Avanço de fazendeiros em áreas de Cerrado no Oeste da Bahia provoca frequentes conflitos fundiários e hídricos
Por Paulo Oliveira e Thomas Bauer
Matéria feita por Meus Sertões em parceria com a CPT-BA
Correntina está situada ao longo da divisa oeste da Bahia, uma das regiões onde o agronegócio mais se expandiu, principalmente, os latifúndios usados para plantação de soja e algodão. O artigo 12 do Código Florestal determina que todo imóvel rural deve manter reserva legal de vegetação nativa equivalente a 20% da área que ocupa.
No entanto, como não exige que a reserva esteja no perímetro da fazenda, bastando que seja do mesmo bioma, os fazendeiros desmatam totalmente as suas propriedades rurais e avançam sobre terras públicas devolutas preservadas por comunidades tradicionais para constituírem as reservas. Para isso, nem sempre utilizam métodos legais. Alguns chegam a usar a violência para intimidar e expulsar os posseiros.
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Quem não cumpre o Código Florestal não pode registrar a propriedade no Cadastro Ambiental Rural (CAR), que integra as informações ambientais de imóveis e posses concernentes às Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal. O cadastro obrigatório visa facilitar o controle e monitoramento ambiental, além do combate ao desmatamento. Sem o registro não é possível obter financiamentos, fazer o seguro agrícola e comercializar produtos.
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O avanço dos fazendeiros, muitas vezes obtido através da grilagem de terras, faz com que ocorra frequentes conflitos fundiários e hídricos. Uma das áreas disputada em Correntina, utilizada há cerca de dois séculos por uma comunidade tradicional e certificada pelo governo estadual, possui 9.421 hectares de vegetação nativa preservada. A certificação deveria garantir a permanência dos posseiros, mas os fazendeiros decidiram judicializar o caso em 2017.
Fazenda desmatada para plantação de soja e algodão. A necessidade de reserva legal faz os ruralistas avançarem sobre território preservado por comunidades tradicionais. Foto: Thomas Bauer
Sete produtores moveram ação conjunta [1] contra oito integrantes da Associação Comunitária de Preservação Ambiental dos Pequenos Criadores de Fecho de Capão do Modesto, visando a reintegração e a manutenção de posse da área em litígio. Dentre os autores estão a Agropecuária Sementes Talismã, em recuperação judicial; o catarinense Luiz Carlos Bergamaschi, atual presidente da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa); e o fazendeiro e advogado Dino Rômulo Faccioni, fazendeiro que responde a pelo menos três processos abertos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Em um deles, o de número 02058.000048/2019-04, Dino foi citado por cultivar organismos geneticamente modificados em área não permitida e por infringir regulamentos ou recomendações da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
Os autores da ação, cuja inicial é assinada pela advogada Lisiane Rosa Lunardi, sócia do presidente da Abapa na empresa Bergamaschi Agro, alegam que os pequenos criadores da comunidade de fecho de pasto impedem o livre exercício da posse da área de reserva legal por meio de atos clandestinos (turbação). E que para evitar a invasão do local têm gastos com a contratação de um funcionário e uma empresa de segurança patrimonial.
Os pequenos criadores apresentaram queixas semelhantes, agravadas por ocorrências de ameaças de morte e destruição de benfeitorias, registradas na delegacia de Correntina.
Em 21 de fevereiro deste ano, o juiz Matheus Agenor Alves dos Santos revogou despacho da juíza anterior e concedeu tutela antecipada para reintegrar e manter a posse dos posseiros tradicionais e de todos os integrantes da Associação Comunitária de Capão do Modesto na área reclamada pelos fazendeiros.
Alves dos Santos também determinou que os autores da ação desocupassem a reserva, recolhessem equipamentos de vigilância e maquinário, além de desativar acampamentos e assentamentos nas terras sobrepostas às comunidades tradicionais. Decidiu ainda que os empresários do agronegócio se abstivessem de exercer atos de vigilância ou intimidação por si próprios ou por seguranças e fixou multa de R$ 50 mil reais por dia ou ato de turbação da posse.
Insatisfeitos, os fazendeiros recorreram. No dia 17 de março, a desembargadora Telma Laura Silva Brito, da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, suspendeu a decisão de primeira instância. A deliberação é provisória. A data do julgamento ainda não foi marcada.
A equipe de Meus Sertões entrou em contato com a Abapa para saber se havia novidade sobre o processo. Também perguntou se os atos de violência contra os fecheiros poderiam ter sido cometidos por seguranças contratados por fazendeiros.
Através de uma assessora da Torre Comunicação e Estratégia, empresa de consultoria de gestão empresarial e de comunicação, sediada em Brasília, os empresários do agronegócio responderam que o processo judicial trata de um pedido de manutenção de posse de área de reserva legal. “E, até que o Estado diga o contrário, em ação própria, ela fica assim assegurada.” – diz a nota.
Sobre as ameaças e atos de violência, os fazendeiros negam qualquer envolvimento, assim como descartam o uso de segurança armada na região da reserva e “rechaçam atos desta natureza contra as comunidades citadas.”
A COMUNIDADE E O CONTEXTO ECONÔMICO DO MUNICÍPIO
O povoado de Capão do Modesto está situado na zona rural de Correntina, a cerca de 20 quilômetros da sede do município. Cerca de 80 famílias criam gado, fazendo manejo nos fechos para o pasto se recuperar, e cultivam terras há cerca de 200 anos. A residência dos fecheiros não está ligada à rede de energia elétrica, poucos utilizam energia solar. Nem todas as residências possuem banheiros internos.
O Capão está cercado por outras 21 comunidades tradicionais em Correntina e 13 na cidade vizinha (Jaborandi). A ação de grileiros se intensificou na primeira década deste século. Em 2014 foi fundada a associação comunitária de Capão do Modesto. No ano seguinte, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), vinculada ao governo da Bahia, emitiu certidão de reconhecimento de povo tradicional. Desde então, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) se comprometeu a iniciar o processo de regularização fundiária, o que não ocorreu até hoje.
Correntina tem 32.247 habitantes e apenas 18% deles possuem carteira assinada. Foto: Thomas Bauer
Correntina tem população estimada de 32.243 habitantes (IBGE 2021). Entre janeiro e agosto deste ano foram contratados 2.837 trabalhadores e demitidos 2.886. Portanto, o saldo de empregos é negativo (-49), segundo o site Caravela Dados e Estatística, que agrupa informações oficiais do Ministério do Trabalho (Caged e RAIS), Ministério da Economia e das secretarias estaduais de Fazenda de todo o país. Os principais empregadores foram as lavouras temporárias (130), construção civil (104) e as fazendas de sementes e mudas (42).
O total de trabalhadores com carteira assinada equivale a 18% da população. As ocupações predominantes são professores (507), trabalhadores agropecuários (361) e operadores de máquinas de beneficiamento agrícola (263). A renda média dos empregados formais é de R$ 2,3 mil. As classes de menor poder aquisitivo (D e E) representam 57,5% da população, enquanto que os mais abastados equivalem a 3,9%. As atividades principais da economia local são a administração pública, com 1.805 funcionários, mais do que o dobro da segunda colocada: o cultivo de soja.
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[1] Processo 8000574-63.2017.8.05.0069, em trâmite na 1ª Vara dos Feitos Relativos às Relações de Consumo, Cíveis, Comerciais de Correntina.
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