Construção de cisternas e adutoras são demandas antigas, mas que só recentemente foram consideradas pelos governos como solução para a convivência com o semiárido. Nesta seca, considerada uma das piores dos últimos anos, ficou claro que a voz do povo do semiárido precisa ser ouvida o quanto antes. Em entrevista a ADITAL, Roberto Malvezzi, o Gogó, falou sobre a quantas andam as políticas hídricas para o semiárido, chamou a atenção para a falta de água também nas cidades urbanas e abordou o comportamento do governo nesse contexto.
Malvezzi participou da oficina sobre água no VIII EnconASA, que terminou hoje (23), em Januária, Minas Gerais.
Adital - Estamos passando por mais um período de seca, considerada uma das mais críticas dos últimos anos. No que se avançou em termos de políticas hídricas?
Roberto Malvezzi - Nessa seca que estamos vivendo no semiárido, nesse período que é considerado um das piores nos últimos 30 40 anos, paradoxalmente ela é ótima porque ela testa aquilo que a gente vem defendendo como politica, inclusive hídrica, de convivência com o semiárido.
Na avaliação que temos é o que fez a diferença de 30 anos atrás com a seca atual. Se você for comparar a infraestrutura para se atravessar um período como este, na verdade a única infraestrutura totalmente inovadora foi a construção dessas 400 mil cisternas de água de captação para beber. Isso já fez uma diferença enorme.
É claro que isto está aliado a algumas políticas de salário mínimo do Governo, com a aposentadoria, tem a questão do próprio Bolsa Família. Dizem, inclusive, que o programa ‘Luz para Todos’ possibilitou mais mecanismos de conviver com a seca do que há alguns anos atrás. O pessoal avalia que até a questão do transporte é mais avançado. Algumas famílias não precisam mais do carro pipa, eles podem pegar seus transportes e buscar água.
Isso pelo menos evitou aquelas coisas mais terríveis dos grandes períodos de seca com grande mortalidade, o genocídio humano. Evitou o grande êxodo. Tem gente saindo, mas não é com a proporção de outras épocas.
Adital – Isso é suficiente? Este cenário poderia ser melhor?
Roberto Malvezzi - A gente dá conta de que não é suficiente. O cenário poderia ser muito melhor. Pelo menos aquela família do meio rural ainda tem uma cisterna, tem água pra beber e uma para produzir. Mas ainda estamos longe. E, agora, prejudicados com essa questão imediatista das cisternas de plásticos.
Adital – Mas houve uma mobilização grande quando se colocou a proposta das cisternas de plásticos. Isso também significa alguma mudança...
Roberto Malvezzi – Sim, é um reflexo de uma nova compreensão das coisas. O Governo tem suas contradições internas e isso foi um retrocesso absurdo. Mas houve reação.
Adital – E em que pontos ainda se precisa avançar?
Roberto Malvezzi - A gente não conseguiu evitar grande perda de parte do rebanho. Mas não tanto quanto há 30, e agora praticamente a perda da safra é quase total. Mas na verdade isso se dá porque se continua plantando o que é inadequado para o semiárido. A questão da safra de milho, safra de feijão... historicamente já é comprovado que se tira uma em cada 10. O ideal é pegar uma agricultura mais adequada ao semiárido, mas resistente aos períodos de estiagem. Precisávamos estar mais preparados.
A grande novidade desse período é a ameaça do colapso hídrico no meio urbano. Temos várias cidades que estão ameaçadas de secar a fonte de abastecimento, os açudes ou agua subterrânea. É que muitas vezes a água dessas barragens está sendo usada para irrigação. No caso de muitos municípios, como na Bahia, os governos não se preveniram para algo que estava previsto para começar em 2006 e terminar em 2012 ou 2013. Quando se sabia de uma seca prevista, o uso da água deveria ter sido prioritariamente reservado para uso humano. Por isso agora tem municípios que estão em risco de desabastecimento. Mas o que tiramos disso tudo? O que a gente sempre demandou do governo, que são as adutoras para o meio urbano. A gente sempre dizia que a transposição [do Rio São Francisco] não era a obra para resolver os problemas do meio urbano, que as adutoras eram a melhor solução, diagnosticadas pela Agencia Nacional das Águas e catalogadas pelo próprio Atlas do Nordeste. O governo nunca admitiu isso, mas agora pressionado pelo risco de colapso hídrico em grandes cidades, como é o caso de Vitória da Conquista, na Bahia, o governo começou a fazer as adutoras, e faz numa velocidade impressionante.
No fundo, não queremos disputar quem é que tem razão. Mas a política hídrica correta de captação de água de chuva e das adutoras para os meios urbanos que a gente sempre defendeu é aquela que se mostra mais adequada e a fragilidade está justamente onde essas coisas não foram feitas, onde não tem cisterna, não tem adutoras.
Adital – É uma necessidade ou governo está pressionado a acolher essas ideias já pautadas e demandas pelas organizações, pelos povos do semiárido?
Roberto Malvezzi - Acho que na contradição o Governo está tendo de realizar essas ações. Na contradição muitos governos estão tendo que fazer as adutoras, os governos estaduais assumiram a construção de cisternas de placas. Mas temos aí um paradoxo. Temos um Ministério de Integração que quase liquida com o Programa 1 Milhão de Cisternas [P1MC] para fazer cisternas de plástico.
Adital – Diante de todo esse contexto se reafirma a eficácia de abastecimento com a transposição do São Francisco?
Roberto Malvezzi - A transposição do rio São Francisco, que muita gente está dizendo que vai ser a salvação do Nordeste vai se comprovando que é uma obra que não existe do ponto de vista operacional prático e não é ela quem vai botar água nos municípios. Para fazer isso o governo teria que fazer a distribuição da água mais capilar pelas adutoras, como fez em Aracaju, no sertão de Pernambuco, na região de Luiz Gonzaga. Com uma simples adutora é possível abastecer 13 municípios. Estão fazendo agora a adutora de Pajeú, que sai de Floresta e segue paralelo ao São Francisco. Tinham abandonado essa adutora porque iam fazer o eixo leste da transposição. Como não saiu, estão sendo obrigados a construir a adutora que vai até Afogados, de Ingazeiras, que é para transpor e cair no sistema de água de Campina Grande. Se tivessem feito isso, Campina Grande estaria abastecida. Não fizeram e preferiram a grande obra. Então na contradição o Governo está sendo obrigado a responder.
A dúvida que temos é que daqui a pouco volta a chover, a encher os açudes, as cisternas... E aí? Nós vamos continuar criando uma infraestrutura adequada para enfrentar períodos mais agudos ou vamos voltar a deixar isso no esquecimento para que volte a 20 30 anos quando tivermos novamente uma grande seca. Isso vai depender da politica do governo.
Adital – Nesse processo como você vê a participação dos movimentos sociais, das organizações de agricultores e agricultoras?
Roberto Malvezzi - Mudou positivamente. A consciência sobre a captação da água, do cuidado com a água da população que precisa desse tipo de obra melhorou muito. Agora a gente percebe também o contrário nos projetos de irrigação onde há um enorme desperdício de água, ou em certas culturas com a criação de camarão em cativeiro, onde se utilizam 50 mi litros de água para criar um quilo de camarão.
Esses absurdos são patrocinados pelas próprias politicas de desenvolvimento do governo. Acho que o governo não tem coragem de olhar para si mesmo e tentar encarar suas próprias contradições.
Mas regra geral essa seca faz um teste na lógica da convivência com o semiárido nos dando razão. É por aí, na multiplicação dessas pequenas obras e com as adutoras que a gente vai se prevenir para esses futuros mais agudos. Sempre vai ter alguma emergência aonde tem seca. O que não pode acontecer é que no dia a dia seja uma emergência permanente.