Comunidade local teme retaliações por parte da Polícia Militar depois de relatarem assassinatos e torturas, incluindo até mesmo prender uma criança por horas dentro de um freezer ligado
Texto: IHU Online
Fotos: Divulgação | Conselho Nacional das populações extrativistas – CNS
A exuberância da natureza amazônica, que atrai turistas de toda a parte e movimenta quantias em dinheiro nada irrelevantes, contrasta com o lado obscuro de quem age fora da lei, seja para garantir a pesca esportiva, atualmente proibida devido à pandemia, seja para quem atua a serviço do narcotráfico. O drama real, no entanto, fica por conta das comunidades locais, que sofreram, nas últimas semanas, graves violações dos direitos humanos.
Entidades denunciam, em manifesto, ação violenta da PM na região do Rio Abacaxis (AM)
“O primeiro [relato] foi dos indígenas Maraguá, de que tinha passado um barco de ‘pescadores esportivos’ atirando neles. A informação veio através do Conselho Indigenista Missionário - Cimi”, conta Josep Iborra Plans, mais conhecido como Zezinho e como prefere ser chamado, da equipe da Articulação da Amazônia da Comissão Pastoral da Terra, em entrevista por telefone à IHU On-Line. “Mais tarde chegaram notícias de que o mesmo barco, que tinha prometido voltar, realmente voltou atirando nas comunidades e ameaçando os moradores. O proprietário da embarcação é um empresário e político de Manaus dedicado à pesca esportiva, dono de uma pousada em Itacoatiara. Todo mundo estava sendo visado”, complementa.
Dione Torquato, outra liderança local, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, pontuou que a região do Rio Abacaxis é uma área de risco e cujas ameaças aos moradores têm, basicamente, duas origens: “1) medo de retaliação por parte da polícia, de que a Polícia Militar volte a cometer novas violações de direitos contra as populações como vingança às denúncias feitas ao Ministério Público Federal; 2) medo de um possível ataque dos traficantes que atuam na região. Um dos motivos que levam os moradores a sentirem-se ameaçados nesse momento é a própria presença da Polícia, e os possíveis confrontos entre policiais e traficantes que podem ser entendidos, por parte dos traficantes, como possíveis denúncias dos moradores locais”, explica.
Ambas as lideranças locais são unânimes em afirmar que se trata da mais grave violação dos direitos humanos na região em mais de uma década. A expectativa, no entanto, após a visita do Ministério Público e da Polícia Federal, é que os culpados pelos crimes sejam responsabilizados. O judiciário, entretanto, move-se com lentidão e cada dia que passa aumenta o suplício dos moradores locais.
As entrevistas foram realizadas com Josep Iborra Plans, o Zezinho, integrante da Articulação da Amazônia da Comissão Pastoral da Terra – CPT, e Dione Torquato, do Conselho Nacional das populações extrativistas – CNS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os relatos de atentados que estão ocorrendo na Região do Rio Abacaxis, no Amazonas? O que as comunidades locais têm dito?
Zezinho – Têm chegado à Comissão Pastoral da Terra - CPT muitos relatos dos ocorridos em Nova Olinda do Norte, no Rio Abacaxis. O primeiro foi dos indígenas Maraguá, de que tinha passado um barco de “pescadores esportivos” atirando neles. A informação veio através do Conselho Indigenista Missionário - Cimi.
Mais tarde chegaram notícias de que o mesmo barco, que tinha prometido voltar, realmente voltou atirando nas comunidades e ameaçando os moradores. O proprietário da embarcação é um empresário e político de Manaus dedicado à pesca esportiva, dono de uma pousada em Itacoatiara. Todo mundo estava sendo visado.
O que saiu na imprensa é que posteriormente, no dia 05 de agosto, dois policiais haviam morrido no confronto com ribeirinhos da região do Rio Abacaxis. O episódio foi relacionado com o fato de que aqueles pescadores esportivos tentavam pescar sem autorização das comunidades locais, mas logo começou a se falar de um grupo de traficantes na região.
Mapa do Amazonas, destaque aos municípios de Nova Olinda do Norte, Borba e ao Rio Abacaxis, ao sudeste de Manaus
(Fonte: GuiaGeo)
IHU On-Line – Em seguida, o que aconteceu? Qual o envolvimento da Polícia Militar no caso?
Zezinho – Em seguida o governador do Amazonas, Wilson Lima, prometeu que daria uma resposta dura e iria punir quem tinha matado dois policiais e deixado outros dois feridos. O que não se sabe, até agora, é se aqueles policiais que tinham ido à região inicialmente sem farda, usando a embarcação particular da empresa de pesca de onde partiram os disparos, estavam em missão oficial ou se era uma operação de retaliação. Isso porque a comunidade não tinha autorizado a entrada dos pescadores daquela empresa.
O secretário de segurança pública do Amazonas respondeu que se tratava de uma “questão de honra”. No mesmo dia foram enviados 50 policiais, inclusive com uma voadeira (barco rápido) blindada. À frente estava o comandante geral da Polícia Militar do Amazonas, coronel Ayrton Norte.
IHU On-Line – O que se sabe até agora sobre as vítimas dos atentados?
Zezinho – Uma liderança indígena Maraguá relatou que havia sido encontrado morto um jovem da comunidade e que o irmão mais novo também havia desaparecido. A informação que chegou é que teria sido um barco com policiais que passou na região e se ouviram, primeiro, quatro tiros, depois mais dois. Quando pegaram o barco para ir à cidade procurar esses dois indígenas que haviam sumido, encontraram apenas um dos corpos, o outro continua desaparecido.
Logo depois chegou a denúncia de um presidente de associação comunitária da região, afirmando que a polícia foi buscar informações e o maltratou. Tudo isso na presença do comandante da operação, tendo, inclusive, sofrido torturas com saco plástico na cabeça. São muitos relatos, como o de uma mulher que teve gasolina despejada sobre o corpo e ameaçaram atear fogo nela. Além disso, uma criança foi colocada dentro de um freezer em funcionamento e quando a retiraram de lá ela estava quase morta congelada. Não pararam de chegar informações preocupantes, de que estava havendo torturas, junto às comunidades, com o intuito de “fazer falar”.
A polícia começou a dizer que havia traficantes na região e tentava qualquer meio para fazer as pessoas falarem. Também houve relatos de que a polícia bloqueou a entrada e saída do Rio Abacaxis e que ninguém podia passar. Aí a situação começou a ficar muito preocupante porque não se sabia o que estava acontecendo dentro da região. Apareceram notícias de que havia 12 mortes, mas depois a polícia reconheceu a morte de uma única pessoa.
IHU On-Line – Qual tem sido o papel do Ministério Público no caso?
Zezinho – Foi criada uma missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos para esclarecer o que estava acontecendo. O Ministério Público Federal relatou ter recebido, também, muitas denúncias de torturas, recolhimento de celulares, invasão das casas sem autorização, que entravam nas áreas indígenas. Enfim, muitas irregularidades.
Finalmente, a pedido do Ministério Público Federal, a Polícia Federal foi enviada à região. Depois, também, foi enviada a Força Nacional. A operação continuou e muitas pessoas foram presas.
Há relato de que três pessoas da mesma família – um casal e um filho adolescente – estavam desaparecidas. Depois vieram informações de que seus corpos haviam sido encontrados próximos a uma aldeia indígena. Os corpos passaram muitos dias lá sem que ninguém fosse recolher. Somente quando a Polícia Federal chegou na área é que foram retirar os corpos, há dias dentro do rio. Uma quarta pessoa deste grupo, chamada Admilson, também permanece desaparecida.
O fato é que todas as comunidades e famílias da região foram vasculhadas, ameaçadas, intimidadas e muitos desses fatos ainda estão sendo comprovados pela Missão de Direitos Humanos que foi à região e pelos representantes da sociedade civil e Ministério Público que os acompanharam.
O que tem acontecido em Nova Olinda pode ser a maior violação dos Direitos Humanos no Brasil nos últimos dez anos.
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IHU On-Line – Quais comunidades na região do Rio Abacaxis vêm sofrendo ataques?
Dione Torquato – Na região do Rio Abacaxis as comunidades que vêm sofrendo ameaças são: 1) Vila Abacaxis, 2) Tumbira 1, 3) Guajará, 4) Nova Esperança, 5) Pilão, 6) Barra Mansa, 7) Novo Peixinho, 8) Paricá, 9) Monte Horebe, 10) Axinim, 11) Pedral, 12) Camarão, 13) Tucumã. Essas comunidades fazem parte do Projeto de Assentamento Extrativista - PAE Abacaxis 1 e 2. E estão sob jurisdição da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis - Anera. Outras comunidades que também sofreram violências são as aldeias: 1) Terra Preta (Nova Olinda do Norte), 2) Terra Preta (Borba) – onde aconteceram os atentados ao povo Maraguá. Estas comunidades estão sob jurisdição da Associação do Povo Indígena Maraguá - Aspim.
IHU On-Line – Quais são os relatos de violência que aparecem por parte dos moradores?
Dione Torquato – Os principais relatos são de possíveis homicídios, torturas, invasões das casas. Segundo informações levantadas, os policiais chegaram nas casas sem uniforme, sem mandado de busca ou vistoria, entrando nas casas e ameaçando as pessoas. De acordo com relatos dos moradores, houve gente que ficou doente e começou a passar mal após as invasões da polícia nas residências.
Casas arrombadas
IHU On-Line – Quais são as principais preocupações dos moradores locais?
Dione Torquato – Por ser uma área de risco, os moradores locais sofrem, principalmente, dois tipos de ameaças: 1) medo de retaliação por parte da polícia, de que a Polícia Militar volte a cometer novas violações de direitos contra as populações como vingança às denúncias feitas ao MPF; 2) medo de um possível ataque dos traficantes que atuam na região. Um dos motivos que levam os moradores a sentirem-se ameaçados nesse momento é a própria presença da Polícia, e os possíveis confrontos entre policiais e traficantes que podem ser entendidos, por parte dos traficantes, como possíveis denúncias dos moradores locais. Algo que não é constatado até o momento.
IHU On-Line – Como têm sido as últimas semanas na comunidade?
Dione Torquato – Desde que houve os atentados, o clima é de muita tensão. Os moradores temem por sua segurança no local. Um dos relatos que expressam isso são que as famílias estão sem conseguir dormir direito nas comunidades, agrupando-se em coletivos para passarem a noite juntos, com medo do que pode acontecer com eles.
IHU On-Line – Antes dos últimos atentados, já havia ocorrido algo semelhante na região?
Dione Torquato – Conforme relatos dos moradores locais, não se tem registro de nenhum fato parecido com isso na região em outros momentos.
Para nós dos movimentos sociais que estamos acompanhando o caso baseados nas denúncias feitas pelos moradores locais, estas violações de direitos são as piores dos últimos dez anos no país. Não temos como fazer nenhuma afirmação ou acusação porque a apuração dos casos segue sob sigilo, mas o que podemos dizer é que os relatos colhidos com depoimentos locais apontam uma situação muito difícil de violação de direitos dessas populações locais no Rio Abacaxis.
IHU On-Line – O que as populações locais esperam das autoridades? Têm medo de novas retaliações?
Dione Torquato – As populações locais esperam por justiça, que o fato seja investigado e que os culpados paguem pelos crimes contra os direitos das populações tracionais da região. As comunidades também esperam que o governo dê segurança às populações, e não que o Estado seja o principal culpado pelas violações dos direitos destas populações. Os movimentos sociais, a sociedade, o Ministério Público Federal e as populações esperam que estes acompanhem o caso e ajudem as famílias na busca pela proteção dos seus direitos.
IHU On-Line – Quais são as reivindicações dos moradores locais?
Dione Torquato – Entre as principais reivindicações feitas pelas comunidades locais, está a saída da Polícia Militar do Rio Abacaxis. Isso porque entendem que a polícia é uma das principais investigadas. Além disso, reivindicam a proteção às testemunhas, o acompanhamento psicológico das famílias e o prosseguimento das apurações e investigações.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Dione Torquato – O Conselho Nacional das populações extrativistas - CNS, junto aos conjuntos das entidades Comissão Pastoral da Terra - CPT, Conselho Indigenista Missionário - Cimi, Universidade Federal do Amazonas - Ufam, entre outros, têm apoiado as famílias locais no sentido de cobrar apuração dos casos.
Queremos que o caso seja apurado e os culpados, punidos criminalmente. Não podemos aceitar que fatos como este, de extrema violação de direitos, tornem-se algo rotineiro no Estado. O Estado, que deveria garantir o direito dessas populações, não pode ser o opressor dessas populações. Os movimentos sociais vão acompanhar o caso, tomando todas as medidas necessárias para que isso seja apurado o mais breve possível.