De 25 a 28 de outubro, a CPT realizou, de forma virtual devido à pandemia da Covid-19, a Semana Nacional de Formação da Pastoral. Com o tema “Saberes e sabores: práticas culturais no combate à fome e à pobreza”, a atividade teve início com uma live na noite do dia 25, e continuou com mesas temáticas realizadas durante as manhãs dos dias subsequentes.
Cristiane Passos*
Na noite de 25 de outubro, a live transmitida pelos canais da CPT Nacional no Facebook e Youtube, reuniu Edcleide Rocha, do Movimento de Mulheres Camponesa (MMC) e Paulo Peterson, da coordenação executiva da Associação Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA), do Núcleo Executivo da Associação (ANA) e da diretoria da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). A mediação ficou por conta de João Muniz, poeta e agente pastoral da CPT Nordeste II.
Para Edicleide esse foi um importante momento de encontro e de solidariedade, em que se debate a luta pela libertação das terras, dos territórios, libertação das mulheres e, também, a luta pela garantia da soberania alimentar. “Enquanto camponesa do MMC, antes de ser do movimento, eu nasci, cresci e me formei nas bases da CPT Alagoas. Sou oriunda dessa semente, uma semente que germina, cresce e se fortalece nos campos e diálogo com a cidade… estar aqui é um compromisso em continuarmos em luta e resistência. Reafirmamos esse compromisso com a Campanha que estamos realizando no MMC, a ‘Campanha Nacional Sementes de Resistência: camponesas semeando esperança, tecendo transformação’. Uma Campanha que nasce em 2019 nos debates e desafios que nós colocávamos sobre a luta das mulheres pela transformação da nossa sociedade e diante da luta contra os impactos do agronegócio, do enfrentamento às violências e do combate a fome”.
Paulo Peterson avaliou que “esse tema saberes e sabores, pensando também na perspectiva do combate à fome, é um tema extremamente importante para debate. Pois nós só teremos saída das crises que estamos vivenciando, a partir dos saberes da cultura popular. Acho que essa é uma clareza que temos que ter. Desses saberes diversificados que nasce a ideia de agroecologia, que antes de se afirmar no mundo acadêmico, nasceu na cultura tradicional, é uma interpretação científica daquilo que vem das práticas culturais. Por outro lado, temos que entender que a situação que vivemos hoje, ela não vem por acaso, ela vem de uma construção histórica de relações de poder. O nosso país foi forjado sobre o agronegócio. Nunca deixamos de ser estruturados em cima da ideia dominante do agronegócio. Por isso também nós somos um país que sempre estivemos no topo das desigualdades sociais. A nossa economia está organizada de forma a promover essa desigualdade. Não somos um país pobre, mas desigual, e sabemos da participação do agronegócio na manutenção dessas diferenças. Ao mesmo tempo em que o Brasil se apresenta como celeiro do mundo, batendo recordes de produção agrícola, ele bate também recordes de fome”.
Diálogos, desafios e saberes
Dando continuidade à Semana Nacional de Formação da CPT, logo após a realização da live, foram realizados encontros virtuais temáticos somente para os e as agentes da CPT, durante três dias. O primeiro deles foi um momento de escuta das experiências das comunidades. Com o tema “Diálogo com os Povos e Comunidades Tradicionais”, a reunião realizada na manhã do dia 26, terça-feira, reuniu experiências da Comunidade Quilombola de Santa Fé (RO), do grupo de mulheres “Irmã Geraldinha”, da Comunidade Tradicional Nova Piabanha, de Minas Gerais, da Comuna Urbana de São Paulo (SP) e, também, a experiência de solidariedade em tempo de pandemia, vinda do estado do Paraná. A feira camponesa de Alagoas, uma experiência de feiras itinerantes que ocorrem no estado desde 2009, foi apresentada aos participantes através da exibição de vídeo.
Na manhã da quarta-feira (27), foi o momento de debater os “Desafios conjunturais no campo e na estrutura patriarcal e racista: A agricultura do agronegócio, que gera e a pobreza, fortalece o patriarcado e o racismo”. Com assessoria de Cris Faustino, integrante do Instituto Terramar, organização não governamental de caráter socioambientalista do estado do Ceará, a atividade trouxe o debate sobre o racismo ambiental e estrutural que vivenciamos em nosso dia a dia, e as faces brancas e patriarcais dos megaprojetos que destroem não só a vida e o meio ambiente, mas as identidades e relações de gênero da sociedade. A partir desse diálogo foi possível perceber que ainda temos um longo caminho de desconstrução e conscientização a ser percorrido mesmo dentro dos espaços de luta, e mais ainda enquanto sociedade. Acácio Briozo, da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), trouxe dados sobre a estrutura do agronegócio sobre o território nacional, a política – ou não política – de reforma agrária, ainda tão inconsistente e sempre ameaçada pelos interesses do latifúndio e das grandes empresas, e os desafios que ainda teremos na luta pela terra e território. Mesmo diante das dificuldades ora vivenciadas, principalmente diante desse governo conservador, e dos desafios para os povos do campo, da água e das florestas, a esperança na luta e na resistência dos povos permanece e deve ser fortalecida.
Ontem (28), o último dia de atividade trouxe o tema “Saberes ancestrais: Interligando caminhos na Casa Comum”, com a participação de Kum’tum Akroá Gamela, Indígena Povo Gamela do Maranhão e Alcides Jorge Carvalho dos Santos, Babalorixá do Ilé Òrìṣà Nlá Àṣẹ Ọbalodó - Terreiro Sítio da Paz, de Lauro de Freitas, Bahia.
O babalorixá deu início a sua fala analisando o difícil momento que vivemos e a falta de retorno da nossa sociedade aos saberes de sua ancestralidade, para enfrentar os desafios que estão postos: “Se vivenciássemos a ética Ubuntu de nossos ancestrais, baseada no saber ‘sou porque nós somos’, entendendo a importância da coletividade, teríamos hoje um governo preocupado acima de tudo com a totalidade do seu povo”. Alcides traz a experiência do terreiro, construída em torno dos saberes tradicionais e ancestrais da produção de alimento e de como preparar esses alimentos, como de extrema importância para combater não somente a fome, mas o que ele chamou de “nutricídio”. “No terreiro somos muito voltados para a comida. A alimentação significa, também, identidade de território. Vemos hoje na sociedade e mesmo nas comunidades, uma padronização da alimentação, com interferência excessiva de alimentos processados. Isso interfere diretamente na saúde do nosso povo. Diversas doenças veem, dessa forma, da alimentação, que sempre foi sinônimo na nossa ancestralidade de manutenção da saúde. Chamo isso de nutricídio. Estamos acabando com a diversidade de nutrientes que historicamente consumíamos”.
Kum’tum Gamela, da mesma forma, trouxe a importância da ancestralidade no processo de luta pela terra. “A terra não é só espaço de produção, mas de reprodução da vida”. O indígena, que passou por um processo de retomada de sua identidade tradicional, reconhecendo a ancestralidade que sempre é negada na formação da população brasileira, compartilhou os desafios desse processo e a violência pela qual os indígenas passaram com a desterritorialização de seus povos.
O debate junto aos e as agentes da CPT trouxe elementos para a reflexão contínua do trabalho de base feito pela Pastoral, cuja importância da retomada da ancestralidade nas ações é inegável, e deve ser cada vez mais exercitada. Para o babalorixá, “a terra é nossa ancestral mais antiga, e a Pastoral da Terra tem essa grande responsabilidade de cuidar dessa preciosa ancestral”.
*Setor de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT