COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

A Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 compartilha sua avaliação e balanço do ano de 2022 para os povos da terra, das águas e das florestas. Confira o texto:

CPT NE II

“Saber esperar,
sabendo ao mesmo tempo
forçar as horas daquela urgência
que não permite esperar”

(Dom Pedro Casaldáliga)

O final do ano de 2022 significou também o encerramento do governo de Jair Bolsonaro. Um tempo nefasto, de ataques sistemáticos aos direitos, com nítidas marcas de violência e resistência. Nesse último governo, foram aprofundadas as sequelas e as injustiças históricas que caracterizam a vida do povo brasileiro.

O governo de Jair Bolsonaro transformou em política prioritária do Estado a retirada massiva de direitos das camadas historicamente oprimidas do país, desmontando e esvaziando o aparato legal que beneficiava – ainda que de forma insuficiente e com todos os limites – esses grupos.

A paralisação da reforma agrária e da demarcação dos territórios tradicionais, acompanhada pelo quase fechamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Nacional dos Povos indígenas (Funai), fez parte do direcionamento político do governo, que optou, abertamente, por contrariar os mandamentos constitucionais e por aprofundar a violência contra os povos do campo.

A Comissão Pastoral da Terra Regional Nordeste 2, que compreende os estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, comprometida com a sua missão junto aos/às pobres da terra e à terra dos/as pobres, vem partilhar nesse documento as suas reflexões e a sua indignação diante desse ciclo aterrador.

Adotando a violência como uma de suas principais metas e ferramentas, o governo findo incentivou, por meio de manobras legislativas e de propaganda intensa, o uso de armas de fogo pela população, especialmente por grandes proprietários de terra. O número de armas registradas por caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs), que era de pouco mais de 350 mil quando o ex-presidente assumiu, passou para mais de um milhão no final do seu mandato. Na região Amazônica, um dos epicentros da violência no campo, o crescimento do número de armas foi de 700%. Sem falar na enorme quantidade de armas que estão na ilegalidade, acervo que cresce assustadoramente.

O estímulo às armas e à cultura do ódio foi uma das causas principais para o crescimento dos assassinatos de lideranças e de defensores/as das comunidades rurais no país. O Brasil segue sendo um dos lugares mais perigosos do mundo para os povos do campo e socioambientalistas.

No início do ano de 2022, em Pernambuco, em uma área de conflito, mais uma prova de que a covardia do latifúndio não tem limites: foi assassinada a criança Jonatas Oliveira, da comunidade de Roncadorzinho, no município de Barreiros. Os mandantes seguem impunes. Após mobilizações das famílias, o governo estadual desapropriou o imóvel.

A farra dos agrotóxicos tornou a natureza e as pessoas ainda mais doentes. Em alguns casos, em especial na Zona da Mata de Pernambuco, esses venenos foram utilizados como arma química, com o objetivo de expulsar comunidades camponesas.

No Sertão do São Francisco (PE) e na Chapada do Apodi (RN), o agronegócio, por meio da fruticultura irrigada, continuou avançando sobre as terras camponesas. Além dos solos férteis, a água é motivo de cobiça e disputa.

Grande parte do agronegócio, apoiado e empoderado por essa política de morte, também se tornou mais radical e violento, financiando a ideia obsessiva de um golpe de Estado, patrocinando incêndios nas florestas e atentados nas cidades e no campo.

No governo Bolsonaro, a fome voltou a flagelar milhões de brasileiros e brasileiras, inclusive os povos do campo. Em várias áreas de conflito ela foi intensificada em razão da destruição de lavouras e das ameaças contra famílias agricultoras. Diante disso, comunidades que cultivam alimentos para si próprias e para abastecer feiras das suas regiões passaram a depender de cestas básicas para sobreviver.

O governo facilitou e incentivou a articulação da extrema-direita no país. Células neonazistas cresceram quase 300% nos anos do mandato de Bolsonaro. A invasão que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023 ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal e ao Palácio do Planalto, estimulada pelo ex-presidente e patrocinada por indivíduos e empresas bolsonaristas, é a prova de que existe uma herança ideológica maldita, a qual teremos que extirpar nos próximos anos.

As comunidades camponesas têm registrado a sua percepção, cada vez mais forte, sobre os efeitos das mudanças climáticas e da crise ambiental. Acostumadas a observar e a refletir sobre o tempo, falam da mudança dos períodos de chuva e da elevação da temperatura, ambas reforçadas pelo desmatamento e pelas queimadas.

Sob o pretexto da energia limpa e sustentável, imensas usinas de energia eólica e fazendas solares têm levado sofrimento às famílias camponesas. Contratos abusivos, expulsões, casas rachadas, roças que não produzem mais e animais adoecidos têm sido marcas desse processo. O barulho ininterrupto das turbinas eólicas tem provocado uma série de danos à saúde da população que vive no seu entorno, como problemas de pele, depressão, ansiedade e crises de pânico.

Mas um balanço da questão agrária no Brasil pode ser um relato de opressão, derrota e, ao mesmo tempo e de uma só vez, um canto de resistência, de solidariedade e de cuidado com a vida no campo.

O projeto do governo Bolsonaro não se resumia à retirada de direitos. Seu intuito era também desarticular a luta dos povos do campo, destruir os sonhos e alcançar a meta do projeto colonial capitalista, que é destinar todas as terras aos poderosos. Porém ele não conseguiu. E em inúmeros casos o efeito foi o contrário. Comunidades se articularam e perceberam sua capacidade de sobreviver aos tempos mais adversos. Reagiram, aprofundando a sua organização e a sua mobilização para preservar os seus direitos e a sua autonomia. Na Regional Nordeste 2 da CPT, foram registradas no último ano - segundo dados preliminares -, 115 manifestações de comunidades e movimentos sociais do campo, além de 11 ocupações nesse mesmo período.

Mesmo contra a vontade do Estado, foram reforçadas a agroecologia como caminho para outro modelo rural no Brasil e a solidariedade como marca moral e política dos povos do campo. 

No período que agora se inicia, para onde os nossos olhares precisam apontar? Que lutas precisarão ser travadas e priorizadas pelas comunidades camponesas e por suas organizações? Com certeza, um dos desafios mais importantes será a reconquista dos direitos retirados pelo último governo, além da luta incessante pela realização das tão necessárias reforma agrária e demarcação dos territórios tradicionais.

As comunidades camponesas de nossa região, suas entidades representativas e movimentos sociais continuarão seguindo a caminho da Terra sem Males, inspirados pelas forças espirituais, por seus/suas mártires, santos/as, encantados/as e orixás; por uma fé que se fortaleceu na resistência. Continuarão sua luta e seu sonho em defesa da Mãe-Terra, nossa casa comum, visando, como escreveu o profeta Isaias, à construção de um novo céu e de uma nova terra, onde não haverá lembrança do que se passou, e todas as pessoas construirão suas casas para nelas morar, plantarão suas lavouras e comerão seus frutos. (Isaias 65, 17 e 21).

Save
Cookies user preferences
We use cookies to ensure you to get the best experience on our website. If you decline the use of cookies, this website may not function as expected.
Accept all
Decline all
Read more
Analytics
Tools used to analyze the data to measure the effectiveness of a website and to understand how it works.
Google Analytics
Accept
Decline
Unknown
Unknown
Accept
Decline