconheceu que houve fraude e conflito de competência, mas manteve o caso na Justiça Estadual da recuperação judicial.

O que isso significa na prática?

  • A União quer retomar a posse das terras públicas e cancelar os registros fraudulentos.
  • Empresas privadas usaram documentos falsos para simular a posse da terra e revendê-la.
  • A Justiça Estadual de recuperação judicial permitiu que as terras públicas fossem leiloadas, contrariando a decisão da Justiça Federal.
  • Cerca de 198 famílias de trabalhadores rurais estão ameaçadas de despejo, pois a empresa arrematante quer ficar com a terra.
  • A União está tentando reverter essa situação e garantir que a terra continue sendo pública

Linha do Tempo dos Acontecimentos

1971Decreto 1.164/71 determina que terras devolutas (sem dono registrado) até 100 km das rodovias federais na Amazônia Legal passem para o patrimônio da União Federal.

1984 – O INCRA conclui o processo de reconhecimento da Gleba Mestre I como terra pública da União e registra a área oficialmente no Cartório de Jaciara/MT.

Década de 1990Os Irmãos Naoum adquirem terras da Gleba Mestre I de antigos ocupantes, mesmo sabendo que elas ainda não estavam regularizadas.

2003 – O INCRA descobre que os Irmãos Naoum e a Usina Pantanal ocupavam ilegalmente a área e entra com uma ação judicial para recuperar a terra (processo nº 0017135-22.2003.4.01.3600).

  • A ação foi ganha na 1ª instância, mas foi extinta pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que alegou que o INCRA não era parte legítima para reivindicar terras da União.

2004 – A ocupação irregular continua, e as terras seguem sendo exploradas ilegalmente pelos grileiros.

2012 – A União Federal entra com um novo processo (ação reivindicatória nº 0004393-34.2012.4.01.3602), agora diretamente na Justiça Federal, para recuperar a Gleba Mestre I.

  • A União vence o processo e recebe uma decisão favorável com antecipação de tutela, ou seja, poderia retomar a terra imediatamente.

2014Fraude e Leilão Ilegal

  • A Usina Pantanal, que estava em recuperação judicial, inclui a Gleba Mestre I em um leilão de ativos, mesmo sem ter a posse legal das terras.
  • A empresa Porto Seguro Negócios Imobiliários S/A arremata os supostos “direitos de arrendamento” sobre a Gleba Mestre I por R$ 200 milhões, com pagamentos divididos em 12 prestações anuais.
  • O STJ posteriormente invalidou esse Plano de Recuperação Judicial, mas o juízo da recuperação manteve a arrematação.

2018 – Quando a União tenta recuperar a posse da terra, a empresa Porto Seguro entra com embargos de terceiro (processo nº 1000620-58.2018.4.01.3602), alegando que tinha comprado os direitos no leilão da Usina Pantanal.

2019 – A Justiça Federal confirma que os registros de propriedade usados pela Usina Pantanal eram fraudulentos. A União tenta cancelar os registros e retomar a área.

2021 – A União entra com uma nova ação civil pública (processo nº 1003339-08.2021.4.01.3602) para anular definitivamente os registros de propriedade ilegais e impedir que os ocupantes ilegais continuem explorando a terra.

2023Decisão judicial em conflito

  • A Justiça Federal reafirma que a terra pertence à União e que os registros imobiliários usados para o leilão eram falsos.
  • No entanto, a Justiça Estadual de recuperação judicial suspende a decisão e mantém a posse das terras com a Porto Seguro, alegando que as terras são essenciais para a Usina Pantanal.
  • O STJ reconhece o conflito de competência, mas mantém o caso no juízo da recuperação judicial, complicando a retomada das terras.

Janeiro 2025 – A União segue tentando reverter essas decisões e garantir que as terras públicas não sejam usadas ilegalmente por empresas privadas. Enquanto isso, cerca de 198 famílias sem terra vivem na área e correm risco de despejo.


O que isso mostra?

  • Houve uma fraude na regularização de terras públicas, o que permitiu que fossem usadas ilegalmente no processo de recuperação judicial da Usina Pantanal.
  • A União já venceu processos para recuperar a terra, mas a Justiça Estadual da recuperação judicial suspendeu essas decisões.
  • Cerca de 198 famílias podem ser despejadas por causa desse conflito entre as decisões da Justiça Federal e da Justiça Estadual da recuperação judicial
  • Agora a questão central é se a União conseguirá retomar a terra ou se a decisão da recuperação judicial permanecerá valendo, validando as evidências fraudulentas dos grileiros.

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