COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

padre chicaoAos 78 anos de idade e há 5 de volta à sua cidade natal, Carpi, na Itália, o padre Francesco Cavazzuti desembarcou em Goiânia na semana passada para participar das celebrações que lembram os 25 anos do atentado que o deixou cego dos dois olhos. O crime, ocorrido na noite do dia 27 de agosto de 1987, no município de Mossâmedes, a 150 quilômetros de Goiânia, na Região do Mato Grosso Goiano, entrou para a história goiana como um dos marcos da luta pela reforma agrária. Confira a entrevista

De Malu Longo para O Popular

 

 

Muito lúcido e com as marcas da violência no rosto, o padre Chico como ficou conhecido nas paróquias por onde passou, é um brincalhão, mas ainda se emociona ao falar da experiência que viveu.

Hoje, em Goiânia, ele se faz uma celebração íntima na casa de uma das pessoas que o acompanharam em sua trajetória na Comissão Pastoral da Terra (CPT). No sábado, padre Cavazzuti estará na cidade de Goiás onde, às 20 horas, haverá uma celebração no Centro Diocesano. E, na segunda-feira, quando se completam exatos 25 anos do atentado contra sua vida, ele vai celebrar uma missa na igreja paroquial de Mossâmedes.

Após o atentado, padre Cavazzuti se recuperou em São Paulo (SP) e na Itália e voltou para Mossâmedes, onde continuou como pároco até 2002. Depois, foi para Itapirapuã, de onde saiu há cinco anos para retornar à Itália.

Ontem, na sede da Comissão de Justiça e Paz dos Dominicanos, em Goiânia, padre Chico recebeu a equipe do POPULAR. Ao seu lado estavam a irmã, a também religiosa Tereza Cavazzuti, que veio com ele da Itália, e os companheiros de uma longa jornada na atuação nos direitos humanos, Sebastião Donizete de Carvalho, Flávio Alves Barbosa e Vilma Ribeiro de Almeida, fiéis escudeiros que ainda sonham em tê-lo de volta.

 

 

“A luta pela justiça nunca é em vão”

 

Por Wildes Barbosa

 

O padre Francesco Cavazzuti relembra, em entrevista exclusiva ao POPULAR, o encontro com seu algoz, e diz que atentado foi contra a diocese. “Eles, os proprietários de terra, ficaram com raiva de mim e falaram: ‘Tem de tirar esse falador daí senão estraga tudo’.” 

 

Que avaliação o senhor faz desse processo todo 25 anos depois?

Examinando as coisas não apenas do ponto de vista social, mas do ponto de vista da fé Deus entrou de cheio nessa história. Ele não permitiu que se realizasse o plano dos homens que era matar. Deus salvou minha vida. Foi como se dissesse: “Eu sou dono da vida, não vocês”. E fez mais nesse ato de amor: acrescentou 25 anos para continuar a trabalhar na missão que ele me confiou quando fui ordenado padre, pastor da Igreja Católica.

Então, chegou a visitar o Marcelino Antônio, o homem que atirou no senhor? Foi um encontro difícil?

Foi em Mossâmedes, antes da transferência para a cadeia em Goiânia. Terminei de celebrar a missa e saindo, estava de mãos dadas com um jovem e eu disse que gostaria de visitar o Marcelino na cadeia. Já no corredor, diante da cela, eu o cumprimentei, ele respondeu e depois me disse: “Sinto muito ter cegado o senhor. Eu devia matar. Me pagaram para isso”. Aí segurei a mão dele e disse que ele tinha me feito um mal muito grande que levaria para a vida toda, mas o perdoava. E disse que de mim ele não poderia ter medo, porque não arrumaria ninguém para fazer vingança e até chamei para tomar um café juntos, mas lembrei que a lei civil, a lei do país, ele teria de enfrentar. Segundo o jovem que estava comigo, ele voltou para a cama, abaixou a cabeça e disse: “Padre, não venha mais aqui”.

Foi muito difícil a perda física sofrida pelo senhor?

Sim, a perda das vistas foi um problema muito sério, mas depois de um certo tempo passei a reconhecer os lugares onde morei, as ruas e as casas. Em Mossâmedes quase sempre andava sozinho. Ao longo do caminho encontrava crianças que me acompanhavam.

Na época, o Marcelino alegou que tinha atirado porque o senhor se negou a batizar os filhos dele. Como o senhor analisa essa versão?

O atentado foi pela vida pastoral da diocese. Eu acredito que por força das orações da igreja, na justiça do Evangelho e obrigação da igreja de realizar na medida do possível de realizar essa justiça para mostrar que o reino de Deus chegou. E foi essa pregação da justiça que irritou essas pessoas. Eles, os proprietários de terra, ficaram com raiva de mim e falaram: “Tem de tirar esse falador daí senão estraga tudo”. Por isso inventaram três processos contra mim - um em Jussara, outro de Goiás e outro em nível federal - e a acusação era sempre a mesma: eu era comunista, subversivo e revolucionário. Meu advogado disse ao acusador que se eu era comunista, tinha que mostrar a carteirinha do Partido Comunista. Era uma acusação sem provas.

Nesses 25 anos o senhor acompanha esses fatos? O que aconteceu com a pessoa que atirou no senhor?

Sim. O pistoleiro, condenado a 12 anos, ficou quatro anos na cadeia e foi solto por bom comportamento. Ele foi para Rondônia e me contaram que comprou uma grande fazenda com o dinheiro que recebeu para me matar. Pagaram muito bem. Não temos provas, mas falamos para a polícia que tinha sido os mandantes, eles foram ouvidos, mas nunca incomodados.

Nesses 25 anos a Igreja Católica mudou muito. A Renovação Carismática Cristã avançou assumindo o lugar das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Como o senhor analisa isso?

Eu tenho conhecimento de que certos setores da Igreja Católica no Brasil foram calados, pediram para ficarem mais quietos. Se conseguiram calar algumas hierarquias, os leigos não. Muitos que aprenderam conosco, nas CEBs, a justiça pelos mais pobres, eles continuam fazendo. Há uma lista de jovens em Goiânia, Mossâmedes, Sanclerlândia e Goiás que continuam nessa caminhada, graças a Deus. Continuam fazendo a justiça pelos mais pobres. A semente não morreu, continua brotando. É preciso que a justiça se torne o ideal desse mundo, o fermento da política, dos sindicatos, do trabalho para o bem do povo. Não tem justiça, não tem evangelho. Nós temos o comando do Cristo, filho de Deus, não de um Karl Marx qualquer. Eu sou revolucionário, sim, não em nome de Karl Marx, de Lênin, de Stálin, de Mao Tsé Tung. Não me interessa esses homens, mas Cristo sim.

A Renovação Carismática hoje tem um papel muito forte dentro da Igreja Católica.

Eu não gosto muito desses movimentos porque me parecem espirituais demais porque o homem não é feito só de espírito, mas também de matéria. E temos que tomar conta dos dois na mesma hora. Nós também damos valor à oração, ao espiritual, aos sacramentos, mas não paramos aí. Sabemos que tem gente que precisa comer para viver. Primeiro tem que matar a fome. As pessoas têm necessidades físicas e espirituais. Acho o trabalho da Renovação Carismática limitado. Nós não ficamos só no material, mas demos importância a ele porque era necessário para o espiritual continuar. Nosso povo é religioso e as pessoas precisam rezar, mas não é só, também precisa comer. Deus sabe que as pessoas precisam da oração, mas não podem esquecer do corpo.

Como está sua vida em Carpi?

Aos domingos e sábados ajudo os vigários em paróquias maiores, onde tem apenas um padre. Vou celebrar, fazer pregações, fazer palestras e confessar. Graças a Deus ainda tem muita gente que vai pedir perdão a Deus pelos seus pecados porque reconhece que tem falhas e precisa se livrar deles.

O senhor acha que a luta pela terra avançou no Brasil?

Sim. Eu mesmo tive a satisfação, antes de sair de Itapirapuã, de ver assentadas cem famílias que viviam em barracas na periferia. As famílias estão lá unidas e algumas já construíram suas casas, estão tirando o seu sustento da terra.

O atentado não foi em vão?

Não. A luta pela justiça nunca é em vão (choro).

 

 

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