Reunidos no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO), entre os dias 22 e 25 de outubro, cerca de 60 agentes da CPT de todo o país debateram a “questão agrária no Brasil atual: permanência, possibilidades e limites atuais”.
(Cristiane Passos - CPT Nacional)
Os e as agentes da CPT iniciaram o Encontro compartilhando as lutas pela terra e territórios em cada região do país, os principais conflitos e dificuldades enfrentadas pelos povos do campo. Entre os temas, destacaram a falta de regularização fundiária, os grandes projetos implantados em detrimento dos povos do campo, como o MATOPIBA, a especulação imobiliária que tem se expandido, também, na zona rural, além de ameaças e violências contra os e as trabalhadoras, bem como contra os e as agentes da CPT e de outras entidades de luta.
Leonildes Medeiros, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), destacou a necessidade de se fazer memória do processo histórico do nosso país, para pensar da perspectiva dos trabalhadores, do lugar deles, seja a conjuntura rural ou a urbana. O sentido da questão agrária foi mudando ao longo do tempo, segundo ela. “Precisamos tentar enxergar as saídas dos trabalhadores através de suas lutas históricas. Buscar momentos chave da constituição de alguns dilemas em relação à questão agrária na história brasileira. Tentar também pensar as mudanças e algumas permanências nessa trajetória. Essa história vai ter ritmos diferentes conforme a região de nosso país. Temos situações diferenciadas em cada região”, refletiu Leonildes.
Bases históricas da questão agrária
Primeiro, segundo Medeiros, precisamos atentar que quando começou a colonização brasileira pelos portugueses, foi instituído aqui um regime de terras que já existia em Portugal, o regime das sesmarias. Contudo, há enormes diferenças entre os dois países. A ideia era dar a terra a quem tivesse capital para explorar, de forma a alimentar o comércio internacional, daí o privilégio da doação de áreas para o cultivo de cana de açúcar. Não havia, porém, formas de dar dimensão a essas sesmarias, seria até onde o olhar alcançasse. Quem não cumprisse os determinantes do governo português teria que devolver as terras à coroa, daí veio, inclusive, o nome de terras devolutas. Contudo, não havia um processo de fiscalização se a pessoa a quem foram dadas essas terras estava cumprindo tais determinações.
Da mesma forma, não se colocava na época a questão da necessidade de se ter um título com os limites dessas terras. Portanto, o processo de apropriação destas no Brasil foi sem controle. Os governos provinciais também não conseguiam ter controle desses processos. Além disso, tem outra ponta da ocupação que se fazia de maneira invisível. Quem vinha para o Brasil não eram somente pequenos empresários, vieram também levas de portugueses pobres que viram a possibilidade de enriquecimento. “Normalmente não eram famílias, eram somente os homens que vinham, era uma aventura, não sabiam em quê ia dar. Então foram formando-se pequenos apossamentos da terra, e eles iam se misturando às comunidades locais. Essa mistura foi através da violência contra as mulheres indígenas e também por alianças com os indígenas. Dessa forma foi-se se gerando uma população chamada cabocla, que foi se espalhando pelo entorno das grandes propriedades. Formação essa, também, de uma população livre e pobre. Foram ‘abrindo’ terras. Não havia preocupação com o título, mas somente em reproduzir seu modo de vida. O trabalho nas lavouras era feito pelos escravos, portanto, esses grupos tinham que ir tomando posse mesmo, pois não teriam muitas chances de trabalho”, destacou a professora.
Com a abolição da escravatura, num processo lento, os ex-escravos também foram se apropriando de terras. Além disso, tem outros casos em que muitos senhores de terras de culturas decadentes foram doando pedaços destas para ex-escravos. Porém, sem título ou qualquer documento dessa doação. “E lá se reproduziram comunidades negras. Na história brasileira essas populações ganham nomes tradicionais, e muitas vezes depreciativos. Quando essas populações se rebelavam elas eram chamadas de fanáticas. Elas eram populações que existiam, mas não eram reconhecidas. Aparecem na história sempre como um problema, sem nenhum reconhecimento”, completou.
O primeiro momento de reflexão sobre a titularização das terras foi a Lei de Terras de 1850. Os proprietários de terras eram contra qualquer tipo de regulamentação, porque regulamentar era colocar limites nas terras, sendo que para eles lhes interessava as terras sem limites. O que a lei previa, que era o registro de terras, se fez muito precariamente. Não houve um registro sistemático dessas terras. Quando aparecem os primeiros cadastros rurais, percebe-se que a soma das áreas declaradas era maior que a área total do Brasil, o que existe até hoje e que mostra a permanência de um problema que vem do Brasil colônia.
“Depois de 1850, ninguém mais mexe na questão fundiária. A próxima mexida só vai ocorrer 114 anos depois, em 1964, com o Estatuto da terra. Nesses mais de cem anos, ocorreram mudanças significativas no país, principalmente no século XX. Processo de industrialização, migrações para as cidades, aumento das cidades. E vem uma situação extremamente crítica, quem vai produzir comida para essa população das cidades que está crescendo? A agricultura que sempre tinha se voltado para o mercado externo, volta a ser debatida, mas para o mercado interno, para a produção de alimentos. Em meados do século XIX começa-se o debate sobre distribuição de terras, junto com os debates sobre a abolição. Nos anos 1920, volta-se o debate sobre a questão da distribuição de terras, agora articulado com a ideia de uma reforma política. Tinha um grupo que levantava que era impossível resolver a questão política no Brasil sem discutir o voto de cabresto. Mexer na estrutura fundiária era essencial para romper com essa estrutura coronelista do voto de cabresto”, destacou Leonildes.
Com a era varguista, foi feito um acordo com os grandes proprietários de não mexer nas grandes propriedades. Mas, decide-se resolver esse problema fundiário com as “novas áreas”, e são criados vários projetos de colonização, inclusive projetos que tiveram como objetivo criar cinturões de abastecimento no entorno de grandes cidades. A divulgação desta “oferta de terras”, entretanto, trouxe muito mais gente do que os projetos e as terras podiam suportar, e essas pessoas foram ficando pelas beiradas, e se criaram grupos de posseiros. Esse quadro se desdobra em conflitos fundiários nos anos seguintes. Nos anos 1950 e 1960, os conflitos fundiários explodem no país. Uma parte deles eclode nas beiradas onde foram os projetos de colonização.
“O trabalho dos posseiros acabou valorizando a terra. Eles chegaram, limparam essas terras, reproduziram seu modo de vida e começaram a produzir, quando então chega alguém se dizendo donos das terras. Essa alta dos conflitos no campo resulta, entre outros tantos motivos, no golpe militar. Os militares vão tentar equacionar de alguma maneira o desenvolvimento, a produção de alimentos e a reforma agrária. Sete meses depois do golpe, os militares vão direto na legislação agrária, com o Estatuto da Terra. Mudança de concepção e de rumos no campo, no que era visto e tido como atraso, que seria o modo tradicional de vida e produção no campo. Antes do golpe, no início dos anos 1960, tinha-se no Congresso uma bancada rural, que barrou todas as propostas em relação à reforma agrária”, concluiu.
Nos anos 1960 e 1970, a luta foi marcada pela categoria dos posseiros. A partir dos anos 1980 ela passa a ser marcada pelos sem terra. Tiveram mudanças, também, no significado da terra e no significado da reforma agrária. Se inicialmente pensamos na desconcentração da terra, nos anos 1980, 1990 e 2000, outras questões passam a ser refletidas para além da terra para cultivo e valor econômico. A terra passa por outros significados, outros termos se somam no entendimento da terra. A questão agrária vai ganhando complexidades cada vez maiores.
Diferenciação social da luta pela terra no Brasil ao longo dos anos
Cláudio Maia, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), destacou que temos alargado muito o conceito social de campesinato. “Desde os anos 1980 estamos pensando o campesinato pela sua diversidade. É diverso, tem demandas distintas, mas tem elementos que unem. São seguimentos subalternos, no sentido tanto econômico quanto político”. Para ele, temos que visualizar a questão agrária a partir das lutas camponesas para enxergar que mudanças elas estão impulsionando.
Guilherme Delgado, da Associação Brasileira pela Reforma Agrária (ABRA), retomou que somente na virada dos anos 1950 para os 1960 é que se constroi uma proposta política para a estrutura agrária brasileira. “Conseguimos que na Constituição não haja nenhum artigo transformando a terra puramente em mercadoria, que era o desejo dos grandes produtores”, destacou ele como uma grande vitória das articulações em prol dos povos do campo que, na época, acompanharam a Constituinte. Ele destacou ainda a importância de novos elementos que se somaram à luta no campo, como a dimensão ecológica da questão agrária, que nem era tocada nos anos 1960. Hoje, segundo ele, se leva mais em consideração essa questão.
Sérgio Sauer, professor da Universidade de Brasília (UNB), também destacou que devemos olhar a questão agrária a partir das lutas camponesas. “Ao se analisar teoricamente a questão agrária, a matriz de análise sempre é a matriz marxista, particularmente Lênin. Em um determinado momento haviam diferenças entre as lutas camponesas e as teses sociológicas sobre as lutas camponeses. As lutas são construídas socialmente, não são naturalmente diferentes. A constituição do MST, por exemplo, vai gerar um novo sujeito político que é o trabalhador sem terra, não camponês sem terra. O surgimento do Movimento muda, também, o eixo da luta pela terra, com a utilização das ocupações como estratégia”.
Já o professor Paulo Alentejano, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), destacou a questão da estrangeirização das terras, como mais uma ofensiva contra os povos do campo. Para além da questão da venda das terras para estrangeiros, o que cada vez é mais difícil de quantificar já que muitas das empresas que possuem os títulos de terras são transnacionais com capital misto, há a questão do monopólio dos insumos para o desenvolvimento das culturas no campo. “Temos apenas cinco empresas que produzem o maquinário para o campo, e nenhuma delas é nacional. Seis empresas controlam o mercado de fertilizantes e todas transnacionais. Outras seis, que agora são quatro com as fusões, controlam quase 80% do mercado de defensivos e todas também são transnacionais. Temos um grau gigantesco de monopolização da agricultura, o que expressa a monopolização e a estrangeirização de forma combinada”.
Egon Heck, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), trouxe a mensagem dos povos originários, com o bem viver em contraposição ao modelo neoliberal e ao consumismo exacerbado. Ele destacou a mensagem de um jovem guarani kaiowá, “o nosso futuro está no passado”, como um sinal de esperança e para que voltemos aos saberes ancestrais como forma de esperança no futuro.