Esta é a primeira reportagem de uma série de quatro matérias sobre o rio Teles Pires. As ameaças, os conflitos e ações de resistências no rio mais impactado por hidrelétricas na Amazônia serão os principais pontos abordados nestes materiais. Abrindo a série ‘A morte anunciada de um rio’, esta matéria traz este histórico de violações e aborda o que está sendo feito hoje para impedir este contexto de violências, traçando um paralelo com a obra do escritor Gabriel Garcia Márquez, ‘Crônica de uma morte anunciada’.
Por Allan Gomes / fotos: Caio Mota e Juliana Pesqueira – Proteja Amazônia
Esta matéria foi publicada pelo Le Monde Diplomatique e produzida em parceria com o Coletivo Proteja Amazônia.
O rio Teles Pires está morrendo. Tal como Santiago Nasar, personagem principal do livro “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez que tem sua morte decretada no início da obra, o destino deste rio formador da bacia do Tapajós e um dos principais afluentes do rio Amazonas já está anunciado desde o ciclo desenvolvimentista da ditadura militar, que trouxe para a Amazônia diversos projetos de infraestrutura, sobretudo de hidrelétricas, que agora, décadas depois mostram-se devastadores em seus impactos. O rio Teles Pires, é hoje o mais impactado por barragens na Amazônia, e por muito tempo sofreu com o descaso do Estado frente ao projeto desenvolvimentista incorporado por todos os governos da ditadura até hoje. Agora, uma ação dos atingidos pelas barragens junto ao Ministério Público Federal (MPF) começa a preencher uma lacuna de negligências e busca responsabilizar os crimes cometidos nos s últimos anos.
O cenário que envolve a política energética do Brasil, tem suas raízes fincadas na ditadura, pois o planejamento e construção de hidrelétricas consiste em uma das principais heranças deste período, que apresenta um quadro grave de violações dos direitos humanos e da biodiversidade até os dias atuais. O inventário do potencial energético do rio Teles Pires foi feito no bojo da exploração patrocinada pelos militares, em 1980.
García Marquez lançou, em 1981, o livro “Crônica de uma morte anunciada”, onde conta a história do assassinato de Santiago Nasar, informação revelada na primeira frase do livro. Usando de técnica narrativa que reproduz o estilo jornalístico, o narrador coleta depoimentos de todos da cidade, que estão ansiosos por falar sobre o crime que todos sabiam que iria acontecer, mas ninguém fez nada para evitar. Também nos anos 1980, foi realizada a construção da usina hidrelétrica de Balbina, na região nordeste do Amazonas, que se tornou símbolo dos devastadores impactos ambientais que esse tipo de empreendimento trazia para a região e pôs em xeque a ideia de que hidrelétricas produzem energia limpa. Após Balbina, por 20 anos os projetos hidrelétricos para a Amazônia foram deixados de lado, até o início da construção das usinas de Belo Monte, no Pará, e Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, que logo nos primeiros anos se mostraram tão danosas quanto o projeto dos anos 1980.
Em 2008, com as obras da usina de Belo Monte já iniciando, os estudos para a construção das usinas no rio Teles Pires tiveram início, e assim como no livro de García Marquez, era de conhecimento de todos que os impactos ambientais são danosos a ponto de determinar a morte do rio. Muitos são os registros e testemunhas, mas ainda assim pouco ou quase nada se fez para impedir. Apenas na região do rio Teles Pires e por toda a bacia do Tapajós, estão planejadas 29 grandes usinas e 80 pequenas barragens. Cerca de um milhão pessoas, que vivem na região incluindo 10 nações de povos originários serão diretamente impactadas.
As hidrelétricas de Sinop, Colíder e Teles Pires foram construídas entre Sinop, Cláudia, Colíder, Alta Floresta, Paranaíta, Itauba e Nova Canãa do Norte todos no estado de Mato Grosso. Já a usina de São Manoel está situada na divisa entre os Estados do Pará e Mato Grosso, nos municípios de Jacareacanga (PA) e Paranaíta (MT). O primeiro desses projetos a ser concluído foi a usina hidrelétrica (UHE) Teles Pires, projetada para produzir 1.800 megawatts, energia suficiente para abastecer uma população de 13,5 milhões de habitantes, e que teve a construção iniciada em 2014. Vários dos erros cometidos pelo restante das hidrelétricas da região foram vistos durante a construção desta UHE, como a ausência de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas afetados, conforme determina a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Em seguida, a UHE São Manoel foi o segundo dos projetos a ser executado, com capacidade estimada de 746 MW/h, foi construída no limite da terra indígena Kayabi, a poucos minutos de várias aldeias, suas obras iniciaram também sem respeitar a convenção 169 da OIT e sem a conclusão dos estudos de impacto. As UHE Teles Pires e São Manoel, na região do baixo Teles Pires, foram objeto de quinze Ações Civis Públicas, propostas pelo Ministério Público Federal (MPF) durante sua implementação.
As usinas de Colíder (342MW/h) e Sinop (462 MW/h), ambas na região do médio Teles Pires, foram as últimas a serem concluídas do complexo de quatro hidrelétricas instaladas no rio Teles Pires, e a partir de 2019 todas passaram a operar simultaneamente.
Alguns dos efeitos, e consequentes impactos associados às barragens, são as mudanças nas propriedades físico-químicas e biológicas dos rios, a diminuição de populações e do número de espécies, sobretudo de peixes, o desmatamento de grandes áreas, a proliferação de vetores de doenças, o deslocamento compulsório de milhares de pessoas por conta da formação dos reservatórios, alterações das densidades demográficas das regiões onde as obras são implantadas, o aumento da incidência de doenças e o aumento da violência nos municípios, entre muitos outros.
A velocidade do processo de construção das quatro usinas do rio Teles Pires impressiona: entre dezembro de 2009 e novembro de 2011 foram emitidas todas as licenças prévias. O processo de licenciamento de todas foi problemático, pois em algum momento do processo todas as UHEs tiveram suas licenças suspensas por mais de uma vez. Talvez seja decorrente disso uma série de erros e atropelos nos processos de planejamento, licenciamento ambiental e implantação das UHEs Teles Pires e São Manoel têm se destacado. O papel desempenhado por um processo de licenciamento apressado na morte do rio Teles Pires, corresponde ao dos habitantes que sabiam da morte de Santiago Nasar, divulgavam essa informação, mas não eram capazes de parar a trama do assassinato.
Histórico
A ocupação da região remonta a milhares de anos antes da invasão portuguesa, como apontam estudos arqueológicos, e indicam uma extensa rede de trocas e comunicação, por toda a bacia do Tapajós, chegando aos rios Teles Pires e Juruena.
Os povos Kayabi, Apiaká e Munduruku atualmente vivendo nas margens do rio Teles Pires são remanescentes desse período. Ao longo dos séculos XIX e XX, com a intensificação do contato, a dinâmica dos povos indígenas da região foi fortemente afetada. Nos anos 1960 e 1970, com o agravamento dos conflitos e a operação Kayabi, dos sertanistas Orlando e Claudio Villas-Bôas (1960 e 1966), houve a retirada dos indígenas de seu território original, onde eram ameaçados por seringalistas, e os deslocou para o Parque Indígena do Xingu.
Em 1987, um grupo de Kayabi retornou ao Alto Tapajós, e se fixou no baixo Teles Pires em um processo que culminou na demarcação da Terra Indígena Kayabi, hoje ocupada pelas três etnias. Com o início dos estudos para implementação dos projetos das hidrelétricas, o modo de vida dessas comunidades passa a sofrer forte impacto decorrente das falhas e atropelos dos processos referentes aos projetos hidrelétricos.
Não é apenas o tipo de projeto perpetrado pelo complexo de hidrelétricas que conta com a morte do rio Teles Pires. O projeto mais ousado de hidrovia do Brasil, para ampliar o escoamento de grãos do setor do agronegócio para o exterior, é a “Hidrovia Teles Pires Tapajós”. Uma ação que depende da construção de mais hidrelétricas ao longo do rio, que era conhecido por suas corredeiras e cachoeiras e que está se tornando um grande lago. Os projetos de infraestrutura construídos no Teles Pires somados com os projetos previstos para região do rio Juruena são a porta de entrada para as grandes hidrelétricas no Tapajós. Mostrando assim, que o assassinato de um rio necessita de muitos algozes.
Cúmplices: mineração e hidrelétricas
Que estratégia impulsiona o avanço de projetos de inúmeras hidrelétricas em uma região de baixa atividade industrial, com custos econômicos elevados e pouco retorno, e danos ambientais devastadores? No rastro da construção das hidrelétricas na Amazônia numerosos projetos de infraestrutura aguardam para serem executados, contando com os avanços proporcionados pelas barragens sobre direitos, rios e florestas. Exemplo disso é a instalação de projetos de mineração em dobradinha com áreas já afetadas por barragens de hidrelétricas.
A exploração ilegal de ouro dentro dos territórios indígenas é um dos principais causadores de conflitos na região. Um processo de exploração feito por pequenos e médios garimpeiros. A possível legalização do garimpo em Terras Indígenas, uma proposta do Governo Bolsonaro que tramita no Congresso Nacional, a PL 191/2020, pode ampliar a escala da exploração de minérios e a destruição por completo do rio Teles Pires. A maior mina de cobre do Brasil está na região e grandes empresas canadenses já buscam há anos explorar calcário dentro dos territórios indígenas.
No norte do Mato Grosso, o primeiro projeto de médio porte para a geração de energia nas águas da bacia do Alto Tapajós, na Amazônia, foi a usina Dardanelos, em Aripuanã. Construída em 2008, tem capacidade para menos de 100 Mw/h, e gerou inúmeras polêmicas durante o licenciamento, impactando terras indígenas e o meio ambiente. Dez anos depois, a cidade que é uma das mais isoladas do Mato Grosso, viu chegar o Grupo Nexa (antigo Votorantim Metais) com uma planta industrial de mineração que deve aproveitar a geração de energia da usina para a extração.
O planejamento comum entre projetos hidrelétricos e de mineração não é algo inédito na região, tal qual os ‘crimes de honra’ que levaram à morte de Santiago Nasar, a morte do rio Teles Pires pode entrar na triste conta de uma tradição que enreda suas vítimas, testemunhas e algozes sem que se pare para verificar racionalmente os porquês daquele destino.
A relação entre barragens hidrelétricas com a exploração mineração de escala industrial na região será aprofundada em um texto futuro desta série.
O discurso difere da prática: estatal francesa EDF
A Amazônia é foco de interesse em escala mundial devido ao comprovado valor ambiental para o planeta. Não à toa, no último ano com o assustador aumento das queimadas na região derivado do desmatamento ilegal, o governo brasileiro foi fortemente cobrado pelo desmonte das políticas ambientais no país com consequências agudas para a região. Um dos maiores críticos dessa postura do governo Bolsonaro foi o presidente francês Emanuel Macron, que fez críticas duras sobre a condução da crise.
No entanto, ao adotar um discurso a primeira vista ambientalista, o presidente francês ignorou as relações de exploração, sobretudo na calha do rio Teles Pires, onde a estatal francesa EDF controla a hidrelétrica de Sinop um dos empreendimentos que mais contribui para a emissão de gases de efeito estufa do complexo de hidrelétricas da região, além de violar direitos de assentados, pescadores e moradores da região onde está localizado o empreendimento. A despeito do lugar-comum sobre hidrelétricas produzirem energia limpa, já comprovado cientificamente como equivocado, a construção dessas obras é porta de entrada para projetos que intensificam a degradação ambiental.
E assim como a crônica da morte anunciada ao qual fazemos paralelo ao longo desse texto é narrada com fragmentos de memória que influenciam a forma como conhecemos a história, o discurso ambientalista presta-se às conveniências políticas e de imagem, mas sem efetivamente influenciar nos destinos dos atingidos pela fatalidade.
O descompasso entre o discurso do governo francês e a atuação da EDF será explorado ainda em um dos textos da nossa série.
Os Munduruku tentam avisar
A construção de duas usinas destruiu importantes locais sagrados do povo Munduruku e de outros povos que vivem na região. Karobixexe, o nome indígena para a cachoeira “Sete Quedas” conhecida pelo povo munduruku como, “a casa sagrada”, local de moradia dos antepassados. Dekuka’a era o local da “mãe dos animais”, conhecido como Morro dos Macacos. Ambos foram totalmente destruídos com a construção das usinas de Teles Pires e São Manoel, respectivamente.
Revoltados com a violação, os indígenas ocuparam o canteiro de uma das hidrelétricas em 2017, com o intuito de recuperar suas urnas funerárias recolhidas durante a construção das barragens. Há anos os indígenas reivindicam que seus objetos sagrados, retirados sem permissão pela Companhia Hidrelétrica de Teles Pires (CHTP), sejam devolvidos ao povo Munduruku. Doze urnas funerárias ficaram sob a posse da CHTP desde 2014. A procuradoria da República em Mato Grosso, em 2015, recomendou que as urnas deveriam ser mantidas pela CHTP até que as lideranças indígenas junto da FUNAI e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) definam um local para elas serem guardadas. Desde fevereiro de 2017, as urnas funerárias do povo Munduruku estiveram no Museu de História Natural, do município de Alta Floresta (MT).
Durante a primeira ocupação do canteiro de obras da UHE São Manoel, em 2017, os munduruku divulgaram carta enunciando a importância das urnas para eles: “Somos feitos do sagrado! Esse local é sagrado porque aqui quando o mundo estava se formando karosakaybu fez Karobixexe, Dekoka’a e Dajekapat. Nós pajés vemos e ouvimos nossos antepassados se manifestando e cobrando de nós porque suas moradas não existem mais. As urnas devem ser devolvidas e não ficar com os pariwat. Nós vamos escolher um novo lugar para elas. Nós munduruku somos feitos do sagrado e vivemos do sagrado e nós pajés ajudamos o povo a seguir no seu caminho”.
No final de 2019, os munduruku recuperaram as urnas funerárias em uma ação mobilizada pelos pajés para recolocar os artefatos em local direcionado pelos espíritos dos antepassados. O número de sítios arqueológicos encontrados nos levantamentos das quatro hidrelétricas comprova a importância e vulnerabilidade deste território. Durante os estudos da UHE Teles Pires foram coletados 297 mil artefatos entre fragmentos cerâmicos e material lítico. Os estudos da UHE São Manoel detectou mais 200 mil artefatos.
Desde o início do processo de estudos para a implementação das obras hoje em funcionamento, os indígenas munduruku recusaram-se a fazer parte do processo apontando diversas falhas nos procedimentos, e fazendo-se representar por meio de protestos, cartas e auto-organização. Assim como a personagem de Garcia Marquez, nunca houve morte mais anunciada do que a do rio Teles Pires
Agora o MPF investiga
Após alguns anos e mobilizações sobre o crime anunciado, é em um contexto de desesperança que os atingidos pelas barragens nas comunidades indígenas, em assentamentos, ribeirinhos, e as populações que dependem do rio para seu sustento, veem como uma nova etapa na luta contra a violação de seus direitos, a atuação do Ministério Público Federal que inicia a coordenação de um processo de inspeção integrando diversos órgãos.
Entre os dias 2 e 6 de março de 2020, foi realizada a primeira etapa da inspeção integrada de impactos causados pelo conjunto de grandes hidrelétricas construídas no rio Teles Pires. O trabalho é coordenado pelo procurador da república no Mato Grosso, Erich Masson, em conjunto com Felício Pontes Júnior, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF e dos promotores de Justiça Marcelo Vacchiano e Ana Peterline, do Ministério Público do Estado do Mato Grosso. As atividades de inspeção pretendem levantar os impactos cumulativos e sinérgicos causados pelas quatro barragens do complexo de Teles Pires.
Durante a primeira etapa, uma equipe de especialistas percorreu a região do baixo Teles Pires, na Terra Indígena Kayabi, onde vivem indígenas das etnias Kayabi, Munduruku e Apiaká. Com foco na escuta das comunidades e nos problemas que estão sendo vivenciados pelos impactos provocados pelas hidrelétricas foi realizada, no dia 3 de março, uma assembleia na aldeia Teles Pires com presença do procurador da república Erich Masson, que coordena as atividades da inspeção. Dentre as falas ouvidas em todas as comunidades, o aspecto de segurança alimentar é o que mais se destaca, com a sensível diminuição do número de peixes e quelônios no rio Teles Pires.
A preocupação com o aspecto alimentar também esteve presente na fala do procurador Erich Masson: “Sem dúvida a questão alimentar é extremamente importante porque todo mundo precisa de alimento e os indígenas que dependem de caça e pesca, se houver diminuição das populações desses animais, não conseguirão se alimentar”.
Com a participação de peritos especialistas em diversas áreas como ictiofauna, quelônios, água, espera-se que os resultados dos estudos sirvam como subsídio para a tomada de medidas de proteção socioambiental das populações atingidas. Informações decorrentes das análises dos documentos produzidos por conta dos licenciamentos das usinas, com pareceres técnicos de especialistas, apontam limitação espacial e temporal dos estudos apresentados para dar respostas para a mitigação dos impactos.
Para grandes empreendimentos hidrelétricos em grandes rios da Amazônia, o estudo prévio é extremamente necessário para entender o funcionamento da bacia de drenagem e do local onde será o empreendimento. A falta de conhecimento na maior parte dos rios brasileiros, em especial os de corredeiras do planalto central dificultam estudos de avaliação rápida. Porém, essas são as regiões mais visadas para a construção de empreendimentos hidrelétricos. Essas grandes ações antrópicas vão levar com certeza a perda não somente de peixes, mas também de toda grande parte da fauna e flora que ocorrem nesses locais.
Um exemplo é o desconhecimento sobre a fauna de peixes do rio Teles Pires. Para várias espécies há dúvidas nas suas identificações, várias outras espécies são indicadas como espécies desconhecidas para a ciência. Todos esses fatores de identificação comprovam que a bacia do rio Teles Pires, além de desconhecida é uma importante zona de ocorrência de espécies únicas, só encontradas na região.
Impactos descritos nos estudos de licenciamento foram ignorados durante a construção das barragens, ou não compensados/mitigados corretamente. Regulação do fluxo de água, retenção de sedimentos e nutrientes nas barragens, obstrução de cardumes de peixes migradores, extirpação de populações de peixe que migram durante a reprodução nas áreas diretamente afetadas, diminuição ou eliminação de pulsos de inundação nas planícies posteriores aos reservatórios, reduzindo a produtividade do sistema, são vários dos problemas conhecidos que não tiveram soluções encaminhadas.
Nos próprios Estudos de Impactos Ambientais (EIAs) das UHE Teles Pires e São Manoel, os autores relatam: “realisticamente não existe mitigação possível para alguns dos impactos, particularmente no caso de grandes empreendimentos hidrelétricos, os mesmos devem ser estudados para que os riscos associados sejam considerados ao longo de toda a bacia de drenagem”.
Portanto, a necessidade de uma reavaliação, a partir do trabalho agora iniciado é a única forma de responsabilizar empreendimentos e governos pelos crimes cometidos e que pode possibilitar a mitigação de parte dos impactos negativos, com o aumento da informação disponível, para subsidiar programas de manejo e o correto dimensionamento, projeção e instalação dos empreendimentos hidrelétricos.
“A fatalidade faz-nos invisíveis”
As atividades da inspeção são uma reivindicação dos atingidos pelas usinas. Dossiês de denúncia, representações e atividades de monitoramento independente de impacto vêm sendo realizadas pelas comunidades desde o início da implementação das quatro usinas. A produção desses materiais e as manifestações dos atingidos por meio de cartas e mobilizações têm sido divulgadas na imprensa ao longo da última década. Além disso, os atingidos também participaram da produção de um documentário, com o título “O complexo”, em 2016, onde já apontavam os impactos sinérgicos das quatro usinas.
São esses atingidos mobilizados que têm se esforçado para que o rio Teles Pires não se torne um imenso cemitério aquático com a única função de garantir atividades econômicas que geram apenas degradação para a região e as populações dependentes do meio ambiente.
Assim como no livro de Gabriel García Marquez, os personagens estão dispersos em uma região considerada perdida no tempo, e essas testemunhas estão desaparecendo pelo silenciamento de suas vozes e o descaso estatal. O crime que foi anunciado no passado, no entanto, continua a repercutir no estado atual das pessoas e continuará remodelando o seu curso no futuro, se não puder ser demonstrado ou interpretado no presente.
Há um discurso oficial de que tudo é obra do destino, e das necessidades econômicas, e essa justificativa age como um alívio coletivo da culpa. Sendo assim, o peso moral de terem sido omissos na morte de Santiago Nasar, e do rio Teles Pires, acaba tendo a justificativa que atenua e absolve a todos, governo e interesses econômicos.