Mara Carvalho
Boa tarde Carlos Guedes do Amaral Júnior, seja bem-vindo.
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Boa tarde, Mara.
Mara Carvalho
Boa tarde. Para a gente é uma alegria tê-lo aqui para essa conversa, com esse lugar de contribuição engajada nessa pesquisa que percebe os crimes e impunidade no campo, que ela é fruto de uma parceria entre o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais e a Comissão Pastoral da Terra, numa agenda também com outros movimentos da via campesina, que conta com a contribuição de diversas universidades, que tem como foco investigar como que se dá hoje a impunidade no campo mediante as mortes coletivas e com base nos massacres no campo registrados pela Comissão Pastoral da Terra.
O escopo dessa pesquisa, desse projeto de pesquisa, a gente tem como marco temporal 1985 a 2019, e o massacre de Eldorado dos Carajás, ele se situa como esse caso emblemático que aconteceu nesse período e que demarca também um período importante de problematização da luta pela terra, nessa relação também com a própria atuação do sistema de justiça mediante sua atuação perante os casos e julgamentos que envolvem a violência no campo.
Então foi nesse sentido que a gente te convocou para essa conversa, para essa entrevista. Essa entrevista compõe um registro e a contribuição de acesso a dados e informações que complementam o relatório técnico sobre o caso do massacre de Eldorado dos Carajás com base também na parte de autos que nós conseguimos acessar do processo que envolve o massacre de Eldorado. Então, dando as boas-vindas, boa tarde, com essa introdução sobre a pesquisa, eu me chamo Mara Carvalho, integro a coordenação nacional dessa pesquisa, a equipe que perseguiu e estudou o caso Massacre de Eldorado e também trabalho como assessora jurídica da Comissão Pastoral da Terra.
Então seja bem-vindo e também pediria que você pudesse se apresentar e já contar para a gente então seu envolvimento, sua relação política, jurídica, militante, na advocacia com o Massacre de Eldorado dos Carajás.
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Bom, queria agradecer, agradecer muito pelo convite, Mara. Para deixar registrado, porque já são 27 anos do massacre, então a gente vai perdendo a memória, e é bom que tenha esse tipo de atividade para que fique registrado, para a posteridade, o que a memória já não vai permitir com tanta desenvoltura nos próximos anos.
Então, meu nome é Carlos Guedes do Amaral Júnior, eu sou nascido no Rio Grande do Sul em Porto Alegre e o meu primeiro contato com a luta no campo se deu na universidade. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, eu fazia o curso de Direito. Na primeira metade dos anos 90, aqui no Rio Grande do Sul, o MST... era muito ativo... então... e fazia muitas atividades nas cidades também. Então, isso foi me aproximando, eu passei por uma série de etapas de formação dentro do MST, até receber o convite para trabalhar para o MST como advogado depois de formado. Então, me formei em 96, em 96 eu fui enviado para o estado do Maranhão, para contribuir na luta no campo no Maranhão. No Maranhão a luta no campo era muito difícil... a implantação do MST tinha sido muito combatida pelo latifúndio... mas foi uma atividade bem interessante esse primeiro contato com a realidade do campo. Eu cheguei em março de 96 e em abril, no dia 17 de abril de 96, por volta das 11 horas da noite, chegou a notícia em Imperatriz, onde eu estava situado, da ocorrência do massacre. Então, foi pedido que eu me deslocasse para Marabá imediatamente.
Então, eu fiz o percurso Imperatriz-Marabá e cheguei no local do massacre por volta de cinco da manhã do dia 18 de abril. Então... a situação era... uma situação desesperadora... as famílias que tinham sido alvo do massacre... elas tinham retornado para o acampamento... na mata... elas estavam sem contato com o mundo exterior... elas não sabiam se elas iam ser alvo de novos ataques... então, era um clima de muito desespero... porque, claro, a polícia não entrou no acampamento... e não permitiu sequer que a imprensa entrasse. Eu consegui entrar no acampamento por ajuda de militantes que sabiam caminhos alternativos. Então a situação é de total desespero, muitas pessoas se dispersaram ao longo e ao final do massacre, não retornaram imediatamente ao acampamento, então se imaginava um número muito, muito superior de mortos e desaparecidos. Então era uma situação caótica, mas que em dois dias o MST já tinha estabelecido uma normalidade no acampamento e já tinha conseguido furar o cerco da polícia, as pessoas já estavam adentrando o acampamento, então... esse foi o primeiro grande grande feito do MST... que foi quebrar o isolamento que as famílias ficaram colocadas.
Mara Carvalho
Excelente, imagino toda a tensão e essa chegada em meio a tudo isso, como que também o processo de organização coletiva se torna importante para essa restabilização também do emocional dessas famílias, da área também, de todas as pessoas envolvidas.
E enquanto advogado popular, quais os principais desafios então... com essa chegada, com essa demanda também de tranquilizar e também de se tranquilizar para essa atuação, então como que você então passa a atuar enquanto advogado no caso, Carlos?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Então assim, no primeiro minuto já dentro do acampamento, por volta de seis e meia da manhã do dia 18, eu tinha destacado uma missão para mim, que era reconstruir o que tinha acontecido... fazer reconstrução dos fatos do que tinha acontecido... naquela tarde do dia porque eu sabia... já... no... na... eu assisti o Jornal da Globo do dia 17 e no Jornal da Globo apareceu já a versão oficial, então falaram o governador do estado do Pará, falaram o secretário de defesa de segurança pública do estado do Pará, colocando a versão oficial de que bom, teria havido um ataque por parte dos trabalhadores, um ataque violento com uso de armas de fogo e, os policiais militares, como estavam em menor número, tiveram que fazer a contenção à força e isso teria provocado o desfecho do massacre.
Então, antes de chegar no Pará, ainda em Imperatriz, assistindo o Jornal da Globo, eu já vi que ia ser montado, ia ser feita uma reconstituição artificial, dos eventos do dia 17. Então quando cheguei no acampamento a primeira coisa que eu fiz foi tentar obter as informações sobre o que efetivamente tinha acontecido. Eu lembro que eu tinha um caderno, eu conversei com dezenas de pessoas, consegui descrever praticamente minuto a minuto o que tinha acontecido, e a partir disso foi uma longa luta para fazer impor a versão dos fatos tais como eles efetivamente ocorreram. Então eu me lembro que os promotores de justiça que foram destacados para o caso, eles insistiam na tese de que teria havido um confronto e não um massacre, então eu tinha evidências muito claras, muito objetivas, de que tinha acontecido um massacre deliberado, com planejamento prévio. E foi um embate de vários meses, até que a gente conseguisse convencer o Ministério Público de que existiam, pelo menos, indícios mínimos de autoria e de materialidade, nesse caso, passando ele a ser um caso criminal, como um massacre e não como um confronto.
Então, assim, ao longo do ano de 96, a minha principal atividade foi literalmente vender meu peixe. Eu tinha uma história e precisava que as autoridades acreditassem na minha história. E por fim, em 96 foi oferecida a denúncia criminal contra os policiais militares... todos os participantes... os oficiais, suboficiais e soldados... todos eles foram denunciados criminalmente... e aí se abriu um processo criminal, foi instaurado um processo criminal, para fazer a apuração, e... no processo criminal surgiram mais elementos no sentido de um massacre deliberado, com participação de interesses muito poderosos, como a Vale do Rio Doce, na concepção do massacre. Então assim, acompanhando a instrução criminal, acompanhando a inquirição do interrogatório dos policiais, o quadro se formou de forma ainda mais nítida. Então a gente levou essa discussão, mas essa discussão estava sendo travada muito... muito dentro, localmente, do estado do Pará, por questões de chantagem política. O governador foi obrigado a endossar a posição da polícia militar, então toda a estrutura política do estado do Pará falava em uma só voz na questão do confronto iniciado pela MST e uma reação defensiva. Isso pautava a imprensa... a imprensa do Pará na época era uma imprensa que tinha três grandes jornais, os dois principais jornais eram pautados pela imprensa oficial, e o jornal que fazia oposição ao governador Almir Gabriel, ele era um jornal do Jader Barbalho, o Jader não tinha interesse em se envolver nessa questão. Se tentou construir a seguinte versão para o público em geral.
O MST era um intruso no Pará e ali é um confronto entre intrusos e os paraenses. Mas os paraenses estavam sofrendo uma... críticas, sofrendo ataques nacionalmente, então o Pará devia se unir como um todo para fazer um bloco político contra esses intrusos, o MST. Porque o MST, essa movimentação que antecedeu o massacre de Eldorado foi a primeira movimentação de grande porte do MST no Pará. Então, embora os conflitos fundiários do Pará fossem antiquíssimos e violentíssimos, a presença do MST era um momento quase inicial. Então, a imprensa pautava muito essa questão de que eram intrusos. Os dirigentes vinham de outros estados, os trabalhadores não eram paraenses, as famílias eram maranhenses, então tinha muito essa questão de que trouxeram um problema para o Pará e deixaram para o Pará resolver.
Então era nesse mundo político que se dava o nosso trabalho de fazer o contraponto. Então, assim, muito inteligentemente, a direção, nos primeiros dias depois do massacre, tirou um lema para acabar com a violência, só reforma agrária. Então, tipo... ao mesmo tempo que passava uma mensagem de paz, de não... de não... de não... de necessidade de qualquer tipo de conflituosidade, colocava de forma bem clara que a reforma agrária, a luta pela reforma agrária continuaria na região, como efetivamente continuou. Então, assim, esse era, no geral, a realidade no momento.
Mara Carvalho
Certo. Então, tem um marco também, que demarca tanto a chegada do MST como também toda a dimensão que envolveu a violência, no caso, massacres no campo, e como que isso também amplia a visibilidade em torno da violência na região. Então, o massacre acaba também contribuindo de forma também para visibilizar tanto a questão agrária local como o histórico de conflitos que lá existiam, que culminou, inclusive, nesse massacre. E aí, nessa relação com esses elementos que você traz, Carlos, enquanto advogado popular, nessa relação também com a própria resistência do MST e as diversas estratégias que também foram criadas para esse enfrentamento, como que se deu também a sua atuação e a atuação do MST com as forças locais? A gente fez entrevista com o Batista, ele mencionou também a relação da CPT com a atuação de vocês enquanto advogados, com o fortalecimento da luta do MST. A gente também sabe que outros advogados do movimento e parceiros passaram a atuar. Então, como que foi se consolidando também a estratégia para esse enfrentamento na busca da responsabilização?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Então assim... a chegada da MST criou um impasse para as forças de repressão. Porque, assim, como é que era o padrão usual? Bom, os conflitos fundiários no Pará sempre foram muito violentos, mas era aquilo, eles identificavam com quem eram as lideranças, essas lideranças ou eram assassinadas, ou eram de tal forma pressionadas psiquicamente, que não abandonavam a luta, iam continuar a luta em outros lugares.
Então assim, na verdade, quando a gente fala em número de mortos, ele representa um espectro especial da violência. Porque assim, isso eu vi em campo o peso da violência em outros sentidos, além do assassinato. Então, por exemplo, em um lote onde vivia a liderança e a família, serem disparados em seguidas noites, disparos de armas de fogo para intimidação... tipo... quando as famílias saíam para ir para a roça e encontravam trincheiras feitas pelos pistoleiros... tipo... tinham os animais caseiros abatidos então esses fatos eles são de uma dimensão psicológica muito violentos, muito violentos. Então tinha, mas tinha esse padrão de eliminação física ou de espaço, transferência para outros espaços, forçada, de lideranças. E com isso se imaginava que se desarticulavam aqueles movimentos de posseiros que não teriam uma formação política muito sofisticada.
Com o MST foi totalmente diferente porque o MST, pela forma coletiva de organização, na eliminação simples de um dirigente, pouco efeito teria. Na eliminação de alguns dirigentes, pouco efeito teria também. Então, o que foi planejado para Eldorado dos Carajá, e isso foi documentado, foi um assassinato de toda a direção da MST no Pará. O que aconteceu foi o seguinte, Mara. O MST tinha conquistado... o massacre de Eldorado de Carajás se deu em abril de 96, em setembro de 95 o MST tinha conquistado o seu primeiro grande assentamento na região chamado Assentamento Palmares. E aí como era o primeiro assentamento os principais dirigentes do MST foram assentados nesse assentamento Palmares.
No dia do massacre, era para estar todos os dirigentes, toda a direção da MST, toda a frente de lutas, toda a frente de massas dentro… na caminhada. E a gente sabe que os policiais militares tinham sido orientados na... e conheciam já os dirigentes da MST, orientados para assassiná-los. O que deu errado nessa situação foi que nesse dia preciso, dia 17 de abril de 1996, o Incra foi pagar créditos de instalação dentro do assentamento Palmares. Então esses principais dirigentes ficaram, não foram, eles não estavam no local do massacre. Mas eles ficaram, porque a ideia inicial era o assassinato de todo o coletivo pra acabar de uma vez por todas com a direção da MST, e aí como não foi possível isso, houve assassinatos totalmente aleatórios de pessoas que não tinham nenhuma responsabilidade nem a nível de coordenação de acampamento muito menos responsabilidade política, nada… tipo assim, iam ser assassinados os 25 ou 30 principais dirigentes do MST Como eles não foram encontrados, foram assassinadas pessoas aleatórias com exceção de um, que foi o Oziel, que era um dirigente que não estava sentado na Palmares, mas era um dirigente importante da juventude do MST, da frente de massas que esse foi localizado e esse foi assassinado com requinte de brutalidade, mas assim, não deu certo no plano maior, que era o do assassinato de toda a direção política do MST no Pará.
Então assim, passado isso, passado o massacre, os policiais permaneceram presos administrativamente por 15 dias, depois eles foram soltos, depois eles voltaram para seus locais de lotação. Então os policiais estavam convivendo novamente com as vítimas do massacre, então assim... e os fazendeiros locais também se articularam agora por uma questão de judicialização. Eles tentaram tornar mais sofisticado o enfrentamento e judicializar a questão, então, por mês, surgiam de 10 a 15 novas ações judiciais de fazendeiros vizinhos, o acampamento Macaxeira, que era o acampamento do massacre de Eldorado com interditos proibitórios, ações de reintegração de posse, manutenção de posse, então isso ocupava muito a minha atividade, e foi muito interessante porque ali eu comecei a me especializar em registros públicos. Eu comecei a ver e entender sobre os títulos fraudados, sobre o processo de grilagem, então ali foi uma escola para mim e ainda hoje dá frutos, porque eu atuo como consultor da CPT, principalmente nessa área. Então teve essa questão, Mara, que a judicialização, ela serviu muito para nós, para que a gente tivesse uma visão maior sobre a organização do latifúndio na região.
Tiveram muitos embates jurídicos, a gente conseguiu derrubar praticamente todas as liminares, todas as liminares foram derrubadas, nenhuma liminar foi cumprida, até o ponto que novamente, no final dos anos 97, início de 98, novamente tinha entrado em crise o que fazer, o que os fazendeiros deveriam fazer para enfrentar o MST. Aí veio o outro massacre da Fazenda Goiás 2 e já vem já como uma tentativa de reorganização dos fazendeiros no enfrentamento do MST.
Mara Carvalho
E outros advogados, vocês puderam contar com o apoio de outros advogados da região ou vocês atuaram mesmo sozinhos com a contribuição de outras redes de juristas, apoiadores do MST?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Então, nos dias seguintes ao massacre, foi deslocado para Marabá o Aton Fon filho, que foi fundamental com a experiência dele, para tirar linhas estratégicas de atuação, o trabalho dele foi fundamental, para a experiência dele, foi fundamental, até porque, eu tinha, eu tenho uma admiração pelo Fon, porque que antes de ir para o Maranhão, eu fiz um estágio de preparação no pontal do Paranapanema.
Naquele período, José Rainha tinha sido preso. Então estava muito intenso o conflito no pontal do Paranapanema, então eu tive o primeiro contato com o Fon lá, assim, tive uma excelente relação com ele e que se reproduziu no Pará. Então o Fon ajudou a dar pistas e principalmente ele ajudou na... porque o Fon foi preso político, então... foi preso político que por mais tempo ficou nas cadeias durante o regime militar. Então assim, o que o Fon mais passa é determinação e ele passou muita determinação para mim. Tipo assim, tem que agir determinado. Se tu quiser ficar aqui é tua opção, mas se for para ficar aqui tem que agir de forma determinada. Então o Fon foi muitíssimo importante, porque na época eu tinha 22 anos. Era um recente aceito da faculdade, era muito jovem, e o Fon foi muito importante.
Mara Carvalho
Imagino. Conversando com o Batista, ele também falou que a época também passou a estudar e a contribuir a partir também dessa experiência e desse contato com vocês. É bonito também como vai se consolidando essa rede também entre advogados populares, com esse engajamento com a luta pela terra, né?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
É, então ali rapidamente se formou uma aliança local. O Frei Henri trabalhava em Xinguara, então o Frei Henri também atuou muito, tinha muita experiência, atuou muito na fase inicial, com informações sobre quem era quem, sobre os compromissos que os policiais tinham, os fazendeiros tinham, quais eram os fazendeiros mais violentos, quais eram os fazendeiros-chefes das quadrilhas, daí entra a figura do Batista na história, que é a figura que vai dominar a luta pelo campo no aspecto jurídico no Pará nos 25 anos seguintes.
Eu conheci o Batista na sede da CPT em Belém, no dia 20 de maio de 1996 a gente... de imediato... se criou uma amizade ele tinha concluído o curso de teologia, mas já contudo, estava assim, com uma disposição imensa de começar o curso de Direito, concluir o curso de Direito e atuar juridicamente nos conflitos fundiários ali no sul do Pará. Na verdade, não só do sul do Pará, porque ele é uma referência nacional.
Mara Carvalho
Nacional, com certeza. Muito interessante, Carlos, é muito bom também aprender e ouvir a professora, né, experienciada. Passando um pouco mais para a parte processual, digamos assim, para a atuação jurídica processual que você teve também, encampou aí nesse caso emblemático.
Agora a gente fala um pouco sobre a precariedade da investigação e da instrução criminal no processo. Como você vê essa relação dessa precariedade e como isso se relaciona também com o próprio quadro de impunidade que também o quadro sinaliza. Então, se você puder contar um pouco sobre isso, de fato houve essa precariedade, em que aspectos? Como que isso se relaciona com o jogo de interesses que também estavam colocados na ocorrência desse massacre? Se você puder contrapontar pra gente.
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Claro. Então assim... no dia 19 de abril de 96, chegou uma comitiva de Brasília de representantes do Conselho Nacional de Defesa da Pessoa Humana, entre aspas, eles iam fazer uma intervenção na investigação para que a polícia federal participasse das investigações e que fossem garantidos médicos legistas de fora, renomados, para fazer os exames de necropsia e a polícia federal, o Instituto de Criminalística, para a produção de provas técnicas. Eu estava presente na chegada. A contraparte deles eram os representantes do Ministério Público, mas eles foram totalmente desconsiderados, foram totalmente desconsiderados, davam sugestões sobre interação com a polícia federal, recebiam do Ministério Público a resposta de que a polícia do Pará era mais equipada para conduzir uma investigação desse porte, de que na verdade eles estavam contaminados por uma versão que vigorava no centro-sul do país em relação ao massacre, mas que não tinha sido um massacre, tinha sido um confronto. Então tipo, essa primeira intervenção para garantir uma investigação de alta qualidade ela foi bloqueada pelo próprio Ministério Público paraense.
Eu me lembro que tinha um procurador de justiça, Quintanilha Bibas, que era localmente, veio de Belém e localmente era o chefe, era considerado o chefe dos promotores de justiça locais. E ele não abriu mão, sequer permitiu que os promotores do CNDPH tivessem em contato e fossem ao local visitar as famílias ou fossem, tivessem contato com os policiais, não. O máximo que se conseguiu, e isso por intervenção do Paulo Sérgio Pinheiro, diretamente com o governador Almir Gabriel, foi a designação de um médico legista, o doutor Nelson Massini, ele era médico legista da Federal Fluminense ou da Federal Rural do Rio de Janeiro. E ele foi... praticamente com força de armas não deixaram ele fazer a perícia, primeiro fizeram a perícia oficial e assim com muita pressão nossa, com ligações do Paulo Sérgio Pinheiro, constrangendo o Amir Gabriel, autorizaram o Nelson Massini a fazer as perícias dos corpos e foi aí que no dia seguinte surgiram as manchetes informando que tecnicamente havia um massacre, porque foram filhos de curta distância, foram golpes de armas brancas, foram golpes com instrumentos contundentes. Eu participei das perícias, eu fiquei 22 horas ali dentro do que era um IML improvisado, o estado dos corpos era assim, era como para deixar uma mensagem, que os corpos foram inteiramente destruídos.
Era um cenário pior do que a gente vê em filmes de guerra, que eles não mostram as imagens tão fortes para não chocar os espectadores, era um cenário muito forte, daí o médico Nelson Massini conseguiu passar para o mundo exterior essas conclusões, mas a gente sempre teve atrás na questão da investigação oficial. Na investigação oficial, primeiro houve inquérito policial militar, que não concluiu basicamente nada. Depois houve uma ação penal por parte do Ministério Público e da justiça comum.
A denúncia foi aceita contra todos os policiais militares participantes do massacre. Eles foram pronunciados criminalmente. Houve um primeiro julgamento do júri que foi anulado e houve um segundo julgamento onde foram condenados dois oficiais comandantes, o coronel Pantoja e o major Oliveira. Enquanto isso, assim, era uma situação incrível porque o grande facilitador para as absorções foi o fato de que ninguém sabia o que cada um tinha feito. Não sabia se o policial X ficou observando, se foi o policial Y que atirou em C, não se sabia... se dizia que não se sabia nada disso, e portanto, na dúvida, principalmente os soldados e os sub-oficiais deveriam ser absolvidos. Mas nós sabíamos, por função desse trabalho, que foi feito desde as primeiras horas no acampamento, exatamente o que tinha feito um grupo de matadores, tinha um grupo de matadores dentro do grupo e os policiais são responsáveis porque eles viram tudo, não fizeram nada e não relataram nada os policiais que não participaram ativamente com o massacre eles firmaram o pacto de silêncio então eles são responsáveis nessa medida, mas havia um grupo de policiais matadores que eram os policiais que conheciam pessoalmente os dirigentes do MST, e eram os habilitados para promover os assassinatos. Então, esse grupo de policiais matadores, nas primeiras horas do dia 18, já estava identificado. Só que muita dificuldade para localmente furar o bloqueio da imprensa, trazendo essa discussão, o Ministério Público não queria trazer essa discussão porque os próprios promotores temiam também na repercussão, um tipo de um levante, porque várias oportunidades na polícia militar cogitou fazer levantes, fazer greves, fazer operação tartaruga ou fazer o que fazem hoje em Belém tipo se um policial militar é morto eles saem aleatoriamente pelas comunidades populares e matam 10, 15 pessoas hoje é a prática usual em Belém isso né, então tinha tinha essas ameaças, então o ministério público foi o mais passivo possível, ele exerceu o papel na forma mais limitada possível, porque os próprios promotores não se sentiam suficientemente seguros para enfrentar aquilo.
Então foi feita uma transferência da discussão para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na Corte Interamericana de Direitos Humanos a gente pode apresentar as nossas informações, os nossos dados com mais liberdade, conseguimos convencer os membros da comissão sobre alguns fatos-chave do massacre, mas por questões políticas a comissão teve uma atuação minimizante que ficou bem aquém do que a gente esperava.
O Brasil estava em tratativas para reconhecer a autoridade judicial da corte interamericana, o que aconteceu em 98, então diplomaticamente o Brasil pressionou a comissão interamericana no tipo, se vocês forem muito incisivos, isso vai provocar uma reação no Brasil e a nossa adesão à corte interamericana vai ficar complicada, então a comissão interamericana ela foi aquém do que se esperava. Mas assim, o efeito e trouxe muita atividade jurídica, foi que, ao contrário do que se imaginava na época, que o massacre de Eldorado dos Carajás seria o fim da MST no Pará, depois do massacre houve uma explosão de ocupações, tanto por parte do MST como por parte do movimento sindical rural. Então o Batista, acho que é a principal testemunha presencial desses fatos, tipo, existia um... um assentamento do MST e aumentou para mais de 20.
Na região foram criados mais de 200 assentamentos nesse período imediatamente posterior ao massacre. Então houve um recrudescimento da luta generalizada em toda a região sul-sudeste para a recuperação do MST. Então, do ponto de vista estratégico, o massacre Eldorado dos Carajás teve o efeito exatamente contrário ao que ele era destinado.
Mara Carvalho
Sim, a luta pela terra se fortaleceu, então, e todo esse processo de busca de responsabilização, o apelo social, a denúncia da violência desse massacre também possibilitou essa força de ampliação da luta pela terra.
Isso que você traz pra gente também, na relação também com outros achados, a gente percebe, isso é algo que se comprova mesmo. E pelo que você fala, essa atuação limitada, vamos falar assim, do próprio Ministério Público, ela também acabava sendo uma barreira para a apuração do caso e ela acabava também contribuindo para um esforço de apagamento da memória das vítimas sem terras mortas nesse massacre. Então a gente também percebe um pouco disso nesses achados, que é de como essa atuação não implicava só um impedimento processual, mas como ela também impossibilitava o resgate e a história dessas pessoas mortas, de como foram mortas e por que esse massacre teria que ser responsabilizado. E aí nessa relação que você traz, também falando, né, dessa primeira anulação, do júri, como também que você percebe isso, de como que também o próprio processo do júri, ele traz elementos também de limitação para uma responsabilização num caso como esse.
Como que você vê isso, pensando também a própria opinião pública com relação à luta sem terra, ao MST, à violência no campo? Isso se anula, isso corrobora de forma positiva, negativa. E como você vê isso, tanto pensando o aspecto da luta social, mas também processual, jurídica, né? Como essa anulação se relaciona também com o processo de criminalização e até de impunidade mesmo, né? Se você puder também trazer alguma associação pra gente nesse sentido.
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Perfeito, assim, então Mara, a população de Belém é uma população, historicamente, que conta com movimentos populares, e eleitoralmente, a esquerda sempre foi muito forte em Belém. Tanto o atual prefeito, do PSOL, o Edmilson Rodrigues, e já teve uma governadora do PT, o Edmilson Rodrigues foi duas vezes prefeito de Belém anteriormente, então sempre tem uma bancada interessante na Câmara dos Vereadores, então assim, nós sabíamos que levar o júri para Belém era uma coisa essencial, porque o júri ia ser realizado inicialmente em Marabá, inclusive estava tudo pronto para os juros ser realizados, os jurados, os sorteados e um jornalista da Folha de São Paulo, a Folha de São Paulo mandou um jornalista para fazer uma investigação especial, o jornalista Mário Magalhães e ele fez uma investigação sigilosa sobre os jurados e descobriu as mais próximas ligações entre os jurados que atuariam em julgamento e os fazendeiros locais e os policiais locais.
Para se ter uma ideia, quem ia fazer a segurança do fórum de Marabá no julgamento seriam os próprios réus, eles se revezariam na segurança, era uma coisa, mas era a definição do Tribunal do Estado do Pará realizar em Marabá, daí com essa reportagem, teve uma reportagem enorme da Folha de São Paulo apontando jurado por jurado suas relações com o poder local e aí o julgamento foi transferido para Belém, daí em Belém nós sabíamos que teríamos chances reais de condenação, só que... aconteceu um processo de desgaste, principalmente meu, com os juízes de Belém, todos os juízes das varas criminais, das varas cíveis, porque...
Mara Carvalho
Foram outros juízes que passaram pelo caso?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Sim.
Mara Carvalho
Isso, aproximadamente?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Sim. Então, o que acontecia? Os juízes, eles queriam estabelecer regras para que favoreciam a absolvição dos acusados. Tipo, queriam fazer julgamentos em blocos para facilitar a absolvição. A gente se colocou contra, daí a gente investigando junto com a ajuda da CPT, a CPT em todo esse período é fundamental, inclusive materialmente.
Chegou um momento em que a MST não tinha mais condições financeiras de manter uma estrutura jurídica e quem abarcou, quem aceitou seguir à frente foi a CPT. Então, eu também me transformei em advogado da CPT a partir de um período que o MST não tinha mais condições de fazer frente a essa situação financeiramente. Então a CPT sempre teve muito presente, pelos contatos da CPT, a gente já começou a ver que juízes do interior tinham relações com fazendeiros e a gente começou a trazer isso a público e como eles não tinham como negar, eles começaram a se dar por suspeitos e aí no final, no movimento infantil de rebeldia, todos os juízes de Belém decidiram que não iam julgar o caso, não iam julgar o caso porque iam acabar sendo expostos às suas relações com o poder, com poder principalmente em relação às suas passagens pelo interior, iam ser expostos toda essa ligação e todos eles se recusaram.
Daí o que aconteceu foi que um juiz, que era muito… muito ambicioso... foi oferecido para ele uma vaga para o tribunal, para o desembargo, nas próximas promoções, Roberto Moura. E aí ele aceitou presidir o julgamento. No primeiro julgamento quem estava à frente era um outro juiz, Ronaldo Marques do Vale. Ele, assim, fez no julgamento exatamente o que se fazia politicamente na elite política do Pará, transformar uma luta do Pará contra os intrusos, então, o Nilo Batista era advogado de acusação, do Rio de Janeiro. O Fon era advogado de acusação, de São Paulo, eu era, Rio Grande do Sul. Então parecia que eram pessoas de fora do Pará que vinham acusar os paraenses de crimes e, então, tipo, várias vezes o senhor Ronaldo do Vale cortou a palavra do Nilo Batista colocando, “ah mas é que você não é daqui, você não entende como é que funciona a nossa sociedade”, então para criar uma animosidade dos jurados com Nilo Batista.
Então, esse meu julgamento acabou resultando na absolvição de todos, e nós conseguimos, com muito esforço, anulá-lo. Ele foi anulado, esse julgamento, e foi feito um outro julgamento, que aí acontece a crise dos juízes que não aceitam presidir o julgamento. Daí, em função disso, o MST se retira do julgamento, o MST não participa do julgamento, quem participa do julgamento é uma entidade de defesa dos direitos humanos e acontece o que já era previsível, jogar, fazer o jogo que não era proposto redundaria na absolvição de 99% dos acusados, que foi o que aconteceu, então, quando o MST teve clareza de que era um julgamento com cartas marcadas, se retirou do julgamento e houve a condenação só dos dois oficiais.
Mara Carvalho
Nesse tema com relação aos juízes, você acha que, enfim, existia um conflito de interesses entre eles, nessa relação direta com o próprio, com as forças locais, com o Estado, com a força de segurança? Como que você olha isso? Era só, como é que se diz, não querer colocar a cara para assumir um caso emblemático como esse ou isso se comprova com essas questões que você traz, que também tinha essas questões das relações locais que também possibilitavam a continuidade de um julgador à frente do caso? Como que você vê? Porque foram oito juízes, né? Enfim, como que você também pode trazer mais elementos sobre isso?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Foram oito juízes que sucessivamente declinaram a presidência do Tribunal do Júri. Daí houve uma convocação para que outros 21 juízes, lotados em Belém, um deles participasse, e aí esses 21 juízes se recusaram também. Então houve uma recusa de praticamente todos os juízes de Belém se recusaram à exceção desse Roberto Moura que vai presidir o segundo julgamento que resulta na condenação dos dois oficiais. Então assim, com certeza, em relação aos juízes, havia um misto, porque, um misto de justificativas. A primeira era o total convencimento deles de que os policiais foram vítimas, de que aquilo foi um confronto iniciado pelos trabalhadores e que os policiais foram vítimas, tiveram suas vidas desgraçadas por aquele acontecimento. Então tinha uma afinidade ideológica muito, muito, muito, muito grande e esse é o fator principal.
O segundo fator principal é a relação, porque todos os juízes que estavam na capital passaram pelo interior e passaram pela região sul e sudeste do Pará. Então, todos eles tinham ligações com fazendeiros, porque, tipo, ter o juiz fazendo parte do grupo social da cidade do interior é muito importante, então o juiz está sempre em festas com os fazendeiros, está sempre relacionado com os fazendeiros, então, a preocupação... e nós fizemos em relação a alguns deles, nós expomos essas relações, então o segundo eu diria que era o temor deles de serem expostos com suas relações promíscuas com o mundo dos fazendeiros.
Terceiro também tinha uma questão pragmática, que era, tipo, nenhum policial ficou mais de 15 dias preso. Todos os policiais voltaram para suas lotações. Policiais participaram do massacre se envolvendo posteriormente em outros massacres e também não aconteceu absolutamente nada. Então tinha um grupo, certamente um grupo de pragmáticos que diria... tipo... “Não aconteceu nada com eles, vai ser eu que vou ter que segurar essa bomba na mão e participar da condenação deles? E o que me garante de que eu não venha a sofrer retaliações?”. Então tinha esse misto assim, mas o preponderante mesmo era a convicção de que os policiais eram inocentes Esse era o principal
Mara Carvalho
Falando nesse tema dos policiais, pensando um pouco também a nível macro, e aí também, se você puder contribuir, tecer também alguns comentários de como você olha também essa questão desse não envolvimento do sistema de justiça por meio desses juízes, digamos assim, para responsabilizar, né, segurança pública, polícia.
Como que você olha isso pensando em outros casos criminais, outros processos criminais em que agentes do Estado, de fato, não passam pelo devido processo legal, ou passam por um processo de julgamento comparado, digamos, a pessoas de outras classes ou a um cidadão comum. Como que você olha isso, olhando o caso de Eldorado? Nenhum policial ficou 15 dias preso, depois eles voltaram a trabalhar, tem uma rotina normal de trabalho. Mas como que você olha isso pensando também a nível macro em torno da responsabilização desses agentes em assassinatos, em mortes como essa, podemos trazer como exemplo as chacinas em escala no Rio de Janeiro, que também envolvem mortes coletivas. Então, Carlos, também se você puder tecer algum comentário sobre isso, para além do caso de Eldorado, como que você olha a não responsabilização, responsabilização de agentes do Estado, policiais, que também acabam corroborando para a questão da impunidade com relação à morte de lutadores e lutadoras no campo ou na cidade?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Eu sei que aconteceu um fato em junho de 96, foi aprovada a lei Hélio Bicudo, que eu não sei se você lembra, Mara, do caso da favela naval que um grupo de policiais militares assassinou um grupo de pessoas que estava num veículo em São Paulo, na favela naval e isso foi gravado, teve uma repercussão muito grande, e isso foi a inspiração para a lei Hélio Bicudo, que transferia o julgamento dos crimes de homicídio doloso da justiça militar para a justiça comum. Então, aquilo era visto como algo revolucionário, que a gente teria dois momentos na história do Brasil, em termos de punibilidade de agentes do Estado, o tempo em que eles eram submetidos à justiça militar e o tempo que eles eram submetidos à justiça civil. Só que a diferença não foi percebida, não é perceptível. E eu acho que isso dá muito pela formação pelo estrato social ao qual pertencem os juízes, na sua grande maioria, e as vivências que eles têm durante o período de judicatura.
Então assim, o juiz sempre inicia pelas menores comarcas do interior e gradualmente vai evoluindo. Então já nas menores comarcas do interior, já aquela captação, o universo social em que uma pessoa que tem um rendimento significativo se insere, não é o dos movimentos populares, é o dos empresários, é o dos fazendeiros. Então, eles já começam a ver os interesses dos fazendeiros, por exemplo, na região norte, como seus interesses como ataque aos interesses dos fazendeiros como um ataque aos seus próprios conceitos, à sua própria visão de mundo, isso leva a situações como essa, que embora a justiça comum hoje julgue todos os homicídios praticados por policiais militares, não há uma efetividade nas punições.
E assim, se mostra um círculo absolutamente disfuncional, então eu vou te dar alguns exemplos. Tinha um grande dirigente sindical rural em uma cidade chamada Rondon do Pará, o dirigente se chamava Dezinho, José Dutra da Costa. Ele foi assassinado em novembro de 2000. O pistoleiro só foi preso porque o dezinho, no último gesto de vida em vida, se jogou sobre o pistoleiro, como ele era mais pesado, o pistoleiro ficou embaixo dele e as pessoas puderam capturar o pistoleiro. Então era um pistoleiro confesso, preso em flagrante e foi julgado em Belém e foi condenado a 28 anos de prisão, daí foi recolhido para o sistema prisional e fugiu. Então, assim, é um sistema multiportas. Ou tu pratica o crime e não é capturado, as investigações são frágeis e não levam uma identificação, se tu é preso e tu é julgado e tu é condenado, tu é recolhido para o sistema prisional e é libertado, em caso de fuga, é uma libertação, e depois de libertado tu nunca é mais localizado, então é um sistema de multi portas para a saída do criminoso. Então, perto das vantagens que são oferecidas aos criminosos, o risco efetivo que eles correm é muito pequeno. Então, isso é uma coisa que não indigna os juízes.
Eu falo dos juízes com quem eu travei contato no Pará, que eu posso falar com bastante particularidade. “Fugiu? Ah, fugiu. Vamos estourar então o procedimento disciplinar para ver em que condições foi a fuga”. Mas não se interessam, esse acaso que eu te falei, ele ficou foragido de 2008 até hoje e foi reconhecida no ano passado, esse ano, a prescrição do crime, então ele pode aparecer ao vivo no Fantástico, que não vai acontecer nada com ele. Então, assim, é um sistema que cada um faz minimamente a sua parte. Se, por força da pressão popular, for obrigado a fazer a sua parte, tem outros agentes na cadeia de envolvidos que vão fazer a sua parte, e aí vai soltar coisas do tipo ou vai fazer uma investigação muito deficiente. Então assim, para a minha impressão pessoal é, porque assim, muitas vezes... é incrível... que os juízes... esses juízes paraenses... alguns que participaram do caso de Eldorado dos Carajás eram provenientes de famílias muito pobres, mas quando entraram na judicatura, na magistratura, e foram introduzidos num mundo material muito mais diversificado, associaram diretamente, eram pobres, mas sem consciência política, né, e se associaram aos interesses do grupo com que eles conviviam, e formaram a visão de mundo, e a visão de mundo deles é essa. Uma visão de mundo muito clara.
Mara Carvalho
Claro, pelos posicionamentos. Então, poderíamos dizer que existe uma influência dos proprietários de terras locais, das oligarquias locais, com incidência no próprio poder judiciário, porque quando o juiz entra para esse espaço e ele também muda a sua forma de olhar, a sua forma de julgar, de se posicionar, enfrentar um caso emblemático como esse, então, parece que o sistema também sofre influências que acabam influenciando esses julgadores.
Então, no caso do massacre de Eldorado, você percebe essa relação também dos poderes econômicos locais, agrários, com a influência explícita no sistema de justiça local, do poder judiciário, que acabou corroborando para esse desfecho, né?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Exato, e assim, tipo o caso de Eldorado também é um outro caso que multiportas, porque os dois oficiais superiores foram condenados, o coronel Pantoja, que era um o responsável intelectual pelo massacre, ele alegou uma doença, foi recolhido, foi permitido que ele permanecesse em prisão domiciliar, então, foi só mais o desgaste de ser exposto ao julgamento, e do resto, a vida continuou normal, continuou recebendo os seus vencimentos, continuou com a sua patente, então... não, é claro, bem claro para eles que o risco que eles efetivamente correm é desproporcional perto das vantagens que eles podem aferir ao longo de um período no serviço público.
Mara Carvalho
Bacana. Então, nessa relação, você consegue perceber também essa teia relacional entre mandantes, financiadores e executores, e daí eu acho que se relaciona um pouco disso, que houve uma decisão de responsabilização, mas que de fato acabou sendo desigual e que impacta diferente se fosse um outro réu.
E aí como que isso também aparece nessa relação desse escopo, dessa teia dominante em torno desse caso. Então, se você também puder dizer pra gente como que você vê essa relação entre financiadores, mandantes e executores, de fato, nessa teia processual, com base em todos os erros, os vícios, que o processo também foi acumulando, né, enquanto possibilidades de responsabilização. Se você também pudesse.
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Então assim, eu vou pegar o exemplo do Eldorado, o financiador do massacre, quem disponibilizou os ônibus, quem disponibilizou toda a infraestrutura para o massacre, foi a Vale do Rio Doce, que tinha um conflito possessório muito ativo com o MST na região.
Então a Vale já tinha se envolvido anteriormente na prisão de tortura de dois dirigentes do MST, dois dirigentes do MST foram presos e torturados dentro das instalações da Vale, na presença de dois deputados da Vale, então a Vale era como a senhora maior do MST da região, e ela, a operação tinha que acontecer naquele dia, dia 17 de abril porque era onde iam estar todos os dirigentes da MST no local, mas o Estado não tinha, pela burocracia não tinha como garantir o deslocamento das forças até lá. Prontamente o coronel Pantoja fez um contato com a Vale, a Vale disponibilizou o que eles precisavam de ônibus, de equipamentos, de tudo para que eles se deslocassem para lá e o massacre fosse efetivado só não teve a proporção, em função daquilo que eu coloquei antes, Mara, que a grande maioria de dirigentes do MST estavam dentro do assentamento recebendo créditos do INCRA Porque a ideia original era fazer a liquidação física de sua direção do MST.
Mara Carvalho
O alvo era do MST à direção.
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Isso, o alvo era a direção do MST. E tinha que ser naquele dia porque no dia seguinte de março eu já estaria em Marabá então já não seria mais possível, então era aquele dia e para aquele dia tudo que foi necessário foi disponibilizado. Isso aí disponibilizado pela Vale. Então a gente sabe que tiveram junto, entre os policiais tiveram pistoleiros, pistoleiros cedidos pelos fazendeiros locais. Então os fazendeiros locais contribuíram, mas contribuíram de uma forma mais reduzida porque havia o poder do Estado em toda a sua força. Marabá, que é uma cidade de 300 mil habitantes, ela ficou sem um único policial no dia, não foi um único policial na cidade, todos eles foram levados, Parauapebas que hoje uma cidade deve ter é uma cidade pequena na época mas hoje deve ter 280 300 mil habitantes também ficou com sem nenhum policial então foi feito todo um esforço, né. para que no dia 17 de abril tivesse sido liquidada na direção da mestre no Pará num grande um grande sinalização para o país.
Mara Carvalho
como a resposta que eles queriam dar para essa chegada do MST, e essa relação macro também, de criminalizar o movimento, de responder pela violência e pela anulação de militantes. Muito interessante, Carlos. São muitos elementos. A gente passaria a tarde dialogando aqui, mas você traz chaves muito interessantes que agregam muito à nossa pesquisa, e aí só para a gente finalizar com mais duas perguntas, depois também se tiver mais alguma coisa que a gente não perguntou, que você queira colocar, esteja à vontade, mas assim, perseguindo o tema da impunidade que a gente vem falando também aqui ao longo da nossa prosa, né? Pensando o próprio escopo da nossa pesquisa. É possível a gente pensar numa impunidade estrutural dos poderosos, digamos assim, a gente está trabalhando, perseguindo casos de mortes no campo, de violência no campo, de mortes coletivas, mas de como que você vê, olha isso também, pensando a própria criminologia, o direito penal. Hoje a gente poderia falar sobre uma impunidade estrutural de poderosos, como você vê isso?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Então sim, eu tenho uma experiência já de praticamente 30 anos no Pará e eu falo com toda tranquilidade de que a impunidade é estrutural, uma impunidade estrutural, e no caso de Eldorado ela não se mostrou da sua forma mais abjeta. Porque assim, como a gente começou, num momento da entrevista, Mara, hoje o que acontece em Belém? Se um policial é assassinado, se um policial penal é assassinado é questão de horas de haver um massacre de pessoas que não têm nenhuma relação com o fato, então, de cada tentativa que o Estado faz de a impor sua autoridade, ela é respondida de uma forma mais violenta por parte dessas instituições. E então isso gera uma cadeia incontrolável. Isso eu vi tranquilamente na época que eu morava no Pará, que policiais que participaram do massacre de Eldorado participaram de outros homicídios tranquilamente, mas sem nenhum tipo, porque sabiam que o sistema como um todo levaria à impunidade.
E hoje, quando acontecem esses massacres em Belém, acontecem esses massacres em Marabá, a quantidade de policiais paraenses envolvidos com atividade criminosa é uma coisa absurda. Isso tudo é o reflexo dessa impunidade estrutural que ela teve um dos pontos altos de manifestação no julgamento de Eldorado. Como no julgamento de Eldorado, que teve essa cobertura mundial, repercussão mundial, não aconteceu absolutamente nada de concreto, os policiais continuaram vivendo a vida deles, normalmente sendo promovidos e tudo, não há porquê essas instituições policiais e militares se submeterem ao poder civil. Não há porquê. Para eles não tem lógica por que se submeter, porque eles desafiam o Estado e o Estado não consegue dar uma resposta, dá uma resposta claramente insuficiente. É bem típico de grupos criminosos, isso falando do ponto de vista da criminologia em um aspecto universal. O grupo criminoso vai se estruturar, vai se reforçar e vai se tornar mais violento a partir do momento em que ele é confrontado pelo Estado e o Estado não dá uma resposta eficiente. Aí acontecem os eventos mais diversos, os poucos juízes que enfrentam, são assassinados, são ameaçados, são retirados dos casos. Então a gente está vivendo certamente isso com toda a força no Brasil e Eldorado dos Carajás foi uma perda, foi uma oportunidade perdida sem paralelo. Poderia ser feito uma justiça e ter sido feito, não era como nós pensávamos ou alguma coisa no sistema, a gente chegou ao limite de testar ele. Não. Então, o julgamento de Eldorado dos Carajás certamente teve uma influência pela expansão da violência e da não submissão das polícias militares ao Estado.
Mara Carvalho
25 anos depois, com esses elementos que você traz, a gente continua vivenciando, vendo situações semelhantes, seja no campo ou na cidade, e a gente ainda continua, digamos, com essa impunidade estrutural, como está sendo colocada aqui. Por isso que precisamos fazer pesquisa, investigar, fazer com que a gente possa confrontar não só a opinião pública, mas o próprio poder judiciário sobre sua atuação e de como ele se relaciona com o Estado no seu dever de responsabilizar penalmente as pessoas que cometem crimes, principalmente contra esses povos e na luta pela terra. E por último, Carlos, partindo aqui para o nosso teto combinado de conversa, também é uma outra pergunta que se relaciona com a nossa pesquisa, e aí também com o próprio tema da impunidade que a gente persegue nesses nossos estudos, e daí também você fica à vontade para também tecer o seu olhar, trazer o seu olhar sobre isso, que aí é um pouco de combate nessa sua experiência, nesse relato que você traz, em todo acúmulo que você tem quanto advogado popular, como que você situa as razões da impunidade no caso de massacres no campo? Quais são as raízes em si que acabam ainda provocando, motivando a ocorrência de massacres, e de como que a gente então pode seguir em busca dessas razões para que de fato a gente tenha esses enfrentamentos, como eu falei, não só nessa confrontação, a atuação do sistema de justiça em si, mas pensando o Estado, pensando a própria opinião pública. Então, com base nessa experiência, quais são as razões de fato? Como é que a gente pode, então, perseguir essas razões para que a gente não tenha mais mortes coletivas no campo?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Eu vou colocar um exemplo, assim, acho que foi em 1999, na cidade de Rondon do Pará. A comunidade se reuniu, fez um pedido para o Governo do Estado, um delegado duro para combater a criminalidade, e foi enviado para a cidade um delegado considerado linha dura. Daí, pequenos crimes cometidos por menores, furtos em supermercados, as crianças foram exterminadas, foram assassinadas, como aviso, foram espancadas, torturadas. Daí tinham outros crimes patrimoniais que eram cometidos, pequenos crimes patrimoniais cometidos, a mesma coisa, tal. Só que o cara era linha dura, linha dura mesmo. E aí, por exemplo, quando ele começou a investigar a venda de gado dos grandes fazendeiros sem nota fiscal, totalmente ilegal, quando ele começou a investigar a contratação de pistoleiros por parte dos fazendeiros, aquelas mesmas pessoas que pediam um delegado de linha dura não queriam mais um delegado de linha dura, foram os primeiros a pedir que ele fosse embora. Então, eu acho que as coisas se dão dessa forma.
Tem um modelo de polícia que serve aos interesses dos grupos que são politicamente e economicamente mais fortes nas cidades do interior e quem não se alinha com esse grupo é, de alguma forma, embora possa ter prestado serviços para o próprio grupo, ele é retirado do circuito. Então, acho que o principal motivo para manter a impunidade estrutural é isso, tipo, o combate ao crime não interessa, interessa combate a alguns crimes. E a definição de quais crimes vão ser coibidos é uma definição que é feita fora do Estado, não é o Estado que delimita, não, tais crimes vão ser, claro, fora homicídios, esses crimes de maior repercussão, mas o resto, não importa. São essas próprias forças políticas e econômicas locais que estabelecem o que vai ser reprimido, o que não vai ser reprimido, o que é permitido, o que não é permitido, e quem não gostar ou quem não se associar a isso vai sair fora.
Mara Carvalho
Certo, Carlos, muito bom, excelente. Chegamos a 1h20 de entrevista, de conversa, com muitos elementos que dariam para a gente ficar o dia todo conversando. Você teria mais alguma coisa? Gostaria de trazer mais alguma coisa que não foi pontuada aqui, a gente foi organizando aqui com base no roteiro que nós enviamos, pensando também em toda a experiência que você traz. Tem mais alguma questão que você gostaria de colocar?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
É assim... É uma coisa que eu tenho dificuldade de compreender. Porque... assim, para nós, para mim, para ti, Mara, para um grupo muito significativo de pessoas, é tão evidente que ainda se vive uma mini guerra civil no campo, e eu faço, quando eu voltei para Porto Alegre, eu fiz muita força junto à universidade, aqui, para ver se surgiam voluntários para trabalhar, porque eu acho particularmente muito solitária a luta do, por exemplo, do Batista, da equipe da CPT de Marabá.
Quando deveriam ter dezenas de pessoas trabalhando com eles, são duas, três pessoas, com uma remuneração limitada e uma dedicação absoluta, integral. Isso assim que... para mim, por mais que eu tenha refletido, eu não consigo entender por que que o meio universitário brasileiro não é atraído, por isso que é tão tocada a vida, a gente está falando de vidas, de existência de pessoas, de vidas, de sonhos, de esperanças, não é tocado por essa questão.
Mara Carvalho
Para atuar, né? É um grande desafio, né? De como que a gente forma a força de advogados populares para atuar nessas causas, né? E aí, só um parêntese, você falando dessa história de formação, a minha história de formação também vem do MST, eu sou formada em Direito pela primeira turma do Pronera, inclusive estudei com a filha do dezinho, que encampa essa luta contra a impunidade, pela ressoscialização do assassinato do pai. Então a gente vem desse escopo de formação pelo movimento social para atuar em defesa desses direitos na advocacia jurídica popular. Mas, de fato, a gente, fechando parênteses, a gente compartilha desse sentimento, não é, Carlos? Como que a gente ainda tem esse dever, essa responsabilização histórica de pautar isso dentro das universidades, para que a gente forme advogados, operadores engajados a essas causas, né? E a nossa pesquisa, ela é um esforço disso também, né? Porque o escopo também de envolver pesquisadores, universidades, para estudar a violência no campo, o massacre no campo, o tema da impunidade, ela vem também nesse lugar de formação, e de pautar a universidade para olhar e atuar também de forma engajada a essas lutas populares. Mas muito bom, muito interessante.
E aí a gente conversou com o Fon, aí o Fon disse, não, você tem que conversar com o Carlos. O Carlos que atuou, que esteve diretamente à frente, faça o convite a ele, porque ele que vai ter muitos elementos, ele com aquela sobriedade dele, né? Aí que nós, então, fizemos o contato com o Ney, o Ney passou o seu contato e a gente tá super feliz. com a sua contribuição, a ideia que essa nossa entrevista aqui ela seja transcrita, né, e que ela possa compor o relatório final da pesquisa junto com o relatório técnico que nós fizemos do caso. Aí eu também queria perguntar se você concorda, se você gostaria de ver antes o material, se você acha que tem alguma coisa mais sensível que gostaria de tirar ou pontuar? Não, não,
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Não, não, não.. Concordo inteiramente com a publicação. Faço até edições, se for necessárias. Uma coisa que eu ia te colocar, Mara, assim, eu te falei, né, que desde o dia que eu cheguei no acampamento, dia 18 de abril, eu comecei a coletar informações. Se vocês acharem esse vídeo ser útil, eu posso te mandar o que eu coletei de informações.
Mara Carvalho
Ah, legal! Nossa, Carlos, manda pra gente. Você tem digitalizado ou não?
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Eu digitei ele.
Mara Carvalho
Ah, foi. Se você quiser compartilhar, manda sim, porque daí se tiver alguma alguma questão que você não considera sensível, a gente pode usar, sim.
Carlos Guedes do Amaral Júnior
Não, você pode utilizá-lo integralmente.
Mara Carvalho
Ah, manda sim, manda pra nós que daí a gente avalia. E outra coisa que a gente vai discutir com a CPT, porque com base na nossa pesquisa, a CPT também criou uma página dentro da página da CPT Massacres no Campo. Depois a gente vai conversar também se a CPT tem interresse de publicar o vídeo áudio dessas entrevistas e subir para a página. Aí é uma outra coisa. Claro que a gente vai cortar essa parte aqui, né, Helo? Pode voltar, Lou. Mas aí caso a gente...