As vítimas do massacre sabem dos riscos que correm ao se manifestar por justiça, mas dizem que não podem se calar e vieram ao evento
“Até hoje eu me sinto fraco com a situação. Dou continuidade, mas é uma dor que não passa. Os dois jovens que morreram assassinados, eu acompanhei o crescimento deles e agora não vejo mais eles. Eu ia pedir meu afastamento como liderança, mas eu vou continuar porque eu dei a minha palavra para esses meninos, enquanto não tiver resposta não vou sossegar. Quero justiça pelo meu povo e quero saber o que aconteceu. Porque não se deve ser morto por uma coisa que a gente não cometeu. Quero justiça, quero respostas”. Esse foi o depoimento de uma das lideranças Munduruku, do rio Abacaxis, presente no 28º Grito dos Excluídos, realizado em Manaus, no dia 5 de setembro.
O Grito dos Excluídos e Excluídas é uma realização da igreja católica em conjunto com os movimentos sociais que acontece todos os anos no mês de setembro, desde 1995, e mobiliza cidadãos e cidadãs de todo o Brasil. Em Manaus, foi organizado pelas Pastorais Sociais da Arquidiocese de Manaus e a Caritas Arquidiocesana de Manaus.
Para Dom Leonardo Steiner, cardeal e arcebispo de Manaus, o evento é um importante espaço para que se manifestem “aqueles que o Estado e a sociedade não querem”, disse, citando Madre Tereza de Calcutá e falando da política de exclusão adotada pelo governo nos últimos anos.
“É preciso uma participação maior da sociedade nas decisões políticas. Nos últimos anos, temos visto a importância de termos manifestações para que as pessoas excluídas tenham de novo vez”, afirmou, lembrando dos indígenas que continuam sofrendo ataques à sua cultura e territórios desde a colonização. “Nossos irmãos indígenas estão sendo excluídos desde o início do que se chama Brasil”, destacou.
O evento faz um contraponto ao Grito da Independência do Brasil para mostrar que essa independência dos colonizadores não aconteceu para a grande maioria da população brasileira, especialmente para os povos originários que continuam sendo assassinados. O tema desse ano é, justamente, “Brasil: 200 anos de (In)dependência. Para quem?”.
Dagoberto José Fonseca, professor Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o grito de Dom Pedro I, o Príncipe do Brasil, em 1822, “independência ou morte”, foi uma farsa. “Por meio desta farsa, a ‘independência’ foi anunciada para alguns poucos, bem poucos; e a ‘morte’, para a imensa maioria da sociedade brasileira do passado e do presente”, analisa, dizendo que “em 2022, a frase é atual”, pois é a “marca simbólica do escárnio e da violência” que sofremos.
Os povos Munduruku e Maraguá, bem como os ribeirinhos moradores das comunidades ao longo dos rios Abacaxis e Mari Mari, sofreram, em 2020, as consequências dessa farsa e continuam sofrendo pelas ameaças que ainda rondam a região. Sabem dos riscos que correm ao se manifestar por justiça pelos crimes que “pessoas influentes” cometeram e que até hoje estão impunes. Mas, vieram ao Grito dos Excluídos, falaram e rezaram por suas dores e articularam seus apoiadores.
“Estamos ameaçados de morte, corremos riscos porque tem pessoas grandes envolvidas, mas não podemos parar porque se pararmos eles ficarão impunes e continuarão matando a gente”, disse uma das lideranças Maraguá mais jovens, lembrando dos pais que perderam seus filhos e dos filhos que sobreviveram. Convicta, a liderança diz que é preciso continuar porque os perigos continuam.
“Fico imaginando o quanto ele [o pai] se dedicou para ver o filho dele crescer, com o sonho de ver a família dele, com os filhos dele. E acabar assim, de uma hora para outra. Isso é uma coisa que me deixa muito sentido. E nós jovens fomos afetados também. Nós ficamos sem poder sair de nossas casas, sem poder pescar, passamos fome porque a polícia falou que a gente não poderia sair, se fossemos pego no rio, a gente ia ser suspeito. Eles derrubaram tudo, queimaram os roçados. Meu primo podia estar morto também. São coisas que nos deixam preocupado e em uma insegurança muito grande. Então há essa necessidade de olharmos uns pelos outros, olharmos como pode ficar a nossa vida, e lutar juntos para conquistar justiça”, solicitou a liderança às instituições.
O caso, a narrativa oficial e a luta pela vida
O inquérito está em andamento, mas desde que o massacre foi denunciado pelas lideranças, em agosto de 2020, não há retornos sobre como estão sendo encaminhados os processos judiciais instaurados e as investigações do massacre ocorrido nas comunidades ribeirinhas e indígenas da Terra Indígena (TI) Maraguá e Coatá-Laranjal e da região dos rios Abacaxis e Mari Mari, nos municípios de Borba e Nova Olinda do Norte, no Amazonas.
Diante da impunidade, mais de 30 organizações da sociedade civil, estimuladas pelo coletivo de organizações indígenas e indigenistas, entre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que apoia esses povos, e movidas pela força das ações conjuntas, assinaram no mês de agosto uma Carta Denúncia, que conta a história dos fatos ocorridos durante o massacre, denuncia o envolvimento, o descaso e a negligência do Estado e traz as reivindicações a serem resolvidas pelos órgãos competentes para que os criminosos sejam punidos e cessem as tensões e ameaças contra os Munduruku, Maraguá e comunidades ribeirinhas da região.
O conflito, envolvendo a Polícia Militar, resultou na morte de dois indígenas Munduruku e quatro ribeirinhos e no desaparecimento de dois adolescentes, além de tortura e perseguição de acordo com vários relatos.
Os ataques partiram de um forte contingente de policiais militares do Comando de Operações Especiais (COE), sob às ordens do comandante da Polícia Militar Ayrton Norte, do então Secretário de Segurança Pública e hoje candidato a deputado federal (Coligação União pelo Amazonas), Coronel Louisimar Bonates e do Governador do estado Amazonas, hoje também candidato à reeleição, Wilson Miranda Lima, (União Brasil). A operação aconteceu após denúncia de invasão de turistas para prática de pesca esportiva, sem o devido licenciamento dos órgãos ambientais. Entre eles, o então secretário-executivo do Fundo de Promoção Social do Governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa.
Em matéria divulgada no dia 04 de agosto desse ano, o Ministério Público Federal anuncia que requer medidas para proteção das populações da região que, mesmo dois anos após a série de violações, ainda estão vulneráveis.
Para advogada, membra do coletivo que acompanha o caso, Márcia Dias, o inquérito está correndo e que apesar de estar em sigilo, o coletivo da sociedade civil que está no apoio às vítimas está atenta aos passos que estão sendo dados. “Apesar de tudo estar em sigilo, nós continuamos aqui acompanhando junto com os grupos, fazendo essa ponte entre os grupos. Não só eu, mas todo o coletivo que se formou da sociedade civil nesse processo coletivo, que tem pessoas da área jurídica e da área social”, afirmou, comentando que a esperança é que o relatório do inquérito chegue logo às mãos do Ministério Público Federal (MPF), para que haja responsabilização dos culpados.
“Esperamos muito que chegue à conclusão o inquérito, que o delegado encaminhe o relatório para o MPF e que seja oferecida denúncia contra os possíveis responsáveis que foram encontrados durante essa apuração. Esse estágio que está aí, a gente espera que haja realmente a denúncia para que haja responsabilização”, aponta a advogada.
Márcia conta ainda, que à época, em uma tentativa de responsabilizar as vítimas assassinadas, o discurso oficial do estado do Amazonas foi de que a ação movida pela PM foi de combate ao tráfico de drogas e que os indígenas e ribeirinhos mortos eram traficantes. Mas, o coletivo pesquisou os antecedentes criminais dos jovens e nada encontrou que os caracterizassem como criminosos.
“Assim como em outras situações, a sociedade civil está acostumada a ouvir que a polícia, o Estado faz um procedimento investigativo nesses casos e que, no discurso oficial, sempre é que é um combate ao tráfico de drogas. Não foi diferente no Abacaxis. Só que nesse caso, o coletivo logo se mobilizou e investigamos os antecedentes criminais das pessoas, especialmente dos meninos Munduruku assassinados, justamente para comprovar que eles não tinham envolvimento nenhum com tráfico de drogas e para contraditar o discurso oficial. Então, buscamos os antecedentes criminais na Justiça Federal e na Justiça do Estado do Amazonas e foi comprovado que os jovens mortos não tinham nenhum antecedente criminal, não tinham nenhuma passagem pela Justiça”, afirmou.
A Carta Denúncia das organizações da sociedade civil, indígenas e indigenistas, assim como a vinda arriscada das lideranças indígenas e ribeirinhas ao Grito dos Excluídos, são tentativas conjuntas e espaços de manifestação da sociedade, como pede Dom Leonardo, para que a justiça seja feita e que o crime não fique impune. Para que esse grito ecoe e, então, o Brasil possa alcançar sua independência.
“A vida em primeiro lugar” não é apenas o lema do Grito dos Excluídos de 2022, que reuniu e uniu os oprimidos do sistema social que vivemos e de um governo genocida, mas é o grito pela continuidade da existência Maraguá, Munduruku e comunidades ribeirinhas desta parte da Amazônia.