Por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Campanha em Defesa do Cerrado une esforços a povos e comunidades tradicionais da Caatinga e movimentos e entidades daquela região em busca da aprovação da PEC 504/2010 no legislativo
Foto: Thomar Bauer /CPT
Na tarde do dia 10 de julho de 2022, há exato um ano, o júri do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado dava a conhecer publicamente, durante atividade presencial em Goiânia (GO), o veredito que condenaria governos e empresas pelos crimes de Eco-Genocídio do Cerrado e seus povos, além das recomendações para frear estes crimes e reparar suas consequências. Foram pelo menos quatro anos, a partir de 2018, de articulações entre entidades e movimentos junto a povos e comunidades tradicionais de oito estados do Cerrado para realizar o Tribunal.
Este período foi marcado por reflexões, acúmulos e sistematização de depoimentos e provas; pela confecção de estudos e realização de oficinas e reuniões, e pelo atravessamento devastador da pandemia de covid-19, somada aos desmontes e violências do passado governo brasileiro de extrema-direita. Lançado de maneira virtual em setembro de 2021, o TPP do Cerrado, ao longo de um ano, contou com um Festival dos Povos do Cerrado e três audiências temáticas, sendo duas virtuais e a última, em julho de 2022, realizada de maneira presencial em Goiânia (GO), juntamente com o julgamento final e apresentação pública do veredito e recomendações do júri do TPP.
Desde então, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado vem difundindo os resultados do TPP do Cerrado e transformando esse acúmulo coletivo em processos de incidência política e jurídica. Agora, um ano após a finalização do TPP, a Campanha prepara, em conjunto com povos, comunidades, entidades e movimentos da Caatinga, a retomada de um processo de incidência para colocar o Cerrado, a Caatinga e seus povos no centro da agenda política do país: a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 504/2010, em trâmite no Poder Legislativo Federal.
PEC 504: CERRADO E CAATINGA COMO PATRIMÔNIO NACIONAL
A PEC 504/2010 trata da inclusão do Cerrado e Caatinga no artigo 225, parágrafo 4º, da Constituição Federal de 1988, que reconhece a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira como patrimônio nacional. A redação desse artigo assegura que a utilização econômica dos recursos naturais das regiões ecológicas reconhecidas como patrimônio nacional se realize na forma da lei, dentro das condições que assegurem a preservação do meio ambiente.
O reconhecimento das regiões acima citadas como patrimônio nacional foi resultado de mobilizações das organizações ambientalistas e movimentos sociais no período da Assembleia Nacional Constituinte (1987-88), e tem contribuído efetivamente para uma maior valorização social e para o surgimento e consolidação de legislações com conteúdo específico relacionadas às regras de preservação dessas regiões ecológicas, como por exemplo, a regulamentação feita pela Lei da Mata Atlântica (Lei Federal nº 11.428/2006) à supressão de vegetação em médio estágio de regeneração, e o estabelecimento da reserva legal em no mínimo 80% da área total dos imóveis rurais incidentes na Floresta Amazônica (Lei Federal nº 12.651/2012).
O Cerrado e a Caatinga, apesar de não contemplados no texto constitucional, são regiões estratégicas para o equilíbrio ecológico e a biodiversidade do planeta. Juntos, incluindo suas áreas de transição, ocupam aproximadamente 45% do território brasileiro. Formam com a Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal e os Pampas, as seis regiões ecológicas que compõem o meio físico do Brasil. A ausência de ambos no parágrafo 4º do art. 225 da Constituição Federal é uma omissão grave, segundo reiterados posicionamentos de movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais, organizações ambientalistas, especialistas e instituições das mais diversas áreas do conhecimento.
RECOMENDAÇÃO DO TPP
O Cerrado ocupa 1/4 do país e já tem 50% dessa área desmatada, 98% corresponde à pecuária. Dados recentes divulgados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram que o Cerrado teve o pior semestre de desmatamento desde o início da série histórica, em 2018. A região ecológica perdeu 4.408 km² de mata nos primeiros seis meses deste ano, uma alta de 21% em comparação com primeiro semestre de 2022. Essa opção de política econômica e ambiental é marca da violência estrutural contra povos e comunidades tradicionais e expõe sumariamente que a deliberação de implantar os projetos ditos de desenvolvimento, significam a invasão, privação, redução e negação do direito aos territórios tradicionalmente ocupados, previsto no artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
A Caatinga, por sua vez, além de perder 10% de sua vegetação nativa entre 1985 e 2020, o que equivale a 15 milhões de hectares, teve mais de 15% da sua área queimada neste mesmo período, totalizando 13.770 hectares, segundo dados do estudo "Mapeamento Anual de Cobertura e Uso da Terra na Caatinga", realizado pelo MapBiomas. O mesmo estudo aponta que houve perda de mais de 160 mil hectares de superfície de água, uma diminuição de 16,75%, colocando em risco o abastecimento humano de mais de 25 milhões de pessoas que habitam nesta região ecológica.
A aprovação da PEC nº 504/2010, portanto - uma das recomendações apresentadas pelo júri do TPP -, visa corrigir erro histórico cometido pelos deputados constituintes ao não incluírem essas duas regiões ecológicas brasileiras no parágrafo 4º do artigo 225 da CF. A redação final da emenda em tramitação, após o apensamento de outras propostas, é a seguinte:
"Parágrafo 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense, a Zona Costeira, o Cerrado e a Caatinga são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á em conformidade com os zoneamentos elaborados pelos estados, e dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais e a melhoria da qualidade de vida do seu povo. (alterações em destaque).
MAIS DE MEIO MILHÃO DE ASSINATURAS
A aprovação do texto destacado acima tem sido exigida por diversos setores da sociedade brasileira desde 2003, quando a PEC começou a tramitar no âmbito legislativo - ainda com outro número e outra redação. Em 2017, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado lançou uma petição online na plataforma Change.org para pressionar o legislativo pela aprovação da PEC. A petição conseguiu, até o momento, mais de 589 mil assinaturas.
Agora, a Campanha retoma as articulações e processos de incidência em conjunto com povos e comunidades tradicionais da Caatinga e com entidades e movimentos que atuam nesta região ecológica. O objetivo desta articulação é criar um corpo coeso e potente que possa levar a discussão da aprovação da PEC 504 ao legislativo e a toda a sociedade brasileira. Já estão em andamento a elaboração de uma nota técnica sobre a PEC 504 e a criação de um plano de campanha para a ampla difusão do tema.
Hoje, sobretudo no contexto de emergência climática que se visualiza no Brasil e no mundo, bem como diante dos compromissos ambientais assumidos pelo país, a aprovação da PEC 504 é ainda mais urgente, e ela está pronta para ser votada, após ter passado por diversos trâmites no legislativo. Em síntese, cabe agora ao presidente da Câmara, em conjunto com o colegiado de líderes dos partidos, acordar a colocação do projeto em pauta para votação. Após aprovação, que necessita de 308 votos favoráveis, a PEC deve ser promulgada pelo Congresso Nacional e passar a ter vigência imediata.