No Brasil, a sobreposição de um cenário político conturbado a uma realidade de vulnerabilidade social vai deixando um trágico rastro de destruição. Ao chegar à Amazônia, a Covid-19 aprofunda uma série de problemas já colocados para a região.
Por Raione Lima Campos - Advogada popular da CPT e Tatiana Oliveira - Assessora política do Inesc / Via Inesc
Foto: Leonardo Prado
Quando pensamos sobre a entrada do coronavírus na Amazônia, a pergunta que precisa ser feita é sobre o contexto em que a doença atinge o território. O passado recente pode responder a algumas perguntas sobre o quão grave serão os efeitos da pandemia para a região. No Brasil, a sobreposição de um cenário político conturbado a uma realidade de vulnerabilidade social, mais o medo e a incerteza causados pela doença, vai deixando um trágico rastro de destruição.
Ao chegar à Amazônia, a Covid-19 aprofunda uma série de problemas já colocados para a região. Após eleição e posse do presidente Jair Bolsonaro, observamos o aumento da violência no campo; índices alarmantes de desmatamento; intensificação da grilagem de terras e da ação de madeireiros; o avanço dos megaempreendimentos em infraestrutura logística; e a impunidade de empresas, nacionais e estrangeiras, cuja atuação traz impactos negativos, muitas vezes irreversíveis, para a natureza e para o bem-estar da população.
Quem vive e circula pelo norte do país sente o peso do discurso oficial, que chega de Brasília e aterrissa sobre as cidades amazônicas. Um clima nervoso se instalou sobre o território, dando indícios de que as provocações bolsonaristas e os ataques sistemáticos à floresta e aos seus povos contribuem para o aumento significativo da violência. É como se aqueles que apoiam o governo se sentissem autorizados à prática da violência. Mas se sentir não for o bastante para descrever o que acontece no norte do país, um levantamento, feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos oferece os números.
Números da violência
Lançado, em abril, pela CPT, o relatório registra a série histórica dos conflitos no campo brasileiro. A edição de 2020 confirmou a tendência, já observada em anos anteriores, de que a Amazônia Legal é onde se concentram os maiores índices de conflito e violência no campo. No entanto, os dados apresentados no documento mostram que a situação se agravou muito em 2019.
>> Acesse aqui o Relatório da CPT
Naquele ano, o norte do país concentrou 84% dos assassinatos de pessoas, equivalentes a 27 de um total de 32 em todo território nacional; 73% das tentativas de assassinato (22 de 30); e 79% dos ameaçados de morte (158 de 201 pessoas). Além disso, 84% das famílias da região sofreram alguma invasão de terra ou das suas casas. O relatório aponta, ainda, para o aumento da violência contra mulheres e indígenas; denuncia a milicianização da Amazônia e chama a atenção para a intensificação dos conflitos por água e para o recrudescimento de relações de trabalho que podem ser consideradas como análogas à escravidão.
O grau de violência registrado pelo caderno da CPT deve ser considerado tão grave quanto o desmatamento, que recebe maior cobertura dos veículos de comunicação tradicionais. Frequentemente, as duas coisas estão conectadas. Na comparação com o ano anterior, observamos o aumento expressivo, superior a 50%, dos alertas de destruição florestal em 2020. Até o final de março deste ano, 796 km² haviam sido desmatados contra 526 km² no mesmo período de 2019. A sabedoria que corre os rios e igarapés amazônicos cochicha: as forças de destruição da floresta não estão em quarentena nem fazem home office.
A ação de grileiros, garimpeiros e madeireiros ajuda a explicar a intensificação do desmatamento durante a estação de chuvas na Amazônia, isto é, no primeiro trimestre do ano. Mas a isto devemos acrescentar ainda a redução drástica das ações de fiscalização pelos órgãos públicos, por um lado, consequência do isolamento social; e, por outro lado, resultado dos cortes orçamentários destes órgãos ao longo dos últimos dois anos.
Asfixia orçamentária
Aumento da violência e do desmatamento, bem como a fragilização da governança e da fiscalização socioambiental no Brasil são elementos da conjuntura que foram capturados por outro estudo, desta vez, conduzido no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O relatório faz um Balanço do Orçamento Geral da União, relativo ao ano de 2019. No documento, o Inesc alerta para a relação entre a restrição do orçamento de vários órgãos governamentais, a ineficácia das ações de fiscalização, o desmonte da governança socioambiental e o aumento do desmatamento, além de outros crimes ambientais.
>> Acesse aqui o Relatório do Inesc
No Balanço, lê-se que o Ministério do Meio Ambiente perdeu 8,5% do seu orçamento entre 2018 e 2019 e 20% entre 2012 e 2019. Em 2019, os recursos do órgão não ultrapassaram 0,11% do Orçamento Geral da União. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a taxa de crescimento do desmatamento nas unidades de conservação federais, sob responsabilidade do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), foi de 84% entre agosto de 2018 e julho de 2019. A asfixia orçamentária prejudica a execução de políticas públicas, mas também se vincula a iniciativas legislativas e disputas intraburocráticas que perturbam ainda mais a dinâmica territorial local.
Agenda legislativa e política burocrática
No Legislativo, em meio à pandemia da Covid-19, deputados da bancada ruralista, composta pela elite agropecuária e extrativista, tenta aprovar o maior roubo de terras públicas da história do Brasil, a Medida Provisória n. 910/2019. A medida prevê a legalização da ocupação irregular de terras públicas sem destinação em até 2.500 hectares e amplia o marco temporal para a regularização das propriedades. É a segunda vez, em três anos, que esse critério é alterado. Em 2017, o governo de Michel Temer já havia aprovado uma lei para flexibilização das regras sobre a regularização fundiária. Por isso, especialistas insistem, uma nova determinação nesse sentido incentiva a grilagem (ou falsificação de documentos comprobatórios de propriedade). A MP, que se encontra na Câmara dos Deputados, caduca em 19 de maio, mas os meios de comunicação relatam enorme pressão para o cumprimento dos prazos.
Nessa mesma direção, em 16 de abril, a Funai (Fundação Nacional do Índio) emitiu uma Instrução Normativa n. 9 que orienta órgãos públicos a reconhecer como terras indígenas somente aquelas com demarcação concluída. Ao fragilizar o reconhecimento costumeiro do perímetro de terras indígenas não demarcadas, a Funai põe em risco a vida dos povos indígenas e contribui para piorar uma situação de conflitualidade que já é intensa. O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) emitiu nota exigindo a revogação da medida. Da mesma forma, o MPF recomendou ao presidente do órgão a anulação da Instrução. A Funai respondeu ao Cimi com um novo ataque, que, por sua vez, torna notória a guinada do órgão no sentido contrário do seu mandato legal.
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No início de abril, o diretor do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, suspendeu a necessidade de autorização, concedida pela agência, para a exportação de carregamentos de madeira. A decisão ignorou o parecer técnico de cinco analistas do órgão. Ela se dá na sequência de uma notificação emitida por autoridades estrangeiras, endereçada ao governo brasileiro, de que carregamentos de madeira estavam chegando em seus países sem registro de origem legal. O caso já havia sido denunciado pela agência de notícias Reuters. Embora o mercado brasileiro seja o principal destino da madeira ilegal, a Interpol estima que esse comércio movimente cerca de 150 bilhões de dólares por ano. África e América Latina são enclaves do comércio ilegal de madeira.
Investimentos e megaobras
Outra marca da política bolsonarista para a região amazônica é a retomada do projeto de ocupação territorial adotado, no passado, por governos militares. Com o lema “integrar para não entregar” (a região para “agentes estrangeiros”), essas políticas, responsáveis em parte pela criação de assentamentos agrários, deslocaram pessoas de todo o país para a Amazônia entre as décadas de 1960 e 1970. A construção de infraestrutura no coração da floresta Amazônica também foi responsável por ciclos de dizimação de povos indígenas afetados por essas megaobras, porque alteraram o uso da terra e trouxeram doenças desconhecidas pelas comunidades. As suas consequências se arrastam até hoje.
O conflito fundiário cristalizado em torno desta história deixa inúmeras famílias sob grave insegurança jurídica quanto à posse das terras onde vivem, uma situação que piorou com o avanço do interesse especulativo sobre a região. Bolsonaro e sua equipe anunciaram um “novo ciclo de investimentos” para a Amazônia que deverão ser estruturados com base nas diretrizes do PPI (Programa de Parcerias e Investimentos) do governo federal. Com isso, o objetivo do governo é revitalizar o chamado “Arco Norte”, região de potencial logístico portuário, como eixo preferencial para a exportação de grãos e minérios ao mercado externo. Como no passado, os efeitos desse novo esforço de colonização do território amazônico têm sido graves violações de direitos humanos e predação ambiental.
Desmatamento e violência
O aumento do desmatamento em 2020, não obedece ao mesmo padrão que no ano anterior, quando os índices elevados refletiam, em boa medida, uma característica sazonal do bioma amazônico, a seca. Os novos índices alertam para o fato de que nenhuma explicação para a devastação florestal é suficiente se desconsiderarmos a presença dos povos que nela habitam, as disputas em torno do uso do solo, do desenvolvimento regional e os modos de vida conflitantes. Devemos tratar o aumento do desmatamento na Amazônia, como um problema socioambiental. Há que se dialogar com a realidade dos povos que vivenciam, na prática, toda ofensiva de degradação ambiental.
A chegada da covid-19 na região adicionou a camada da crise humanitária a outra crise já instalada e diretamente relacionada às decisões (e declarações) do atual governo, as quais vem colocando em risco a vida das pessoas, seus modos de vida e o meio ambiente. O isolamento social alargou o espaço para todo tipo de atividade ilegal na região, mas, somado às iniciativas legislativas que facilitam roubos de terras, vem favorecendo também o desmatamento e o aumento da violência no campo. Está é uma violência contra mulheres e homens que defendem um modo de vida baseado na preservação ambiental e sustentável, opondo-se à lógica da exploração predatória da floresta e dos recursos naturais.