Confira artigo de Sandro Gallazzi, biblista e agente da CPT, sobre a nova encíclica lançada ontem (18) pelo Papa Francisco. "Senti o perfume, às vezes acre, da CPT, o cheiro forte e selvagem do CIMI, o suave odor das CEBs. Nunca nomeados, mas, como nunca, tão presentes nestas palavras fortes e amigas", analisa ele.
Valeu a pena saborear a encíclica “Laudato si´” de Francisco. Foi gostoso e estimulante. Vai ser a primeira encíclica que não será conhecida por um título em latim. Só isso tem um cheirinho perfumado de novidade: Francisco de Roma começa sua carta com as palavras de outro Francisco, o de Assis. Liga, harmoniza, completa.
Senti a fala sábia, profunda, corajosa do “presbítero”, o ancião que na comunidade, com carinho e firmeza, ajuda a enxergar, decidir, caminhar. Um ancião latino americano, não um mestre de academia. Senti o perfume, às vezes acre, da CPT, o cheiro forte e selvagem do CIMI, o suave odor das CEBs. Nunca nomeados, mas, como nunca, tão presentes nestas palavras fortes e amigas. Uma história que se faz palavra, que se faz encíclica, carta aberta e circular para todas as pessoas que querem a vida e o bem para todas e todos.
Admirei a coragem (parresia) profética de entrar em tantos detalhes que são objeto de acirradas discussões mais ou menos científicas e de tomar, com destemor, uma posição clara, mesmo correndo o risco de ser desmentido, daqui a alguns anos, pelos “entendidos” que mesmo sabendo muito, não entendem nada das coisas de Deus.
Senti o respiro amplo de uma colegialidade prática em caminho: quantas citações de documentos das igrejas do mundo inteiro; citações de congressos internacionais, de cientistas e do único teólogo contemporâneo, mesmo que pré-ecológico: o ítalo-alemão Romano Guardini, amado e citado, também por Bento XVI, no dia de sua despedida.
É um grande respiro religioso ecumênico que inclui e valoriza cosmovisões vindas de diferentes mundos: a espiritualidade dos povos originários, a mística oriental, a memória de Bartolomeu patriarca da Igreja Ortodoxa, além da tradição bíblica.
Mesmo que a ecologia seja o fio condutor, esta carta não pode ser reduzida a encíclica ecológica: na base está uma profunda visão da pessoa humana: antes de tudo é a humanidade que precisa mudar (202). O capítulo 3º: A raiz humana da crise ecológica, é, creio eu, a chave de leitura da carta como um todo.
Amplo, limpo e aberto é olhar agudo, unitário, holístico, que vê uma só realidade com todas as suas dimensões presentes, interagindo e interpelando-se reciprocamente: a história, a economia, a política, a sociedade, a fé, a razão, a igreja e cada um e cada uma de nós. E tudo visto, lido, relido, interpretado a partir do único centro verdadeiramente importante e que nunca deve ser abandonado: o pobre e seus clamores por causa de seus opressores. Todos eles identificados, nomeados, denunciados, um por um.
É o olhar do clínico que vê o corpo doente como um todo e não do especialista que só enxerga e pretende curar as partes atingidas.
É a verdadeira ecologia de quem vê e fala da casa como um todo e não só do quintal, da natureza e, de maneira especial fala de seus habitantes: há uma lógica que permite compreender como se alimentam mutuamente diferentes atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação social (122).
Temos a obrigação moral de torná-la conhecida, debatida assim como Francisco quer. Precisamos voltar aos instrumentos que fomos costumados a usar: cartilhas populares, quadrinhos, slides, músicas, para que os pobres, os pequenos a conheçam, a amem e, como só eles sabem fazer, a levam a sério.
Não vamos deixar cair esta palavra.