COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Frei Xavier Plassat, agente da CPT Araguaia-Tocantins e coordenador da Campanha Nacional da CPT de Combate ao Trabalho Escravo, destaca em depoimento na abertura do livro "Um homem torturado: Nos passos de frei Tito de Alencar", os últimos anos de Frei Tito na comunidade dominicana, na França. O livro será lançado hoje, a partir das 19 horas, na Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. O evento pode ser acompanhado através desse link. O prefácio do livro, de autoria de Vladimir Safatle, pode ser lido em anexo.

 

Ao pisar no Brasil pela primeira vez, em março de 1983, trazendo de volta o corpo do meu irmão frei Tito, resolvi aqui ficar e aqui estou, vivendo as esperanças, as lutas e a fé do Tito com seu povo.

 

Convivi com frei Tito na comunidade dominicana de L’Arbresle (França). Foram duas primaveras, dois verões, mas um só outono e um só inverno. Ele com seus 27 anos, e eu, meus 23. Ali, surgiu entre nós uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas, de luta e de fé, enfrentando o Fleury: o temido Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado do DOPS em São Paulo, um dos principais torturadores do regime militar.

 

Por dentro do Tito, Fleury continuava sua tortura destruidora, partindo-lhe a alma entre resistência e desistência.

 

Resistência era quando Tito formava projetos, tocava violão, abraçava o amigo, brincava com a criança, cunhava poesia, rezava, sorria.

 

Desistência era quando obedecia cegamente à intimação alucinante do “papa”, cuja voz atormentava sua mente sem parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis prantos e desesperados silêncios.

 

Eu tinha observado como ficava feliz ao encontrar meus familiares, meu pai, minha mãe, meus irmãos, minhas irmãs, lá na Auvergne, e ao brincar com meus sobrinhos ou, ainda, com a criançada encontrada na casa de Joseph, nosso vizinho. Ele era operário na fábrica de autopeças da Renault e pequeno viticultor em Sain-Bel. Com ele, eu acompanhava uma equipe da ação Católica Operária e dava alguma força à seção sindical da usina na qual, com a irmã dominicana Jacqueline, ele era um dos delegados eleitos. Tito achava isso muito bom.

 

Mas o Fleury raramente o deixaria quieto e, nestes meses que compartilhamos, Tito alternaria constantemente entre o entregar-se e o resistir. Era como se estivesse acuado entre as paredes desse novo “corredor polonês”: morrer vivendo, viver morrendo. Cumpria-se a louca promessa que recebera durante as sessões reais de tortura.

 

Segundo suas próprias palavras, registradas pelos companheiros de sua cela: Quiseram-me deixar dependurado toda a noite no pau de arara. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”.

 

Juntos, viajamos, cantamos, choramos, rezamos, xingamos, desafiamos. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que se vai. Até que um dia de agosto de 1974, na semana de São Domingos, Tito resolveu livrar-se definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia infundir-lhe.

 

Naquele instante possivelmente imaginado de longa data, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou-lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida.

 

“Melhor morrer que perder a vida. Opção 1: corda (suicídio, Bejuba). Opção 2: tortura prolongada, Bacuri”, estas foram as últimas palavras que Tito rabiscou no papelão que usava como marca-página e que encontrei dias depois.

 

Entendi assim: Minha vida, ninguém tira, ela é minha. Eu a estou entregando. “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão”, cantava o povo das CEBs e das ruas, dos acampamentos e das fábricas, na chegada do corpo do Tito na catedral da Sé e, de novo, na de Fortaleza. Com justeza.

 

Segundo Jean-Claude Rolland, o psiquiatra que, em Lyon, com tremenda lucidez, acompanhou frei Tito no auge do seu tormento, “a barbárie que leva certos homens à prática da tortura contamina automaticamente todos os seus contemporâneos. Ela faz de cada um de nós cúmplices virtuais. Há, no fundo de nós mesmos, muito recalcada, uma capacidade de destruir o outro e o torturador apenas ativa essa capacidade de destruição”.

 

Daí a centralidade da palavra que rompe o silêncio, da razão que tripudia a barbárie, da memória que acorda da acomodação, da história que, sem fim, deve ser contada.

 

À globalização da indiferença que vai se alastrando, há quem teime em opor a solidariedade e a compaixão que nascem do senso agudo de uma comum filiação.

 

Enquanto mais de uma geração já nos distancia dos acontecimentos aí narrados, o livro de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles chega em boa hora. Em mutirão, mãe e filha foram às fontes, ouvir testemunhas e protagonistas, recolhendo criteriosamente suas palavras e reconstruindo para nós a teia de um drama que teve na pessoa do frei Tito um dos seus desfechos mais emblemáticos.

 

Elaborar sem trégua este trabalho de verdade e de história é exigência que não acaba. Precisamos desmascarar as conveniências e denunciar as cumplicidades — no mínimo, a covardia — que colaboraram para infernizar e tirar a vida de militantes, irmãos, companheiros que sonhavam com outro país e outro mundo possível, e os destinaram às catacumbas e à morte.

 

Precisamos escutar, resgatar e honrar com justiça as vozes abafadas e os sonhos dos resistentes e lutadores.

 

Sem a elucidação constante da verdade, particularmente em relação às sombras mais trágicas da nossa história, tornam-se incompreensíveis e insuperáveis as recorrentes e brutais manifestações de violência, de barbárie, que continuam pontuando nosso tempo, nos presídios, nas delegacias, nos morros, nas fazendas: a matança de jovens, de posseiros, de negros, de índios, de migrantes, de travestis, de prostitutas; a comercialização de gente e sua escravização; a confiscação da esperança; a negação do bem-viver.

 

Ato de memória insurgente, a leitura deste livro, sem dúvida, alimenta e atualiza em cada um de nós a capacidade de indignação. Mais de 500 anos depois de proferida pelo frei Antônio Montesinos em defesa profética dos indígenas da Ilha da Hispanióla, a ousada advertência da primeira comunidade dominicana das Américas permanece irrecusável: “Estes por acaso não são gente?”.

 

Daí a necessidade e a oportunidade de mais este livro sobre Tito, e sobre todos os Titos.

 

Fica o evangélico recado, gravado no seu túmulo: “Se os discípulos se calarem, as próprias pedras clamarão!” (Lc 19, 40).

 

Frère Xavier Plassat, Natal de 2013 

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