214 famílias travam uma luta na justiça pelo direito a uma indenização justa por suas terras inundadas pelo lago da hidrelétrica de Sinop. A natureza, assim como a saúde e a economia dos atingidos são os mais impactados pelo empreendimento hidrelétrico
Texto: Luna Gámez / Le Monde Diplomatique Brasil
Fotos: Caio Mota / Proteja Amazônia
A hidrelétrica de Sinop, localizada no rio Teles Pires a 70 km ao norte da cidade de Sinop, no Mato Grosso, ativou suas turbinas em 2020. A obra, que estava sendo planejada desde 2014 pela multinacional francesa Electricité de France (EDF), só foi possível depois de desalojar as 214 famílias que moravam na beira do rio no assentamento Gleba Mercedes. O consórcio empresarial de Sinop Energia (Companhia Energética Sinop, CES) – formado pela EDF com 51% do capital, Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte) e a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco S.A. (Chesf), com 24,5% cada uma – prometeu que a vida dos moradores deslocados iria melhorar depois da instalação da usina. No entanto, várias foram as irregularidades sociais e ambientais denunciadas até o momento.
O Ministério Público Federal (MPF), através de perícias públicas, demonstrou que as indenizações pagas pela CES a quem perdeu suas terras não foram justas conforme aos valores de mercado nem suficientes para reconstruir uma vida digna depois de ter perdido quase tudo o que eles tinham construído. Desde 2017 até o dia de hoje, o caso continua sendo estudado pela justiça mas, a cada dia de incerteza que passa, a pobreza entre as famílias ameaça aumentar e os problemas de saúde derivados se agravam, em parte devido à degradação ambiental.
Deslocamentos e perda de terras sem indenizações justas
Daniel Schlindwein faz parte das 214 famílias que têm visto suas terras atingidas pela construção da barragem de Sinop. Com 60 anos, ele conta sobre a tentativa de recomeçar seu projeto de vida depois de ter perdido a terra que trabalhava pela terceira vez. A primeira foi quando ele ainda era adolescente e o governo militar decidiu, em 1975, construir o Parque Nacional Iguaçu onde sua família morava. Depois disso, eles recomeçaram suas vidas numa outra terra perto do rio Paraná, mas chegou o projeto de construção da barragem de Itaipú binacional, a segunda maior hidrelétrica do mundo, e os obrigou a sair de novo deixando para trás todo o trabalho semeado. “Com isso ficamos de novo sem terra e sem sonho de vida”, explica Schlindwein. Anos depois, ele conseguiu uma nova terra graças ao projeto do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que criou o assentamento Gleba Mercedes em 1997 com reconhecimento de título de posse oficial para os moradores. Ali, recomeçou do zero mais uma vez a plantar suas árvores e criar seus animais, até que se viu obrigado a sair pela construção do reservatório de Sinop.
“A terra é nosso seguro de futuro pois o governo paga uma aposentadoria muito pequena, mas se agora a usina chega e me tira a minha terra, tiram o meu sonho de viver”, lamenta Schlindwein, que perdeu sua casa, cultivos e todo o trabalho dos últimos 24 anos. “Você não consegue de um dia para o outro arrumar uma propriedade rural, se constrói e só gera produtividade e qualidade de vida ao longo dos anos”. Com a indenização que a CES lhe pagou pela terra, Schlindwein afirma que só conseguiu construir um galpão onde ele e sua família residem temporariamente na espera de receber um reajuste da compensação econômica para acessar a uma moradia melhor. “A gente foi roubado e intimidado”, declara ele.
Os atingidos afirmam que a CES deu só cinco dias para eles decidirem se aceitavam o valor de indenização proposto e que, do contrário, só poderiam reclamar mediante processo judicial, sem opção de negociação. Em 2017, o Incra emitiu um laudo determinando que o valor médio das terras dos assentados era de uns R$ 12.200 por hectare em lugar dos R$ 3.900 por ha que o CES tinha pago. Em 2018 o Ministério Público Federal entrou com uma Ação Civil Pública na qual um perito público estimou o preço médio da terra em R$ 23.700 por ha. No entanto, a CES não aceitou participar da audiência de conciliação para recalcular as indenizações e contestou o trabalho do MPF. Em maio deste ano, o juiz reconheceu o recurso da usina, anulou a perícia anterior e nomeou um novo perito para repetir o laudo pericial de estimação de valores da terra. No entanto, já se passaram quatro anos da luta para receber uma compensação justa e as famílias afirmam estarem com mais dificuldades para reconstruir suas vidas.
Quem paga o preço da destruição provocada pela usina?
Nas terras mais altas onde foram deslocados os atingidos, não tem nascentes de água naturais nem áreas de florestas, como havia nas áreas onde moravam antes da usina hidrelátrica. O consórcio de Sinop construiu poços artesianos para abastecimento de água que funcionam com bombas elétricas, mas cuja conta de luz depende dos moradores. “Na época, o Incra conseguiu que todos os lotes tivessem água, a usina tirou de nós esse direito”, declara Schlindwein, que afirma que os atingidos ainda não receberam autorização legal para pegar água do lago para o gado e os cultivos, motivo pelo que a produção agropecuária das famílias diminuiu consideravelmente. “A gente sabe que essas águas estão dominadas por essas empresas. Elas vêm construir usinas dentro da Amazônia, mas o preço da energia para a população brasileira está que não dá mais para usar”, adiciona ele.
Paulo Sérgio Fabricio, professor, também perdeu seu lote de terra, as plantações e a casa que ele tinha construído quando foi destinado a trabalhar numa das escolas criadas no assentamento em 2012. “Nós fomos afetados por uma barragem para a produção de energia e nós não nos beneficiamos dessa energia, nós estamos pagando duas vezes mais caro: pela invasão e destruição do que era nosso e da natureza, assim como pela escassez de energia provocada pela situação climática”, afirma Sérgio. Ele explica que o fornecimento de eletricidade oscila na comunidade, com quedas e picos de energia que tem queimado alguns aparelhos domésticos. “Parece que alguém vai e desliga o interruptor da gente, aí ficamos sem luz”.
Sérgio viu como nos últimos anos, desde que a CES anunciou o empreendimento em 2014, o número de alunos na sua escola caiu de 115 para 75, além da diminuição considerável do rendimento escolar devido às alterações vividas pelas famílias. “Nós não temos a quem recorrer, participamos em reuniões mas a voz do assentado parece insignificante, nada acontece quando reclamamos nossos direitos”. Ele considera que a pressão da empresa foi enorme sobre uma população onde a escolaridade é muito baixa. “O empreendimento falou mais alto. Eu sei que o Brasil hoje depende de uma produção de energia mas parece-me que só o empreendimento que tem importância. Nós tínhamos reservas, mata ciliar e tudo isso foi destruído, isso era habitat natural de animais, já não temos mais aqueles animais selvagens, acabaram com eles”, concluiu com tristeza o professor.
Problemas de saúde e desequilíbrio ambiental derivados do empreendimento
O consórcio empresarial de Sinop destruiu 24 mil hectares de floresta só para a construção do reservatório da hidrelétrica, sem considerar a instalação de canteiros de obras e outras infraestruturas da barragem. Márcia Helena Domingues, que morava numa terra situada entre dois rios e com 40% da área ocupada por floresta, estava na casa dela quando a maquinaria chegou para fazer a derrubada. “A poeira começou, eu quase morri de ver a máquina cortando esse monte de árvore. Naquele momento fiquei doente porque sou diabética, minha imunidade baixou, me deu um problema no pulmão e fiquei uma semana internada. Eu só chorava e meu psicológico ficou muito abalado até hoje pela perda daquela mata que eu tinha cuidado tanto”.
Domingues também viu destruída sua casa, sua horta, o mercadinho que ela construiu para ter uma fonte de renda adicional, assim como as infraestruturas para seus animais, a maioria dos quais ela precisou vender para se sustentar. “Eu falei que eu não ia suportar sair de lá, que eu ia sofrer, mas eles (o consórcio empresarial) disseram para nós que eles pagavam só material e não o emocional”, explica Domingues. No entanto, “o pagamento da compensação pela perda da terra foi muito pequeno, foi desumano o que eles fizeram conosco”, explica esta moradora que não consegue chegar perto do lago que engoliu tudo o que ela tinha. Ela afirma que hoje só tem a esperança de que o juiz que está analisando o caso das reclamações pelas indenizações reconheça um valor justo que lhe permita, pelo menos, diminuir a preocupação pela sobrevivência financeira.
O lago que traz amargas lembranças para Domingues também tem sido cenário de mortandade de toneladas de peixes devido, em parte, à ativação das turbinas e à diminuição de oxigênio da água por conta da decomposição da vegetação inundada pelo reservatório sem cumprir a legislação 3.824/60. A diminuição do nível do lago na época da estiagem mostra a cara de uma vegetação morta pela qual tem se propagado fogos em várias ocasiões, rodeada de lama com um forte cheiro que incomoda os moradores, assim como poças de água parada que são potenciais criadouros de mosquitos transmissores de doenças.
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José Aparecido Moreira foi um dos primeiros moradores do assentamento e, antes de perder sua terra pela chegada da hidrelétrica, criava gado e a produção de leite era sua principal fonte de renda. “A gente antes morava num lugar bonito, tinha um rio lindo para passar o dia, mas agora é só lama e não dá para chegar perto porque podemos adoecer. Muita gente pegou leishmaniose e temos medo da malária voltar”, afirma o leiteiro. Ele, assim como Domingues e muitos outros vizinhos, evitam chegar perto do reservatório. “Essa água do lago podre serve para a usina, mas para nós não serve para mais nada”, diz Moreira.
O impacto económico e o medo da pobreza
Moreira perdeu 45 ha e ficou só com 20 ha de terra. As plantações de arroz, feijão, milho e laranja, entre outros, que ele tinha também foram alagadas. Sua renda diminuiu consideravelmente e, além disso, precisa pagar aluguel de áreas de pastagem para o gado porque a terra dele não é suficiente para alimentar a criação. “Estou desanimado, só não saio daqui porque a minha área ficou pequena e não vou ganhar muito se eu vender. Além disso, eu estou há 24 anos no meio do mato, acostumado com natureza, e se eu for para a cidade vou ficar com depressão”, explica.
Moreira nasceu e se criou na roça com a sua família, mas com 19 anos saiu para a cidade. “Decidimos ir para a cidade de Sinop porque éramos muitos irmãos para trabalhar naquela terra e tivemos que sair procurar um trabalho”. Ele trabalhou durante duas décadas em sítios de outros proprietários, principalmente numa madeireira. Conta que trabalhar para os outros era difícil pois o pagamento era muito baixo, no entanto, quando chegou no assentamento a vida dele foi melhorando e começou trabalhar sua própria terra. Mas, com a vinda do empreendimento, Moreira começou a sofrer de depressão.