Entidades e comunidades elaboram dossiê, criam aplicativo e realizam audiência pública para conter danos provocados por empresas eólicas, solares e PCHs.
Texto e fotos: Paulo Oliveira
Via: Meus Sertões
A audiência pública sobre os caminhos e descaminhos das energias renováveis na Bahia, realizada na quarta-feira (20), no Centro Diocesano de Senhor do Bonfim (BA), na região centro-norte do estado, teve desdobramentos positivos para os representantes de 61 comunidades tradicionais e de 37 municípios participantes. Os delegados enviados pelos órgãos, autarquias e instituições, responsáveis pelo licenciamento e fiscalização de empreendimentos de energia eólica, solar, pequenas centrais elétricas (PCHs) e as respectivas linhas de transmissão, se comprometeram a responder em 30 dias quais serão encaminhamentos para solucionar as violações que estão sendo cometidas durante o processo de concessão de licenças, implantação e produção.
Os organizadores do evento entregaram aos representantes dos órgãos licenciadores e fiscalizadores, dentre eles o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) e da Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), um dossiê (leia a íntegra do documento) que contextualiza a expansão desenfreada do setor de energias renováveis na Bahia e no Brasil. O documento relata casos de desrespeito às comunidades e aos direitos humanos; as estratégias para ludibriar quilombolas, ribeirinhos, indígenas, populações de fundo e fecho de pasto e ocupar as terras que pertence a eles; os aspectos econômicos; os danos ambientais; e projeta os prováveis cenários a partir da decisão de tornar o país exportador de “hidrogênio verde” e combustíveis sintéticos.
No relatório são relacionadas 34 reivindicações dirigidas ao Inema (10), CDA (4), Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual (8), Defensorias Públicas (7), Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (4) e Procuradoria Geral do Estado (1).
Também foi lançada oficialmente a página eletrônica dossiê energia renováveis, que disponibiliza as informações que constam no documento para toda a população e o aplicativo Atlas, baseado em bancos de dados públicos, com informações sobre os empreendimentos de energia em operação, em construção e planejados. Graças a este recurso a sobreposição de complexos eólicos e informações como o nome das empresas, localização e quantidade de energia gerada.
CURSO DE FORMAÇÃO
A preparação para a audiência pública começou em março de 2021, com a realização de um curso para lideranças comunitárias de 37 municípios, organizado pela Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), Comissão Pastoral da Terra Regional Bahia (CPT-BA), Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), Universidade de Recursos Naturais e Ciências da Vida (BOKU – Viena, Áustria), Projeto reFuel (Viena-Áustria), Agência 10envolvimento e Grupo de Pesquisa GeografAR (UFBA). A formação se estendeu até junho de 2022 e permitiu a coleta dos dados do dossiê de energias renováveis.
Dos 12 órgãos e instituições fiscalizadoras e licenciadoras convidados para a audiência, quatro não enviaram representantes (Incra, Procuradoria Geral do Estado, Casa Civil e Secretaria do Meio Ambiente), em uma clara tentativa para esvaziar o evento. No entanto, a estratégia não teve sucesso. O evento contou com 120 participantes e 48 alunos da terceira série do curso técnico de meio ambiente, do Colégio Estadual Professor Tancredo Neves. Eles estavam acompanhados pela professora e engenheira ambiental Larissa Santana.
“Nosso objetivo é que os estudantes pensem de uma forma crítica as energias sustentáveis. Muitos deles vão trabalhar com licenciamento, portanto, é fundamental que se familiarizem com esta questão” – disse Larissa
A audiência começou com o depoimento de moradores de comunidades tradicionais. Eles deixaram evidente que não questionam a importância e a necessidade da mudança de matriz energética de poluente para não poluente. No entanto, ressaltaram que, embora apresentada como “energia limpa”, ela não deixa de causar grandes impactos no meio ambiente, nas comunidades e no modo de vida dos povos tradicionais.
Maria Edna de Souza, da comunidade Morro Redondo, no município de Seabra, acusou a CDA de apoiar a invasão das empresas de energia eólica. Ela se queixou que a coordenação mudou a medição feita há 12 anos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“A CDA tirou as nascentes de água e a área de nossas roças. Perdemos metade do território. A mudança foi feita para favorecer a empresa de energia. Não queremos a implantação do projeto. Nós não os convidamos” – disse.
Ela também se queixo que o título de propriedade já devia estar na nossa mão da coletividade há anos, mas o processo não anda.
Já Luiz Carlos (foto no alto da página), representante da comunidade de Fundo e Fecho de Pasto de Bom Jardim, em Canudos, fez uma apresentação sobre os impactos causados pela empresa francesa Voltália, cuja linha de aerogeradores está distribuída na área de 12 comunidades, 11 em Canudos e uma em Jeremoabo. Segundo ele, as 600 famílias instaladas na região sobrevivem de extrativismo de baixo impacto (sementes e ervas medicinais) e criação de animais soltos na caatinga.
“Todas as comunidades são certificadas pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). O direito territorial é garantido, mas a gente está vendo que estamos sendo, invadidos. Além disso, o empreendimento está na rota de aves em risco de extinção, como a arara-azul-de-lear (clique aqui para ler mais sobre o tema), e as árvores onde elas se alimentam, os licurizeiros, estão sendo derrubadas” – relatou.
O líder comunitário relatou ainda promessas feitas e não cumpridas pela empresa, como o número de empregos que seriam criados e a omissão da informação de que seriam postos temporários e não permanentes. A utilização de terras griladas, especulação imobiliária, restrição do direito de ir e vir e táticas de negociação isolada e não coletiva para dividir a comunidade.
Luiz lembrou que em junho de 2021, o Ministério Público estadual recomendou a imediata paralisação das obras e a anulação do licenciamento ambiental por causa do descumprimento de leis que preveem a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima), mais aprofundado do que o levantamento de médio impacto realizado. No entanto, a Voltália manteve as obras e já instalou 28 aerogeradores, com possibilidade de mais avançar ainda mais em Bom Jardim e região.
Denísia e Fernanda, ribeirinha da comunidade de Morrão, em São Desidério, e presidente da associação de pescadores artesanais de Barreiras, trataram da instalação de PCHs e dos danos causados na Bacia do Rio Grande.
“A gente vivia tranquila na comunidade até 2010, embora pivôs das grandes fazendas causassem problemas. Mas após a implantação da PCH Sítio Grande, não tivemos mais sossego porque implantaram PCH, fechando Sítio Grande. Ela é instalada no rio das Fêmeas. Passamos a ter que caminhar dois quilômetros para poder pegar água. Nos períodos de seca, o escoamento das águas do rio das Fêmeas é retido e liberado, sem aviso, horas depois, arrastando o que está nas margens e colocando em risco as crianças, principalmente” – contou.
A preocupação aumentou depois que foi anunciada a construção de outra PCH a cinco quilômetros de distância. Segundo a ribeirinha, as comunidades de Palmeiral e Beira Rio ficarão com acesso limitado às fontes. Além disso, uma mistura leitosa foi despejada no rio, mudando a coloração da água.
“Não se engane, embora tratem PCH como pequena central hidrelétrica, ela é pequena na geração de energia, mas causa grandes danos ambientais. Ela atinge os peixes e as lagoas. No período da piracema, os peixes entram nas lagoas para reproduzirem. Quando ele baixa, a tendência é a água secar e os animais morrerem”, acrescentou Fernanda.
A presidente da associação de pescadores lamentou a forma como o estado tem explorado os recursos naturais, sem levar em conta os prejuízos da pesca e da navegação, sem avisar previamente aos moradores a instalação das pequenas hidrelétricas.
“O que vemos é o racismo ambiental, impregnado nas entranhas do governo. O Oeste da Bahia tem que parar de ser visto como exportador de grãos, nós somos produtores de água e queremos respeito” – criticou.
Flausino Pereira e Franciel, da Porteira de Santa Cruz, entre Serra Dourada e Baianópolis, denunciaram que estão tentando expulsá-los de suas terras para instalação de um parque solar, sem levar em conta que são produtivas. A comunidade fornece farinha de mandioca para cinco municípios alguns integrantes foram ameaçados de morte. Ameaças também ocorrem em Gentio do Ouro. Adriana Alves, do quilombo Silvério, contou que houve desmatamento e ameaças durante a instalação de uma rede de transmissão no local.
Na etapa seguinte da audiência, representantes das entidades que organizaram o curso para as lideranças e convocaram a audiência, detalharam o processo e apresentaram sugestões de que é possível produzir energia com menos impactos. Carivaldo Ferreira, da CPT Bahia, citou como exemplo o modelo de grande impacto, instalado em Oliveira dos Brejinhos. Lá, foi construído o segundo maior parque solar da América Latina, com 1.075.200 placas solares.
De acordo com Carivaldo, levando em conta dados da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), a mesma quantidade de placa poderia ser instalada em 179.200 residências – em média, cada uma utiliza seis placas -, produzindo a mesma quantidade de energia, sem derrubar uma árvore sequer.
A representante da AATR, Natiele Santos, falou dos aspectos jurídicos relacionados à produção de energia eólica e seus impactos. Relatou irregularidades no processo de regularização de territórios, casos de ameaças, grilagem e de contratos abusivos. Abordou ainda problemas gerados pela Instrução Normativa (IN) de janeiro de 2020, assinada pelos secretários estaduais de Desenvolvimento Econômico, Desenvolvimento Rural, Procuradoria Geral do Estado e CDA.
Dentre as violações que ocorrem aproveitando fragilidades da IN estão a não realização de consultas prévias às comunidades; o descumprimento a uma lei estadual que não inclui eólicas entre as atividades permitidas em territórios tradicionais; o desrespeito ao modo de vida dos povos; e a não inclusão da Sepromi nos processos.
Carolina Ribeiro do GeografAR, resumiu os problemas econômicos advindos da falta de regulamentação das negociações entre empresas e comunidades, incluindo o pagamento irrisório pelo arrendamento de terras. Ela também esclareceu que o propagado aumento de arrecadação dos municípios só se dá na fase de construção e é reduzido bruscamente em seguida. Sobre empregos, ressalvou que a maioria é temporária.
Já Johannes Schmidt, professor de energia da Universidade de BoKu e pesquisador do grupo re-Fuel, advertiu que a demanda europeia por hidrogênio verde, obtido a partir da eletricidade gerada por fontes de energias renováveis, ampliarão a pressão por mais territórios e os conflitos.
POLÊMICA
As críticas feitas à Instrução Normativa foram as que causaram mais debate entre os participantes dos órgãos públicos. A analista jurídica da CDA, Samanta Menezes, refutou a acusação de que a coordenação é parceira das empresas de energia renováveis. Ela ressaltou que a atual estrutura do órgão tem apenas cinco funcionários para cuidar de toda a Bahia e assumiu também a função de regularização fundiária de comunidades indígenas, no Sul do estado.
Com visão bem diferente da AATR, Samanta contou que a instrução normativa começou a ser elaborada em 2017 para evitar que as empresas declarassem que os processos eram individuais, quando na verdade se tratava de regularização coletiva de povos tradicionais.
“Em parceria com a SDE e PGE, a CDA construiu essa IN, que hoje é um dos nossos nortes para mapear as comunidades tradicionais no estado. A gente sabe que elas existem, mas nem sempre sabemos a localização. A instrução normativa permite que possamos dar um suporte a regularização dessas comunidades, garante o direito dos povos tradicionais e posseiros individuais” – frisou.
Samanta reconheceu que as eólicas são uma política de governo de estado para regularizar as áreas onde as eólicas serão instaladas e que a IN serviu para atender os dois lados, empresas e comunidades. Ela criticou ainda a resistência das Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto para assinatura dos contratos de concessão de direito real de uso, que seria a finalização do processo de regularização.
Sobre a divergência na definição do perímetro do quilombo de Morro Redondo, Samanta disse que quem determina os limites é a comunidade. E que se a medição do Incra foi refeita é porque alguém da comunidade apresentou ao engenheiro da CDA a metragem. No entanto, disse que a questão será resolvida com uma visita técnica.
Já a promotora Luciana Khoury, titular de Paulo Afonso, considerou os problemas relatados como de muita gravidade. E os comparou ao caso de violência contra os moradores da coletividade de Fundo e Fecho de Destocado, em Santa Maria da Vitória, que não está relacionado a empresas de energia. No dia 14 passado, um grupo de 10 milicianos e grileiros invadiu o local, portando armas pesadas, expulsando moradores e ateando fogo nas casas.
“É preciso que contemos com os órgãos representados na mesa dessa audiência e as demais estruturas do estado para coibir este tipo de violência” – conclamou.
Sobre a questão da Voltália, em Euclides da Cunha e Canudos, a promotora disse que haverá uma audiência nesta sexta-feira para tentar chegar a um acordo com a empresa. Ela antecipou que o Ministério Público identificou problemas no licenciamento concedido pelo Inema e que se as partes envolvidas não reverem a questão, o MP entrará com uma media judicial para que novos estudos sejam feitos e a licença concedida perca a validade.
Representantes dos outros órgãos, elogiaram a iniciativa da formação, elaboração do dossiê e da audiência pública. O representante do Inema, Victor Fernando Silva Souza, permaneceu calado diante das críticas feitas ao órgão.
Os demais representantes das entidades e órgãos públicos foram Ronaldo Nascimento (Secretaria de Desenvolvimento Rural), João Melo (Defensoria Pública Estadual), Igor Cláudio Silva Miranda (Ministério Público Estadual), Diana Carla Miranda Carvalho (Ministério Público Federal) e Marcelino Galo (Frente Parlamentar Ambientalista).
A última etapa da audiência abriu espaço para a participação popular. Nesta etapa, foram citados outros problemas como a perda de direitos das mulheres; a falta de providências para evitar consequências sociais como as que ocorrem com os “filhos do vento”, crianças que são abandonadas pelos pais após as conclusões das obras, dentre outras.
Ao final do evento, a estudante Maria Eduarda Souza, do Colégio Estadual Professor Tancredo Neves, considerou o evento muito importante, apesar da ausência de alguns entes estaduais e federais.
“Mesmo que tenham faltado, eles terão conhecimento do que foi relatado aqui e terão que buscar uma solução para os impasses. Creio que pode haver dificuldades, mas muita coisa será resolvida” – disse a jovem quilombola, que se prepara para fazer Enem e entrar em uma faculdade de direito.
(*) Reportagem feita em parceria com a CPT-BA