Membros das mais de trinta comunidades quilombolas de diversas cidades do Maranhão, que ocuparam a Estrada de Ferro Carajás (EFC), no final do mês de setembro, concederam entrevista coletiva aos veículos de imprensa do Estado no último dia 2 de outubro, na Sede da Comissão Pastoral da Terra Regional Maranhão (CPT).
(reportagem é de Cláudio Castro, publicada pelo Semináio Carajás 30 anos)
Além dos quilombolas, dos membros da CPT e dos advogados que prestaram assessoria jurídica às comunidades, participaram também da coletiva representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que falaram da luta conjunta das populações tradicionais do estado na defesa de seus territórios.
No encontro, foram denunciadas as violações de direitos de que vêm sendo vítimas por parte do aparato do Estado e por grandes corporações que atuam no Maranhão, com destaque para as envolvidas na cadeia da mineração. Eles falaram sobre o porquê de ocupar a ferrovia para chamar atenção às suas reivindicações, detalhando a pauta que fora negociada com o Governo Federal para desocupação da EFC, que passou cinco dias, de 23 a 27 de setembro, interditada pelas comunidades quilombolas de cidades como Itapecuru-Mirim, Anajatuba, Santa Rita e Miranda do Norte.
Jornalistas de vários órgãos de comunicação da capital maranhense puderam ouvir, então, “o outro lado da história”. Isso porque a mineradora Vale, uma das maiores anunciantes da imprensa maranhense (rádio, TV, impressos e Internet), é beneficiada por uma autocensura aplicada por esses órgãos. Com a ocupação da ferrovia, os trabalhadores da imprensa compareceram à coletiva, e assim ouviram dos próprios membros das comunidades a realidade dos impactos causados pela mineração e pelo agronegócio nos territórios.
Eles foram então apresentados a informações que são, em geral, ocultadas, como o fato de mais de uma centena de comunidades sofrerem impactos diretos das atividades da Vale em solo maranhense, o que se intensificou depois que a empresa iniciou a duplicação da ferrovia, e isso sem proceder os estudos de impacto ambiental da duplicação: em vez deEstudo de Impacto Ambiental ou Relatório de Impactos ao Meio Ambiente (EIA/RIMA), o que a empresa tem apresentado é o Plano Básico Ambiental (PBA), menos abrangente e que não dá a dimensão do que provoca, nas comunidades, uma obra dessa natureza. Além disso, das mais de cem comunidades impactadas, a Vale reconhece apenas 14.
Aumento no número de conflitos por terra
Vários dados apresentados alarmaram os presentes à coletiva. Entre estes, o citado pelo padre Clemir Batista, da CPT, segundo o qual, somente em 2013, houve 150 conflitos por disputa de terra no Maranhão. Desses, 64 em áreas de quilombos, ameaçadas por fazendeiros e grileiros, favorecidos pela presença de empresas como a Vale na região. Clemir anunciou que 21 lideranças quilombolas estão atualmente ameaçadas de morte.
Pauta de reivindicações negociada com o governo
Segundo Diogo Cabral, assessor jurídico da CPT, a pauta de reivindicações apresentada ao governo federal avançou após a ocupação da EFC. Os quilombolas somente desocuparam a ferrovia após a presença, no local do protesto, de uma equipe interministerial enviada por Brasília para iniciar as negociações. Ao chegar ao Maranhão, a equipe do governo federal trouxe diversos itens já encaminhados, e outros com prazo definido para serem atendidos.
Territórios como Charco e Santa Rosa agora estão com prazo para que os decretos de sua titulação final sejam publicados em 30 de novembro deste ano. No Maranhão, mais de 400 territórios já foram reconhecidos pela Fundação Palmares (órgão do Governo Federal a proceder a certificação, advinda do auto-reconhecimento da população de uma área como sendo território quilombola. Estes são os primeiros passos para que uma comunidade receba a titulação de seu território, concedida, ao final, pelo Incra). Estima-se que o número de comunidades quilombolas no Estado chegue a 800. Portanto, apenas cerca da metade estão com os processos de titulação iniciados e muito poucos são os que foram concluídos.
Durante o protesto na EFC, os quilombolas questionaram a morosidade para a titulação dos processos que já estão no Incra, há anos sem serem concluídos. Segundo eles, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária alega a falta de pessoal e estrutura para proceder a tarefa, o que é contestado pelos quilombolas: “quando é para as empresas o governo trabalha de forma ágil, e quando é pra nós nunca tem estrutura, nunca tem pessoal”, questionavam durante a ocupação.
Uma das exigências das comunidades é que esse processo de titulação seja retomado. Para Clemir (CPT), “A lógica do governo, que privilegia o agronegócio, por exemplo, faz emperrar os processos de reconhecimento dos territórios”, aponta.
Indígenas também na luta
Presente à entrevista coletiva, Meire Diniz, do Cimi, falou sobre os pontos em comum das lutas e mobilizações entre os povos indígenas do Maranhão e as comunidades quilombolas.
Não raro, as ações de resistência e denúncia de suas situações, coordenadas entre indígenas e quilombolas contam, também, com a participação de grupos de camponeses, igualmente vítimas da concentração de terras, do agronegócio e dos ditos grandes projetos de desenvolvimento, que poucos benefícios geram para as comunidades e que muitos impactos causam aos seus modos de vida. Para ter uma ideia, é ao longo da Estrada de Ferro Carajás a região com menor índice de desenvolvimento humano do Maranhão, segundo denunciaram os representantes dos povos tradicionais durante a entrevista.
Meire destacou que a luta contra a Proposta de Emenda Constitucional Número 215 une as lutas quilombola eindígena. A PEC 215/2000 pretende transferir do Governo Federal para o Congresso Nacional a demarcação das terras indígenas. Acontece que, se com o Executivo os processos de demarcação já são emperrados, transferir essa competência para o Legislativo poderá significar o fim das demarcações de territórios indígenas e quilombolas, haja vista o poder que bancadas como a ruralista dispõem nas Casas Legislativas. “Isso impacta não apenas os territórios quilombolas, mas também os indígenas, bem como áreas de preservação ambiental”, disse Meire.
Ela citou como exemplo de ataques sofridos pelos indígenas a recente anulação, por um órgão do Supremo Tribunal Federal (a Segunda Turma do STF), da Portaria do Ministério da Justiça que declara a terra indígena Porquinhos como de posse permanente do grupo Canela-Apãniekra. Para os defensores dos direitos indígenas, a anulação abre um precedente perigoso que poderá atingir outras áreas demarcadas. A decisão do STF escora-se no julgamento da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, segundo a qual área anteriormente demarcada não pode ser ampliada. Acontece que Porquinhos já é de posse do povo Canela, e a decisão pode abrir as portas para a entrada de fazendeiros e grileiros na área.
A decisão foi dada em resposta ao Recurso de Mandado de Segurança, impetrado pelos municípios maranhenses de Fernando Falcão, Formosa da Serra Negra e Barra do Corda. Não é raro que prefeituras representem os interesses do agronegócio em área de conflitos com povos tradicionais. A decisão do STF vai ao encontro do que espera a bancada ruralista no Congresso Nacional, que busca abrir precedentes desse porte para barrar as demarcações de terras ocupadas por povos tradicionais no Brasil.
Em razão de os ataques atingirem vários grupos, “a mobilização, portanto, também é conjunta, pois ataques a direitos afetam a todos, tanto comunidades quilombolas quanto indígenas”, pontuou Diogo Cabral, quer alertou: “Quilombolase indígenas estão sendo exterminados!”.
Segundo ele, esses ataques não afetam apenas aos povos atingidos diretamente, mas afetam o Maranhão, já que a preservação desses territórios implica na preservação de tudo o que neles há: “Rios, cerrados, terras e nascentes estão nesses territórios. A gente acaba não fazendo as relações, por exemplo, entre falta d’água e outras dificuldades que vão aparecendo com os ataques a essas áreas. Mas preservar os territórios e os direitos de suas populações é, também, preservar o Maranhão e o meio ambiente”, refletiu.
Afinal, por que a ferrovia da Vale foi interrompida?
Anacleta Pires da Silva, da comunidade Santa Rosa dos Pretos, da cidade de Itapecuru-Mirim, tratou de responder em profundidade a essa questão: “Essa resposta poderia estar em cada maranhense, em cada brasileiro, que não tem consciência daquilo que representa essas empresas para a nossa gente. Não estamos na ponta: estamos na raiz de tudo isso. Elas causam dano não só para nós, quilombolas e indígenas. Eu gostaria que o Maranhão, o Brasil e o mundo tomassem consciência, enquanto seres humanos que todos somos. Nós quilombolas também passamos por fases: já ouvimos demais. Ouvimos que cansamos. E hoje, o fechar da ferrovia, esse dragão perigoso que está aí, que para muitos vale, mas para nós não vale. Ela (a empresa) está no mundo todo (por isso seria bom que todos tomassem consciência). Clamamos para que os outros se sensibilizassem dessa situação. Não somos vândalos. Estamos é sentindo os danos. A nossa luta é junto com os companheiros indígenas, porque o nosso sofrimento não é diferente, até porque eu também me acho índio. Não tem o artigo 5º da Constituição Federal que diz que todos nós somos iguais perante a lei? Então que se cumpra a Constituição (e as corporações não sejam tratadas de modo diferente, com privilégios). Estamos aqui não só por Santa Rosa, mas pelo Maranhão, pelo Brasil, pelo mundo! E esse discurso de desenvolvimento não nos contempla!”, desabafou.
Sislene Silva, da Rede Justiça Nos Trilhos, complementou, exemplificando de quais formas esse discurso do desenvolvimento, encampado pelas empresas e pelo estado, tem impactado as comunidades: “Tem afetado os direitos humanos dessas comunidades, o direito de ir e vir, tem causado o atropelamento de pessoas, alterado modos de vida e a produção social das comunidades. A Vale, por exemplo, nunca reconheceu que causa esses impactos, mas na Justiça Federal há três ações civis públicas por conta da violação de direitos pela presença dos trilhos da EFC, situação que só se agrava com a duplicação que vem sendo feita sem que se realizem os estudos de impacto adequados, sem EIA/RIMA, apenas com PBA”, detalhou.
As comunidades suspenderam a ocupação, mas aguardam o prazo que foi dado às autoridades para atender suas reivindicações. Caso estas não sejam observadas a contento, respeitando-se o direito de existência dessas populações, elas se mostram dispostas a, juntas, montar suas barricadas novamente, conscientes da defesa intransigente de seus direitos.