Massacre ou batalha? A história mal contada de um dos piores conflitos agrários do Brasil pós-ditadura ganha uma nova chance de se conciliar com a realidade em “Corumbiara, caso enterrado”.
(Editora Elefante)
“Esta história começa com uma certeza. E termina com muitas dúvidas.” A frase que abre Corumbiara, caso enterrado é um convite ao leitor para deixar para trás preconceitos e verdades absolutas. O livro-reportagem, lançamento da Editora Elefante, propõe-se a passar a limpo a narrativa sobre o chamado “massacre de Corumbiara”, episódio prestes a completar vinte anos, ainda com muitas dúvidas e questões em aberto.
Em julho de 1995, famílias do sul de Rondônia em busca de terras ocuparam a fazenda Santa Elina, em Corumbiara, um gigante de 18 mil hectares. No cumprimento do mandado de reintegração de posse, ocorreu um conflito que deixou doze mortos. Cinco anos mais tarde, três policiais e dois sem-terra foram condenados. Esse resumo pode ser encontrado em qualquer reportagem sobre os fatos.
O essencial de “Corumbiara, caso enterrado” é cavocar além das aparências, dos números, da superfície. O jornalista João Peres, autor do livro, entrevista sem-terra, policiais, políticos, advogados, integrantes de movimentos sociais, promotores e juiz. Revisa processos e documentos. Promove o cruzamento de dados para tentar oferecer ao leitor um conjunto que permita formar a própria opinião. Busca romper a dicotomia empobrecedora que tenta a tudo enquadrar: bons e maus, amigos e inimigos.
Fruto de três anos de trabalho, a história cruzou o caminho de Peres com uma entrevista misteriosa e tensa realizada em 2011: um sem-terra condenado pelo caso, que se recusa a cumprir a pena por considerá-la injusta. De lá para cá, foram idas e vindas por Rondônia, com dezenas de entrevistas que acabaram forçando o jornalista a se livrar de seus preconceitos, convite que agora estende aos leitores. A questão central do livro reside em entender como inúmeros fatores se cruzaram até redundar na tragédia de 1995 e, dali por diante, numa investigação inconclusa, num contestado julgamento, em comportamentos estranhos.
Rondônia, famosa pela ferrovia Madeira-Mamoré e por integrar a mítica da Amazônica idílica, começa a se transformar no que é hoje durante a ditadura. Sem o convite do regime para que pobres e latifundiários se encontrassem em uma terra de baixa presença institucional, os fatos da Santa Elina jamais teriam ocorrido.
Um dos personagens mais obscuros da trama também é fruto do governo militar, de quem ganhou 43 mil hectares, equivalente a um quarto da cidade de São Paulo. Motivo de operações de combate ao trabalho escravo desde a década de 1980, suspeito de presentear um policial envolvido no comando da operação de reintegração de posse em Corumbiara, vai ganhando contornos assustadores ao longo do livro.
À margem dele, diferentes grupos políticos e ideológicos entraram em disputa ferrenha pelo significado dos fatos ocorridos em 1995. Batalha ou massacre? A contenda pela herança da Santa Elina não é uma mera oposição entre sem-terra e policial. Um embate que ainda está em aberto. Como estão em aberto muitas das versões da história. O silêncio do governador à época dos fatos, a resposta do Brasil a uma cobrança internacional por um novo julgamento e a indenização às vítimas de violência são três de várias passagens que o livro busca explicar.
Os motivos para o caso ter ficado praticamente esquecido nos últimos anos também são abordados. “Corumbiara, caso enterrado” é uma nova chance para resgatar a história de uma página importante do Brasil pós-ditadura. E entender por que ela é tão atual.
Ficha técnica
Corumbiara, caso enterrado
Autor: João Peres
Fotos: Gerardo Lazzari
Preço: R$ 30
Editora: Elefante
Páginas: 304
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Sobre o autor
João Peres é jornalista com experiência em reportagem, chefia e edição em alguns dos principais meios de comunicação do país. Cobriu eleições, consultas populares e momentos de crise no Brasil, na Argentina, na Venezuela, na Colômbia e na Bolívia. No interior do país, fez reportagens sobre direitos humanos, agricultura, agrotóxicos e relações de trabalho. Em 2010, recebeu menção honrosa no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, promovido pela OAB-RS, pelas reportagens sobre o trabalho de dom Paulo Evaristo Arns contra a ditadura.