“O Cimi, efetivamente, era e é ainda o único organismo não governamental que está presente em todas as regiões do país e junto a um expressivo número de povos”, assinala Antônio Brand, historiador. Fundado há 40 anos para garantir os direitos dos povos indígenas e denunciar os “atropelos” da ditadura militar e da construção da Transamazônica, o Conselho Indigenista Missionário – Cimi sempre teve a preocupação de “analisar e situar a questão indígena em termos nacionais ou como um problema nacional”, avalia Brand, que de 1983 a 1991 atuou como secretário geral da instituição. Para ele, “a marca principal da ação do Cimi nesses 40 anos foi a sua clareza quanto à importância para o futuro dos povos indígenas e de seus projetos de autonomia da garantia dos territórios”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Brand relembra os fatos históricos que culminaram na fundação do Cimi e destaca a influência da instituição nas transformações da Igreja brasileira. “Muitas dioceses e missões mudaram suas práticas pastorais em decorrência de sua vinculação com o Cimi, ou a partir dos programas de formação oferecidos aos missionários, que incluíam estudos de antropologia e história indígena e, em especial, como consequência do diálogo direto e aberto com as próprias comunidades indígenas, abrindo caminho para um protagonismo maior por parte desses povos também no interior da Igreja”, relata.Antonio Brand (foto) é graduado em História pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Tem mestrado e doutorado na mesma área pela PUCRS. É professor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande-MS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que contexto histórico e político foi fundado o Cimi?
Antônio Brand – Vou destacar alguns aspectos que considero os mais relevantes. Estávamos, em 1972, em plena ditadura militar e na década do assim denominado “milagre brasileiro”, período marcado pela construção da Transamazônica e por outras grandes obras, todas construídas sem ter em conta os direitos indígenas. Nesse avanço para o interior da Amazônia, com a abertura de estradas, muitos povos indígenas foram atropelados. Aliás, essa tem sido uma característica de todos os governos no seu esforço de impor a execução de seus projetos desenvolvimentistas. O argumento sempre é o desenvolvimento do país, que, discursivamente, objetiva o bem-estar de todos, embora nesse “todos” nunca estejam os índios, os quilombolas e demais milhares de sem terras. Muitas são as denúncias contra o atropelo dos direitos dos povos indígenas nesse período, especialmente na Amazônia, que repercutem muito no exterior. Destaco o livro Vítimas do Milagre, de Shelton H. Davis, de 1978.
Cabe lembrar, ainda, o Encontro de Barbados, em 1971, ocasião em que um grupo de antropólogos, frente ao atropelo generalizado dos direitos dos povos indígenas em todos os países da América e uma certa conivência, em muitos lugares, das próprias igrejas, propõe uma moratória para a ação missionária nesses países. Os questionamentos desse grupo de antropólogos provocam uma reação em muitos missionários, que percebem e concordam não com a proposta de moratória, mas com a necessidade de mudanças profundas na sua ação junto desses povos, rompendo com o modelo integrador seguido pelas políticas indigenistas estatais.
E aí cabe lembrar as mudanças na Igreja, com o Vaticano II (1962 a 1965), depois vem Medellin, com sua atenção nos pobres e em sua libertação, embora sem muita atenção aos índios. Ocorre, ainda, uma série de encontros da Igreja Missionária na América Latina. Em especial, o Encontro Ecumênico de Assunção, em 1972, já em resposta ao documento de Barbados. Penso que esses são alguns elementos que integram o contexto de surgimento do Cimi. Paulo Suess, em livro publicado em 1989, associa a fundação do Cimi também à elaboração de lei n. 6001 – o Estatuto do Índio, que interessava muito aos missionários.
IHU On-Line – Qual a contribuição e a influência da Igreja na formação do Cimi?
Antônio Brand – Em decorrência de sua posição de denúncia clara de todos os atropelos dos direitos indígenas, o Cimi vivenciou momentos de muita tensão dentro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e de muitas dioceses particulares, que não concordavam com a postura de denúncia do Cimi. Mas creio que é importante destacar que a força política do Cimi vinha exatamente de sua vinculação institucional com a Igreja, em especial com a CNBB. A partir de minha experiência pessoal de oito anos como secretário geral do Cimi (1983 a 1991), posso afirmar que nos momentos mais difíceis, em especial de maior conflito com o governo federal e de repressão ao trabalho desenvolvido pelos missionários, contamos com o apoio claro da CNBB, em especial na pessoa do sempre saudoso D. Luciano Mendez de Almeida.
Como leigo posso destacar outro aspecto que me parece muito relevante na história do Cimi: ele foi e é o que é por causa da ampla e decidida participação dos leigos – grande parte do quadro efetivo do Cimi sempre foi formado de leigos, alguns deles nem sempre totalmente alinhados com a Igreja Institucional, mas totalmente comprometidos com a luta dos povos indígenas. Inclusive, desde cedo os leigos ocuparam postos-chave como de secretário executivo, vice-presidente e coordenadores regionais.
Mas creio ser importante destacar que muitas dioceses e missões mudaram suas práticas pastorais em decorrência de sua vinculação com o Cimi, ou a partir dos programas de formação oferecidos aos missionários, que incluíam estudos de antropologia e história indígena e, em especial, como consequência do diálogo direto e aberto com as próprias comunidades indígenas, abrindo caminho para um protagonismo maior por parte desses povos também no interior da Igreja.
IHU On-Line – O que mudou em relação à missão do Cimi ao longo desses 40 anos, considerando que as temáticas e lutas indígenas também se transformaram?
Antônio Brand – Embora velhos problemas denunciados pelo Cimi desde a sua fundação ainda persistam, como a questão da demarcação das terras e o desrespeito aos projetos de vida próprios de cada povo indígena, muita coisa mudou na realidade indígena, da Igreja e na ação do Cimi. Creio que a maior mudança verificada decorre exatamente do maior protagonismo assumido pelos povos indígenas, que permite ao Cimi posicionar-se cada vez mais como um organismo de apoio solidário às iniciativas indígenas.
Nesse sentido, sem deixar de lado a denúncia sistemática dos atropelos dos direitos indígenas que persistem – e segue sendo fundamental esse papel de denúncia exercido pelo Cimi desde a sua fundação. Uma das mudanças mais relevantes nesse esforço de seguir sendo um organismo de apoio às lutas indígenas, é assumir um papel por vezes menos ostensivo, mas igualmente importante de assessoria, acompanhamento e apoio. É um trabalho não muito fácil porque, nesse esforço de autonomia dos povos indígenas, após tantas décadas de políticas autoritárias e paternalistas vêm atravessado, certamente, muitos conflitos, dúvidas, ambivalências e decisões equivocadas, frente às quais a solidariedade nem sempre é tarefa muito fácil.
IHU On-Line – Como o Cimi contribuiu para a conquista dos direitos dos povos indígenas ao longo dessas quatro décadas?
Antônio Brand – Penso que as contribuições do Cimi para a causa dos povos indígenas nesses 40 anos foram muitas. Gostaria de destacar algumas:
Foi o primeiro organismo que se posicionou claramente do lado da demarcação das terras e da autonomia indígena, que se traduziu no apoio direto à luta pelo reconhecimento dos territórios indígenas e no incentivo, desde 1974, às iniciativas de organização e articulação dos próprios índios, que são historicamente conhecidas como assembleias de chefes indígenas (que iniciam em 1974), embrião das organizações indígenas formais que surgem mais tarde.
O segundo aspecto que considero de grande relevância e que marcou o Cimi nesses 40 anos foi a sua preocupação em sempre analisar e situar a questão indígena em termos nacionais ou como um problema nacional. O Cimi, efetivamente, era e é ainda o único organismo não governamental que está presente em todas as regiões do país e junto a um expressivo número de povos. Isso permite ao Cimi ter sempre, antes de qualquer outra entidade, uma visão mais ampla e detectar e denunciar não só casos de omissão ou de atropelo de direitos indígenas específicos, mas de políticas anti-indígenas. O primeiro documento nesse sentido foi certamente “Y Juca Pirama – o índio aquele que deve morrer”, também de 1974, um dos documentos mais corajosos de denúncia da política indigenista da ditadura militar.
Muitos outros documentos sempre de denúncia das agressões aos direitos dos povos indígenas foram elaborados e divulgados pelo Cimi nesses 40 anos. Foram documentos de enorme impacto na opinião pública. Quero destacar apenas mais um, divulgado pelo Cimi após apenas seis meses de governo civil – no governo Sarney –, denunciando o continuísmo na política indigenista. Na época muitos indigenistas consideravam as avaliações do Cimi prematuras, mas infelizmente se confirmaram plenamente depois. Essa é uma das vantagens do Cimi como órgão nacional, mas com forte presença nas regiões e nas aldeias.
IHU On-Line – Como as populações indígenas veem o Cimi?
Antônio Brand – Percebem o Cimi como parceiro e aliado – especialmente considerando que o Cimi já está há tantos anos mantendo sempre a mesma postura de solidariedade e apoio. O Cimi tem sido o parceiro desde a primeira hora até a última daquelas comunidades que se encontram em situação de maior risco, em especial no que se refere à questão de fundo da terra. Por isso mesmo, tantos missionários perderam a vida nessa luta solidária.
IHU On-Line – Como o Cimi se relaciona com os demais órgãos que lidam com a questão indigenista, como a Funai, por exemplo?
Antônio Brand – Um das características do Cimi sempre tem sido manter autonomia frente a qualquer órgão público. No caso da Funai, mesmo tendo à frente pessoas comprometidas com as questões indígenas – como já aconteceu em diversos momentos –, o Cimi tem mantido sua independência e autonomia, sem nunca se negar ao diálogo e eventuais cooperações pontuais, tendo sempre em vista a solução dos problemas indígenas. Essa postura é que lhe permitiu manter, em todos os momentos, independentemente de governos mais à esquerda ou mais à direita, a liberdade de denunciar cada vez que os povos indígenas eram agredidos em seus direitos.
IHU On-Line – O que mais marcou a luta do Cimi ao longo desses 40 anos?
Antônio Brand – Penso que a marca principal da ação do Cimi nesses 40 anos foi a sua clareza quanto à importância para o futuro dos povos indígenas e de seus projetos de autonomia da garantia dos territórios. Por essa razão não poupou esforços nessa luta, que custou, como já afirmado acima, a vida de muitos missionários. Desde a primeira Assembleia Geral do Cimi, em 1975, a questão da terra e a afirmação do direito à autonomia ocuparam lugar central nas conclusões votadas ao final de cada uma das Assembleias Nacionais.
IHU On-Line – Que avaliação faz da atuação da instituição junto dos povos indígenas atualmente?
Antônio Brand – Penso que a história dos povos indígenas não seria a mesma sem o Cimi. Em outras palavras, grande parte das muitas vitórias alcançadas pelos povos indígenas nesses 40 anos, passando especialmente pela Assembleia Nacional Constituinte de 1988 – na qual o Cimi teve uma participação impar – traz embutida uma importante contribuição do Cimi, seja através de denúncia, assessorias e o apoio direto que forçaram o governo a abrir brechas cada vez mais amplas por onde os índios foram entrando e firmando seus direitos.