Reunidas no Centro Comunitário Tia Irene, em São Félix do Araguaia (MT), entre os dias 13 e 15 de julho, cerca de 45 pessoas celebraram os 25 anos da Campanha 'De Olho Aberto Para Não Virar Escravo'. Com a participação de diversas organizações, dentre as quais a CPT, que organiza o encontro, foram partilhadas experiências e debatidos objetivos e estratégias da Campanha.
Mário Manzi - Assessoria de Comunicação da CPT
Fotos: Wellington Douglas (CPT-MT) e Mário Manzi
No primeiro dia do encontro, após mística de abertura e momento de acolhida, as pessoas presentes caminharam até as margens do Rio Araguaia, onde cada uma e cada um se apresentou. Em seguida, foram relembrados os passos de Dom Pedro Casaldáliga na região, passando por sua chegada e o enfrentamento às situações de conflitos fundiários e trabalhistas, que tinham como principais vítimas os povos indígenas e os posseiros. Luís Cláudio da Silva, da CPT Regional Mato Grosso, falou sobre os ensinamentos de Pedro. "O legado de Pedro está dentro de cada um e cada uma, em casa comunidade acompanhada pela CPT. Está na dança e na cantoria, em oração, no Araguaia".
Elizabete Flores, do mesmo regional, comentou sobre a importância da carta pastoral "Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social" lançada em 1971, por Casaldáliga, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, e sobre a importância do documento enquanto instrumento de denúncia das violações de direitos na região, em plena ditadura militar.
Ao pôr do sol, as pessoas seguiram em peregrinação até o cemitério onde Dom Pedro Casaldáliga, que fez sua páscoa em 2020, está plantado. No local, à sombra de um grande pequizeiro, foram realizados momentos de memória sobre as ações de resistência do bispo na região.
Visita ao cemitério onde Dom Pedro Casaldáliga está plantado. Foto: Mário Manzi
De volta ao Centro Comunitário, Waldeci Campos (CPT-MG) convidou Xavier Plassat (CPT Araguaia/Tocantins) para apresentar o documentário "Aprisionados por Promessas – A escravidão contemporânea no Campo Brasileiro", produzido por CPT, Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil) e Witness. Antes, Plassat lembrou o caso emblemático de José Pereira, ocorrido em 1989. A denúncia dá conta de duas pessoas escravizadas, que tentam fugir da fazenda Espírito Santo, cidade de Sapucaia, Sul do Pará, mas são baleadas pelos seguranças da fazenda. Paraná morre e José Pereira sobrevive e é resgatado, mas o processo de indenização só ocorreria quase 15 anos após a violência.
Já o filme, lançado no ano de 2006, descreve a situação de trabalhadores do campo aliciados e escravizados em fazendas e carvoarias do Brasil. A obra é utilizada, lembra Plassat, como dossiê de denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Acolhida do encontro às margens do Rio Araguaia. Foto: Wellington Douglas
Pedro
O segundo dia de atividades do Encontro retomou a importância da carta pastoral de Dom Pedro, em visibilizar a situação de conflitos fundiários, em que posseiros migrantes, os sertanejos, e povos indígenas eram expulsos da terra de onde tiravam o sustento, por grandes fazendeiros, apoiados pelo estado sob o argumento de "desenvolver a Amazônia".
O documento também denunciou o emprego de trabalho análogo à escravidão nas grandes fazendas da região e a falta de acesso a serviços públicos de educação e saúde. A análise dos desdobramentos do cenário abordou problemas atuais, como o impacto do alcoolismo e a cooptação da comunidade local para o narcotráfico, ao passo que as grandes fazendas foram se convertendo em empresas de agropecuária e de colonização, expulsando as camponesas e camponeses de suas terra. Elizabete Flores, que fazia a fala, abordou também a ocorrência de despejos com ou sem decisão judicial realizados por empresas de segurança a mando do agronegócio.
Escuta
Durante o processo de escuta, Brígida Rocha, da (CPT-MA) precedeu os depoimentos de duas pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão no Maranhão. Sobre o papel de reforçar os grupos de trabalhadores ou que estão em risco, ela explicou que "a gente busca fortalecer essa organização, a partir de formações, encontros, ações preventivas e de alerta".
Dentre as ações citadas, destacou a experiência da Comunidade de Monsenhor Gil (PI), formada, em sua maioria, por pessoas resgatadas de condições análogas à escravidão.
Rocha ressaltou a necessidade de cobrar políticas públicas e fiscalizações trabalhistas, bem como fortalecer as datas e calendários simbólicos, como o 28 de janeiro, quando é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
O primeiro trabalhador a falar, Gildásio Meirelis, descreveu o modo como as pessoas acabam sendo empurradas para situações em que vão ter seus direitos trabalhistas, e de vida, desrespeitados,
"Vulnerabilidade: algumas pessoas me perguntam por que as pessoas ainda são escravizadas. A vulnerabilidade decorre de um processo, que vem de alguém que tem uma família, mas não tem mais como sustentar. Necessidade. Essa necessidade acaba tornando a pessoa vulnerável, porque a pessoa precisa ir buscar o alimento para sua família. Nesse momento ela se torna alvo de alguém. Os gatos [como são conhecidos os aliciadores de mão-de-obra escrava] já mapeiam essas pessoas vulneráveis."
Para combater este ciclo de ultrajes à pessoa humana, Meirelis sublinhou o alcance das redes de apoio em informar sobre o que é o respeito aos direitos. "A escravidão nunca acabou, ela se modernizou. É uma situação que tende a se manter, se não houver esse esforço em orientar a população." Acerca da importância do trabalho da CPT e do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán (CDVDH/CB), por exemplo, Gildásio ressaltou que "[quando ocorre a exploração] parece que as pessoas nos veem como não-humanos". Ele lembrou que, por necessidade, pessoas passam pela situação de exploração por mais de uma vez.
Sebastião de Oliveira, o segundo trabalhador a falar, complementou a fala, ao explicar que muitas vezes as promessas de pagamento pelos trabalhos realizados não são cumpridas e que os valores a serem pagos são informados às vésperas da realização dos trabalhos, quando já estão inseridos no contexto de exploração, sem possibilidade de contestação.
A tarde do Encontro dedicou-se a uma visita a casa onde morava Dom Pedro Casaldáliga. As pessoas presentes no Encontro, em caminhada, puderam conhecer ou revisitar o lugar onde Pedro viveu. No local, celebraram os ensinamentos de Pedro, na simbólica capela alocada no quintal da residência.
As atividades do dia foram encerradas em confraternização. A noite cultural iniciou-se com a escuta de testemunhos presenciais ou enviados por vídeo e projetados à frente da mandala montada no espaço onde ocorreram os debates do Encontro.
Celebração na habitação indígena coletiva, no Centro Comunitário Tia Irene. Foto: Mário Manzi
Romeiros em caminhada
O terceiro e último dia do encontro iniciou-se na habitação coletiva indígena, que faz parte do Centro Comunitário Tia Irene. A frente do altar montado para a ocasião, um conjunto de velas formava o número 25, em referência ao tempo de existência da Campanha. Sob orações e falas, a celebração trouxe cantos e frases para reafirmar o compromisso com a missão da Campanha e da CPT.
Após entoarem um emblemático 'parabéns', as discussões finais foram retomadas no espaço de debates. Divididas em grupos, as pessoas analisaram, com base nas partilhas do dia anterior, os diferenciais da Campanha, enquanto visão, metodologia, valores e ação.
A plenária final traçou orientações sobre a Carta do encontro. O documento, que deve ser publicado em breve, traz convicções e prioridades na atual conjuntura. Finalizados os compromissos finais, as pessoas se juntaram, em viagem, para participar da Romaria dos Mártires da Caminhada, que este ano é realizada entre os dias 15 e 17 de julho, em Ribeirão Cascalheira (MT).