Na noite de sábado, 24 de junho, a mesa “Impactos e conflitos socioambientais pela água” encerrou as atividades da II Tenda Multiétnica – Povos do Cerrado, realizada de 20 a 24 de junho durante o 19º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), na cidade de Goiás. Na atividade foi lida, ainda, a Carta Final da Tenda. Confira ao final da matéria o documento.
(Cristiane Passos – Setor de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT / fotos: Thomas Bauer – CPT Bahia)
“Não somos contra o povo ser evoluído, mas tem que ser uma evolução que respeite os povos e as florestas”, analisou Juarez Rikbatská. “Quando saí da aldeia eu me impressionava com as lavouras gigantescas. Para nós indígenas a gente ainda não entendeu o porquê dessa prática de monocultivo do agronegócio. Até porque aquilo que eles produzem não é consumido aqui, é exportado, é usado para ração animal. Quem alimenta o povo é a agricultura familiar. 70% do que é consumido vem dos pequenos produtores. Quis fazer o possível para vir nesse encontro para poder contribuir com outros povos e outras nações, para tentar criar uma união entre nós e ir contra esses grandes projetos”, disse o indígena.
Juarez denunciou os impactos do uso de agrotóxicos sobre os povos indígenas. “Ouvi aqui que de tudo aquilo que é utilizado de agrotóxico no país, mais de 5 litros por pessoa por ano. Os meus antepassados não eram expostos a essa quantidade de veneno. Vemos hoje que é difícil um indígena chegar a 100 ou 90 anos, pois ficam doentes antes. Quero colocar que as preocupações que vocês apresentam aqui são as mesmas que vivemos na aldeia, é a mesma que o meu povo vive. Não sabemos como vai ser o futuro. A maneira que o agronegócio age é para destruir o meio ambiente, a fauna, as águas e o ser humano”, finalizou.
Paulo César Moreira, da coordenação nacional da CPT e da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, lembrou o sociólogo François Houtart, falecido recentemente e que participaria da Tenda, “lembrando o François Houtart, ele dizia que os grandes empresários ou os considerados grandes donos do processo de concentração de renda, eles avaliaram que no mundo todo existe muita gente, e o capital não precisa de toda essa concentração. Por isso existem tantas armadilhas e uma parte da população será excluída de fato”.
O coordenador apresentou os dados de conflitos nos biomas. “A soja que se consolidava no sul do país, passa a migrar para o cerrado. Junto a esses conflitos vemos que a conjuntura política é de grandes conglomerados econômicos, aliados às bancadas políticas, voltados para o agronegócio e também para a grande mídia. É uma ação orquestrada. Todas as categorias de conflitos que a CPT registra aumentaram de 2015 para 2016. Das 61 vítimas de 2016, duas foram assassinadas em conflitos pela água e três mortes em consequência também em conflitos pela água. Todas as regiões do país estão sofrendo com conflitos pela água. A mineração tem sido a maior causa dos conflitos pela água. Vemos que é a anulação total dos grupos que tem um modo de viver diferente do capital”.
Foi compartilhado na Tenda que o povo da comunidade do Charco, no Maranhão, já falou que se a água deixar de existir, os seus orixás vão deixar de existir também. Ou seja, a degradação ambiental afeta também outras dimensões, envolvendo as crenças, a cultura a cosmovisão de mundo desses povos.
José Divino Souza, representante da Secretaria de Meio Ambiente do estado de Goiás, limitou-se a explicar que “nós temos que seguir o que o legislador define, então nós não podemos ir contra isso. Se não houver mudança na legislação a gente fica impossibilitado de fazer algo”.
Beto Novaes, cineasta, destacou que o grande problema que vivemos hoje no mundo é a questão da comunicação. “Todos os empresários hoje têm rádio e outros veículos de comunicação. O maior problema nosso é levar essas informações para a sociedade, que está totalmente dominada pela mídia e longe desse pensamento. Mesmo nas escolas os professores estão presos a um livro texto, e que reflexão tem nesses materiais? Nós trazemos as imagens, portanto, para mostrar isso à sociedade, a realidade. A ideia de transformar essas histórias em imagens é para ter um instrumento pedagógico a ser trabalhado nas escolas. Esse é um problema da sociedade brasileira, não somente dos povos do campo. O capitalismo também se reproduz a partir da fragmentação da comunicação”.
Beto exemplificou a questão do poder da comunicação com o caso do documentário que ele fez denunciando os impactos dos agrotóxicos. “Em Lucas do Rio Verde (MT) entrevistei uma médica de posto de saúde que me falou que o perfil das doenças mudou ao longo dos últimos 20 anos. Se antes atendiam problemas como disenteria, vermes e coisas assim, passaram a atender casos mais sérios. E pesquisas mostram que os empresários encomendam pesquisas nas universidades e muito dinheiro investido para tentar mostrar o contrário de tudo isso, tentar mostrar que os agrotóxicos não têm interferência nas doenças. A pesquisadora do Mato Grosso que trabalhou a questão da contaminação do leite materno por agrotóxicos, está sofrendo vários processos. A ação contrária para tentar barrar a informação para a sociedade é muito forte”.
Moema Miranda, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), retomou como os venenos foram introduzidos no mundo na produção camponesa. Segundo ela, Rachel Carson, uma bióloga norte-americana, em 1966 começou a receber notícias de uma amiga que morava em uma área que tinha muitos pássaros e que parou de escutar o canto deles. Ela passou, então, a tentar descobrir o que estava acontecendo, e ela descobriu que a quantidade de veneno que estava sendo usada naquela região estava matando toda a vida ali presente. “Era uma guerra conta os insetos, para na verdade usar e gastar o veneno que sobrou da II Guerra Mundial e que eles achavam que iriam gastar na guerra do Vietnã, mas diante da derrota que sofreram nela, passaram a usar no controle de insetos. A partir disso, os norte-americanos começaram a exportar a ideia da Revolução Verde, de que a tecnologia aliada à produção no campo poderia produzir mais alimento”, completou Moema.
Ela explicou, também, o real significado de desenvolvimento. “Desenvolvido é não ser envolvido, não ser conectado em algo. Ao comprar um produto, portanto, não estamos envolvidos na história que aquele produto tem, da matéria prima utilizada, do trabalho empreendido e de todas as mazelas que aquele produto traz consigo para a sociedade. Por isso nos confundimos com as coisas que compramos. Nosso planeta é limitado e o crescimento ilimitado não funciona. É o suicídio da própria sociedade humana. O desenvolvimento além de ecocida, é suicida. As sociedades que mais estão resistentes ao capitalismo são as que existiam antes do capitalismo. Temos que aprender com elas”.
Moema compartilhou também que o capitalismo começou pela dizimação dos saberes populares e tradicionais, pois a resistência do povo viria desse modo ancestral de viver. “O capitalismo começa com o cercamento dos campos na Inglaterra, transformando a terra em mercadoria. Tiveram que matar a sabedoria do povo que estava envolvido com a terra, para expandir esse modelo. 100 mil mulheres foram queimadas na Inglaterra acusadas de serem bruxas, porque tinham o conhecimento tradicional, o envolvimento. O assassinato dessas mulheres foi primordial no enfraquecimento das famílias camponesas”.
CARTA FINAL II TENDA MULTIÉTNICA – POVOS DO CERRADO
“A maior violência é a negação do nosso direito de existir”
Nós, povos tradicionais, indígenas, quilombolas, camponeses e camponesas, reunidos na II Tenda Multiétnica – Povos do Cerrado, realizada de 20 a 24 de junho durante o 19º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA) na cidade de Goiás (GO), que traz em cada pedra de seu calçamento o suor dos homens e das mulheres escravizadas, em suas ruas símbolos dos bandeirantes, que mataram tantos irmãos indígenas, e banhada pelo rio Vermelho, que já teve em suas águas o sangue de nossos povos, reafirmamos o nosso direto de existir, de manter nossa cultura, nosso modo de produção em sintonia com a natureza, e por nossas terras e territórios livres. Mais uma vez denunciamos as constantes ações de violência contra nossos povos e contra nossos territórios, contra o meio ambiente, atuando na destruição do Cerrado, nossa casa. E reafirmamos que, mesmo diante dessa violência, vamos permanecer na luta, junto aos nossos encantados, carregando os saberes de nossos antepassados, e a memória de nossos mártires, que não tombaram em vão!
O momento político conturbado que nosso país está vivendo, com o governo ilegítimo de Temer, tem intensificado a investida do capital contra nossas comunidades. Acirrou-se a violência no campo. Estão caçando nossos povos, os e as militantes das nossas causas e tantos apoiadores e apoiadoras, que caminham conosco em busca da Terra Sem Males. A CPI da FUNAI e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que irá indiciar companheiros e companheiras de luta, indígenas e antropólogos, tentando dessa forma enfraquecer e amedrontar quem comunga dos mesmos ideais que os nossos e que acreditam num modelo de sociedade diferente, em que o capital não reina e os povos vivem em harmonia entre si e com o meio ambiente, são exemplos concretos disso. Bem como os constantes assassinatos, que têm aumentado nos últimos anos, matando 61 pessoas em 2016, conforme denunciou a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e que já registrou 41 assassinatos em 2017.
A tentativa de massacre dos indígenas Akroá Gamella, no Maranhão, que sofreram um ataque que deixou 22 feridos e dois indígenas tiveram suas mãos decepadas, revela que o latifúndio, o Estado e o capital estão à vontade na sua ação genocida, tendo a certeza de que não serão punidos.
Mesmo diante desse cenário, reafirmamos que não iremos fraquejar. Cada militante sabe que suas escolhas têm um custo, cada lutador e lutadora sabe dos riscos que corre, mas sabemos, também, que estamos do lado certo, “porque nossa luta é justa e vale a pena”.
O campesinato e os povos originários nunca foram uma prioridade para o Brasil, e nem para o governo brasileiro. As ações do Estado sempre foram em prol do agronegócio. Porém, sabemos que a produção camponesa é a única alternativa para a produção de alimentos saudáveis e para a preservação do meio ambiente. Sabemos que o modo de vida dos povos tradicionais é a única saída para a preservação do que ainda resta da natureza e para o equilíbrio do nosso planeta. Diferentemente do agronegócio, que destroi tudo e todos, que envenena tudo, que escraviza os trabalhadores e trabalhadoras, o campesinato se consolida e fortalece a partir da diversidade. A lógica é completamente diferente.
Pensar um modelo de produção no campo implica pensar que modelo de país nós queremos, se queremos ser exportador de mão de obra barata ou ser um país soberano, independente? Se o agronegócio só produz visando o lucro, contaminando as terras, as águas e as pessoas, o campesinato produz alimentos saudáveis capazes de alimentar a população brasileira.
Terra para nós, povos tradicionais, não é negócio. A terra é nossa mãe. Para o homem branco, comprometido com a acumulação de riqueza, ela é negócio, por isso ele a queima e a envenena. Nós não fazemos isso. Nós queremos a nossa mãe, a terra, viva! Nós queremos o cerrado, nossa casa, em pé!
A crise nos aponta a esperança de mudanças. Toda crise nos leva à reflexão, a repensar o caminho que estamos seguindo. Esse momento de crise civilizatória se mostra como uma oportunidade para que nós, brasileiros, questionemos o modelo hegemônico imposto pelo capital e encontremos nisso a esperança para a construção de uma nova sociedade.
Vivemos uma crise mundial e sistêmica, é o modo de produção capitalista que está entrando em colapso, e não há mais solução dentro desse modelo. Esse sistema está falido, ele ainda é forte, é perigoso, mas é uma fera ferida, e uma fera quando está ferida é perigosa. Ele está dando sinais concretos de que não vai mais prevalecer. Isso significa que nós vivemos um momento histórico oportuno, nós vivemos o fim e o começo. Nós teremos a oportunidade de ajudar a enterrar esse sistema e ajudar a criar outro. Não é um momento de desespero, mas sim de esperança. Seguiremos em luta, em defesa de nossos povos, de nossos saberes, contra toda e qualquer violência, repudiando e combatendo o genocídio, seguindo no modelo do bem viver, pela autonomia de nossos territórios e por alimentos saudáveis e livres de venenos, e em defesa do Cerrado e de suas águas. Fora Temer!
Cidade de Goiás (GO), 24 de junho de 2017.
Povos tradicionais II Tenda Multiétnica