COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Terras indígenas, reforma agrária, machismo, racismo e barragens unem milhares de pessoas no Mato Grosso para reafirmar a memória de quem dedicou a vida a uma causa. A 5ª Romaria dos Mártires foi realizada nesse fim de semana, 15 e 16 de julho, em Ribeirão Cascalheira (MT).

 

 

 

 

Por: João Peres, Rede Brasil Atual - (Foto: Douglas Mansur)

Ribeirão Cascalheira (MT) – Uma vela acende a outra, o fogo se multiplica por dois, por quatro, por oito, e logo são milhares as velas acesas nesta cidade do Araguaia. A fé move montanhas, mas velas não andam sozinhas: são muitos os romeiros vindos de outros estados da federação e de países da América do Sul e da Europa.

Na escuridão da noite, reinam as velas, uma imensidão a iluminar o caminho. Crianças, adolescentes, adultos, idosos são atraídos a cada cinco anos a Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, para celebrar àqueles que entregaram a vida por uma causa. A Romaria dos Mártires da Caminhada não é uma celebração comum. “Não é uma festividade, não é um show. É uma memória martirial”, avisa Dom Pedro Casaldáliga, bispo que tornou famosa a Prelazia de São Félix do Araguaia ao defender ribeirinhos, indígenas, camponesas e todas as vítimas da opressão.

Aos 83 anos, retirado do comando da prelazia, é um mártir vivo desse encontro. Toda a comoção que já havia provocado ao longo do fim de semana se fez ainda mais forte aos fiéis quando afirmou que esta é sua última romaria na Terra, e que a próxima ele irá acompanhar a distância, no céu. Apesar de debilitado pelo Mal de Parkinson, Pedro enfrentou o exaustivo calor da manhã de domingo (17) para participar da celebração e cumprimentar a todos que conseguiram chegar até ele.

É, via de regra, um momento de emoção para quem o saúda. Os romeiros veem em Pedro um exemplo de entrega. Montserrat Calderó é, como o bispo, espanhola. Morando em Goiânia há quatro meses, não quis deixar passar a oportunidade de conhecer a alguém que há muitos anos admira. “Comecei a chorar. Não consegui falar nada, não me vinha nada à cabeça.” Seria difícil tentar explicar a reação de quem cumprimenta este senhor de corpo frágil e pequenino.

Energias

Quem comparece a este encontro garante sair de energias renovadas, mesmo após enfrentar uma viagem cansativa e uma rotina puxada, que inclui procissão de cinco quilômetros na noite de sábado e missa na primeira hora da manhã de domingo. O trabalho é mais árduo para os moradores desta cidade, que juntam forças durante meses para organizar a romaria. Os alimentos são plantados ou comprados pelos próprios, e todas as refeição são partilhadas na praça principal. Tudo coerente com a história da prelazia, que prima pela vida em comunidade, desapegada de bens materiais.

Essa é uma romaria revestida de forte caráter político, a começar pelo mote. O encontro é organizado desde 1986 para celebrar a memória dos mártires, em especial a do padre João Bosco Burnier. Em 1976, ao tentar fazer com que policiais militares dessem fim a uma sessão de tortura contra duas mulheres da comunidade, acabou assassinado.

Gente de vários estados do Brasil tem a oportunidade de conhecer esta história, mantida pela memória oral, e de compartilhar denúncias de violações de direitos humanos, de machismo, de racismo e de deslocamentos forçados. A terra xavante dos indígenas de Mato Grosso é ameaçada por invasores que se escoram na lentidão do Judiciário em encontrar um desfecho para a causa. “Tomaram da gente. Depois de 40 anos voltamos. Com luta, com peito aberto”, conta Carolina Rewwaptu, moradora das terras ameaçadas.

Padre Juquinha, da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho, reclama que continuam os maus tratos a trabalhadores das obras da hidrelétrica de Jirau, que há quatro meses se revoltaram. “Muitos são iludidos pelas construtoras a ir para lá, não conseguem emprego e não têm como voltar para casa”, acrescenta. “A romaria é uma maneira de mostrar que ninguém está só nessa luta.”

Luta por justiça

A região do Araguaia, além da questão dos Xavantes, tem problemas com exploração de mão de obra e com disputas fundiárias. Dagnon Odilon da Silva, um jovem de 21 anos, é natural de São José do Xingu, a algumas horas de Ribeirão Cascalheira, uma terra dominada por conflitos pela terra. Segundo ele, há fazendas maiores que municípios e os latifundiários contam com apoio dos poderes locais para manter áreas improdutivas e reprimir movimentos sociais. “As pessoas que cometem essas atrocidades têm poder sobre a mídia. Por que não se divulga nada sobre isso?”, indaga.

Após uma celebração sob o sol forte do Centro-oeste, os romeiros fizeram uma última refeição comunitária e começaram o longo caminho de regresso aos estados. “Devemos renovar nosso compromisso de seguir em caminhada rejeitando tudo quanto seja mentira, corrupção, morte”, aconselhou Pedro. Em cinco anos, tudo começa outra vez.

Save
Cookies user preferences
We use cookies to ensure you to get the best experience on our website. If you decline the use of cookies, this website may not function as expected.
Accept all
Decline all
Read more
Analytics
Tools used to analyze the data to measure the effectiveness of a website and to understand how it works.
Google Analytics
Accept
Decline
Unknown
Unknown
Accept
Decline